Estava eu lá na noite, eram umas onze e meia e eu já meio tonto por causa da bebida fui no meu Chevete passear pelo escuro prateado da Lua, que lançava bruxuleantes fachos sobre asfaltos molhados.
Um ou outro errante se fazia notar pelas esquinas, e um casal passava cambaleando todo trôpego ao meu lado.
No carro estava eu dirigindo, num conforto noturno, vestindo o meu casaco preto de veludo e aquele terno bacana todo xadrez, aflanelado, que meu querido pai me deixou. Meus sapatos eram caros, e brilhavam no escuro. Eu era um pulo no escuro, eu era um acorde afinado.
Do meu lado se encontrava um chapa bacana, o Mascarenhas da Rua Dóris. A gente sempre saía, e estas eram sempre as melhores noites pela cidade. Ele emanava magia e fragrâncias morenas pra cima das moças... era meu chapa.
No carro tocava um som relaxante.
Paramos bem perto de um clube noturno. Era lá o lugar, era aquela a hora. Todo mundo dizia, aquele era o lugar do prazer e da farra.
Descemos e vimos de cara na porta um sujeito moribundo sentado num banco. Pediu o dinheiro, eu dei minha parte. O Mascarenhas não tinha grana, e lhe paguei a metade. Bati no ombro de meu amigo: amigo é pra isso.
O lugar era mais ou menos quatro por quatro, olha só que barato: mulheres dançando, mulheres falando... elas sabiam o que eu queria. E eu logo saquei o que elas sabiam.
Eu já estava tonto, já tinha bebido. Mas não resisti, fui pedir o meu trago lá no balcão. E bem lá no palco, o som do lugar: o blues já rolava desde horas atrás... era o som da noite e de mais ninguém, era o movimento dos negros que cuspiam batidas e toques que entravam no meu ouvido e no do Mascarenhas, e dos outros malandros... e que depois escapavam em baforadas soturnas de seus finos cigarros... ou em palavras de amor e de dor nos ouvidos das moças...
E nos cantos mais negros do salão se embrenhavam em suas mesas escuras os naturalistas... que sentem a erva como uma de suas delícias, e não como uma de nossas malícias...
Bebi no meu copo um gole da noite... e senti uma fumaça por dentro me lavar as entranhas com doces suspiros e lentos acordes... que noite.
Eu vi uns malucos dançando e bebendo... que farra, que festa, eles jogavam um pôquer... fiquei animado, andei pelo espaço... quantas almas encarnadas no blues...
Olhei um sujeito parado encostado... de óculos negros e paletó listrado... que cara maneiro, olha a audácia dele, todo lá, parado, observando. Ele era legal, todo lá, confiante... eu fui até ele, pra bater um papo... parei bem de perto, olhei o sujeito...
Ele se virou no som de um piano, me olhou devagar e lambeu o cabelo. Pedi um isqueiro, ele me deu um fósforo. Acendi meu revólver social e já dei baforadas... porque eu também era legal. Devolvi pra ele, e aí foi que eu disse: parceiro, eu escuto o teu som... e me virei e fui andando, meio balançando ao som do trompete.
O Mascarenhas bebia e falava com as moças... ele morre toda noite, ele é um animal violento que usa prazeres boêmios nas noites da selva...
Nas mesas eu via fragrâncias cinzentas serem exaladas superficialmente pelos presentes, que se debruçavam em sentimentos em cima da mesa, lançados, jogados no meio da aposta. Um baralho farfalhava em sons saxofônicos e em naipes marrons e verde-escuros...
Sapatos sobre tapetes encaroçados, meias de lã e o diabo... os homens de preto, mulheres de negro. Sentei no fundo.
A luz bem fraca, apanhava da penumbra bem no estômago, e sentia o bico do sapato lustrado na virilha. Uma gaita soou perturbadora, trazendo angústias de todos no passado...
Vejo de longe, de vista embaçada... um bichano correndo matreiro e sagaz pelo tapete grosso, entre pernas de mesas, cadeiras e moças. Ele passa mas ninguém vê, ele faz de propósito, veio na noite, ele quer sentir a decadência noturna. Some no escuro, no canto onde está uma grande mesa, várias mesas juntadas. E vários caras vestidos em paletós aveludados e chapéus de feltro jogam um baralho e bebem o uísque... todos entrouxados em roupas grossas naquela mesa apertada, impregnada de espessa fumaça de cigarro emanada em uma dança.
Um deles só fuma, fuma, fuma muito mesmo, um condenado bebendo a garrafa inteira, espremido no canto entre outros dois camaradas. Ele com as olheiras e o lábio cortante, envolto na sombra, todo banguela e desdentado... que malandro de meia-tigela...
E andando em passos pelos vãos de mesas escuras, eu vejo o Mascarenhas e peço outra bebida... eu quero o blues enfiado em meus órgãos e sistemas, e sendo digerido à noite e transmitido em cada veia ou artéria... porque o sangue pulsa com os acordes... afinados acordes de sopro num clube maneiro de bêbado que dança e cai no meio de mesas sobre o tapete do gato e da moça em lindos lupercais noturnos que eu vivo.