( Participou do terceiro concurso de contos da Petros – edição 2002 )
Alice caminha apressada, decidida. Sua expressão séria, concentrada; a consulta insistente ao relógio, denunciam um sentimento de atraso, urgência de chegar a algum lugar.
Pensa, em voz alta, sem perceber: “espere por mim, Raul.” E completa, só em pensamento: “Deus, me ajude! Estamos, de novo, a um passo um do outro! Desta vez não, Senhor!”
Foi sempre assim, desde crianças sabiam fazer parte da vida um do outro, mas o acaso constante de Raul.
Quando a família de Raul teve que mudar de cidade, em função do trabalho do seu pai, foi como se o céu desabasse, levando todo o colorido, toda a alegria. Significou, para ambos, o primeiro grande sentimento de perda, de solidão. Para compensar a distância, passaram a se corresponder freneticamente. Choviam cartas, indo e vindo. E matavam a saudade nas férias escolares, quando Raul vinha para a casa de parentes.
Alice comemorou os seus quinze anos com atraso de quase um mês, para que Raul pudesse estar presente. Foi um dos dias mais felizes da sua vida. Enquanto dançavam, se beijaram pela primeira vez. Não daqueles beijinhos de criança, que às vezes Raul roubava. Beijo de adulto, pra valer. E nem se deram conta de que havia tanta gente em volta.
Começou ali um período de sonhos, de felicidade. Inventavam mil maneiras para estar juntos, juravam amor para sempre. Um filme, que assistiram várias vezes, serviu de inspiração para diminuir a distância, quando não podiam se encontrar. O par romântico do filme tinha códigos de comunicação que só eles entendiam. Raul e Alice criaram também uma forma diferente de dizer “eu te amo”. Para substituir as três palavras, convencionaram que sempre que mencionassem o número três, ou algo relacionado a ele, estariam declarando o seu amor.
Alice tem agora um grande sorriso no rosto, seus olhos brilham, quase pode sentir outra vez o perfume, o toque, os beijos de Raul. As pessoas que passam olhando, sem entender a sua felicidade, trazem-na de volta à realidade e a fazem apertar de novo o passo.
O chamado das forças armadas interrompeu o sonho, dois anos depois do início do namoro. Raul viajou às pressas, nem sabia bem para onde. Teria que cumprir o seu dever cívico de servir à pátria. O mundo estava em guerra.
Foram três longos anos, praticamente sem notícias. Raul viveu todas as perdas, todas as dores, todos os desencantos. Nunca teve respostas das suas cartas. Um dia, recebeu a comunicação do casamento de Alice.
Alice sofreu a espera de três anos intermináveis. Resolveu aceitar, finalmente, por insistência da família, o pedido de casamento de Pedro, seu eterno apaixonado, depois da notícia falsa da morte de Raul.
Quando voltou da guerra, triste e mutilado, Raul recebeu, misteriosamente, junto com medalhas, diplomas e honrarias, todas as cartas que escreveu e todas as que não recebeu. Casou com Cristina, um ano depois, com quem teve quatro filhos. Ficou viúvo recentemente. Alice teve somente um filho e logo separou-se de Pedro. Foi viver com o filho fora do país.
Alice está ofegante, os corredores do hospital parecem não ter fim e os seus setenta e três anos já pesam sobre os ombros. Chega, enfim, à porta que procurava. Atrás dela encontra uma família numerosa reunida em torno de um velhinho sobre o leito. Alguns jovens lembram muito o seu Raul de tantos anos atrás. Eles a recebem com carinho e lamentam a sua demora. Todos se esmeraram em realizar o último desejo do vovô, que era despedir-se da amiga Alice. O velho Raul não teve forças pra esperar. Faz dois dias que é mantido vivo por aparelhos, mas a família já concordou em deixá-lo descansar.
Alice se aproxima, segura a sua mão e beija-lhe a testa, sem conseguir evitar as lágrimas. Sente, levemente, a mão de Raul apertar a sua, três vezes seguidas. Alice, como na sua festa de quinze anos, esquece o mundo à sua volta: “Graças a Deus, você ainda está aqui! Eu sabia que você não iria sem me dizer. Eu sei querido, eu sempre soube! Três, trezentas, três milhões de vezes. Eu também nunca deixei de te amar, em toda a minha vida! Vá em paz, querido. Logo a gente se vê.”
Na saída, Alice recebe uma caixa cheia de cartas ainda lacradas, suas e de Raul, escritas há mais de cinqüenta anos.
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Jardel Ramos