Ai... Como dói para abrir os olhos! Acho que papai deve ter me acertado no rosto depois que eu apaguei: metade do meu sorriso está inchado e amortecido. De qualquer maneira, não faz diferença. Como eu poderia sorrir com quilômetros de fita isolante a imobilizar-me o sorriso — e os braços e as pernas também?
Não tenho medo do porão. Não tenho medo do escuro. Só tenho medo quando papai aparece no alto da escada com o balde na mão e pergunta:
— Nandinha, está com sede?
Muito frio, muito gelado, muito úmido. Quero tossir, mas com a boca assim amarrada não dá mesmo. Não sei porque papai me prende. Como poderia eu — tão pequenininha — tentar fugir? Para onde iria eu, ainda mais agora que perdi minha mamãe?
Aconteceu muito rápido. Estávamos jantando — mamãe havia feito sopa de letrinhas — quando papai acertou-a no rosto com as costas da mão. Eu a vi cair. Eu a vi bater a cabeça com toda força na quina da mesa. Sangue escorrendo do emaranhado de seus bonitos cabelos loiros. Não pude gritar. No instante seguinte era eu quem estava perdendo os sentidos. Papai tem mão forte...
Tudo que eu enxergo é o risco de luz em baixo da porta, no topo das escadas. Escadas? É porque às vezes ela parece duas, às vezes parece três.
Ontem choveu. Ai, ai, ai... Isso me deixa com tanto medo! O quintal deve ter ficado cheio de sapos. Oh Deus!, não permita que papai apareça no alto da escada para perguntar:
— Nandinha, está com fome?
Eu sinto medo. Medo não, terror. Criaturas frias e rechonchudas, com pequenas membranas entre os dedos das mãos, caindo pesadas sobre o meu corpo molhado e imobilizado. Meu universo chega a rodar. Sinto-as como se fossem pequenas e sórdidas almôndegas coachantes, seus pequenos olhos negros refletindo o facho de luz que atravessa a fresta da porta lá em cima. Uma delas esticou meio metro de língüa para apanhar e devorar uma pequena aranha. O papo inflando e murchando no compasso da respiração. Gordas bolsas brancas gotejando veneno ao lado das cabeças.
Não papai... Não posso ficar aqui... Não com os sapos...