Havia ainda a sensação febril no corpo fatigado dela quando ele chegou em casa. Deu m beijo rápido e automático nos lábios e foi-se largando dos rigores do trabalho. Afrouxou a gravata cinza num só gesto, pousou a pasta e a mala sobre a mesa da sala, e folheou a correspondência. Ela tomando canja na caneca verde oliva que ganhou das aulas de cerâmica da irmã, coberta com a manta de lã, enquanto fingia prestar atenção em algum canal da tevê a cabo, como de costume.
- Houve um incêndio no prédio de tarde. - Disse ela seguido de um gole na caneca e os olhos perdidos em alguma propaganda qualquer.
- Quê? - Disse ele avaliando a conta de luz, estranhando o aumento de preço comparado ao mês passado.
- No décimo sétimo andar. Um defeito no aquecedor, parece. Ficaremos sem gás até amanhã. A companhia já foi notificada, mas cê sabe como eles são... - Puxou a manta mais perto do colo.
- Foi sério? Alguém se machucou? - Separou os anúncios das contas.
- Evacuaram o prédio. Desligaram os elevadores por algumas horas. Eu tava dormindo. Espancaram a porta e interfonaram por um longo tempo, me disseram, mas eu continuei dormindo. Cê sabe que eu não consegui repousar noite passada por causa da gripe, então dormi à tarde... - Mais uma propaganda.
- Você ficou o tempo todo dormindo? - Disse mais alto, da cozinha, enquanto jogava os anúncios no lixo.
- Não. Sonhei que alguém me chamava e acordei... Fui até a cozinha tomar remédio e beber alguma coisa. O porteiro tentou interfonar mais uma vez, e aí eu atendi, e deixei o prédio. - Mais um gole.
- Você foi pra rua? - Tirou o paletó e sentou-se no sofá, descalçando os sapatos.
- Lá no térreo mesmo... Todos os vizinhos ficaram lá... Quando controlaram o fogo, liberaram nossa entrada de volta minutos depois. - Terminou a canja, deixou a caneca na mesinha ao lado.
- E ninguém se machucou então?
- Não.
Um breve silêncio por entre a infinidade de propagandas na televisão sobre pastas de dentes, produtos de cabelo, refrigerantes e toda sorte de produtos dispensáveis se seguiu. Ele a olhou por alguns segundos, suspirou, e:
- O que tem pra jantar?