( Participou do Terceiro Concurso de Contos da Petros – edição 2002 )
Chovia torrencialmente e à nossa volta só enxergávamos mato e terra molhada. Andávamos como dois autômatos, sem rumo, exaustos, fracos, lutando contra o terreno fofo e escorregadio. Tremíamos inteiros, de frio e de medo. Nossas roupas completamente enlameadas, os rostos e os braços marcados pelo junco, davam-nos a aparência de monstros do pântano. Não sei por quanto tempo vagamos, em que direção seguimos, que distância percorremos, caindo, levantando, atravessando áreas alagadas à procura de um abrigo, de um sinal de vida. Não nos olhávamos, não falávamos, não fazíamos nenhum gesto, prosseguíamos com a força da companhia um do outro.
Dela, só sabia o nome, Marina. E que estudava odontologia, era alegre, comunicativa e muito bonita, por trás de toda aquela lama. Tínhamos nos visto pela primeira vez no dia anterior, assim como todo o pequeno grupo de jovens aventureiros, nossos companheiros de viagem, vindos das diferentes regiões do país. O que nos uniu - a todos - foi a vontade de conhecer o Pantanal. Havíamos comprado um pacote de viagem que incluía dez diárias em um hotel fazenda e o percurso local, aéreo e terrestre. Fomos apresentados na hora marcada para o vôo em uma pequena aeronave que nos levaria, finalmente, até o tão esperado Pantanal Mato-grossense. De cara, gostei muito de Marina, do seu jeito, seu sorriso, sua alegria. Chamou-me a atenção o seu longo cabelo negro, escorrido, sua pele dourada, seus dentes perfeitos. Dei um jeito de viajar ao seu lado e, em pouco tempo, já éramos velhos conhecidos e só tínhamos olhos um para o outro. Aproveitamos cada minuto do trajeto, observando, comentando, fotografando a natureza exuberante. A tripulação, composta somente por piloto e co-piloto, parecia também fazer parte da nossa tribo, vibrando, participando das brincadeiras. Não foi difícil para o grupo convencer os jovens comandantes do avião a desviarem um pouco da rota, para apreciarmos melhor a paisagem. Eles fizeram até mais do que pedimos. Resolveram sobrevoar um conjunto de pequenas ilhas, repletas de aves, em meio à área alagada. Realizado o nosso desejo, concordamos em retornar para a rota normal do vôo. Só não contávamos com a brusca mudança do tempo. Quando demos a volta de cento e oitenta graus, nos deparamos com um céu cinzento, cheio de nuvens carregadas, bem à nossa frente. O co-piloto mandou que apertássemos os cintos e nos mantivéssemos calmos, pois eles iriam cruzar o temporal. Alguns momentos depois estávamos bem no meio da tempestade, sem enxergar um palmo em qualquer direção. A pequena e velha aeronave trepidava e rangia por toda a parte, como se fosse partir-se ao meio, e tínhamos a impressão de que perdia altitude. Estávamos todos apavorados, algumas garotas gritavam, desesperadas. Impulsivamente, tentei proteger Marina, puxando-a para mim, abraçando-a e tentando acalmá-la. O piloto então ordenou, num grito, que abraçássemos as nossas pernas, colocando a cabeça sobre os joelhos. Presumi, imediatamente, que ele iria fazer um pouso forçado. Não sei como descrever o que se seguiu. Tive a sensação de ter sido atirado de um canhão e, logo em seguida, me senti como se estivesse dentro de um gigantesco liqüidificador, girando em alta rotação. Depois o nada, o vazio. Acordei no meio da noite, de bruços, agarrado a algo que flutuava na água parada de um lago. Sentia meu corpo quase congelado, enrijecido, sem forças, e perdi novamente os sentidos. Despertei, mais uma vez, com a primeira luz do dia, olhei em volta e reconheci Marina, ao lado, presa ao que restava do assento em que viajava. Ela chorava baixinho, sem entender o que havia acontecido. Depois de livrá-la dos destroços, saímos da lagoa, com o nível da água pouco abaixo das nossas cinturas. Procuramos, gritamos por todos, andamos em círculos, choramos até o nosso limite. Não encontramos nada, nem ninguém. Voltou a chover forte, tomamos uma direção qualquer. Vazios de palavras, de sentimentos, de objetivo. Após caminharmos em campo aberto durante muitas horas e de a chuva ter-nos dado uma trégua, encontramos uma pequena mata, onde parecia não haver chovido. Sem prévio acordo passamos a juntar ao pé de uma árvore todas as folhas secas do chão e os galhos de pequenos arbustos, formando uma cama improvisada. Já estava anoitecendo quando nos livramos de toda a nossa roupa encharcada, nos aconchegamos no ninho recém construído e adormecemos abraçados, preservando o calor dos nossos corpos.
Os nossos estômagos, absolutamente vazios, nos acordaram muitas horas depois. O dia estava claro e o céu azul. Vestimos apenas a nossa roupa de baixo e estendemos as outras peças para secarem ao sol. Sentindo dores por todo o corpo, nos pusemos a andar, procurando o que comer. Constatamos, mais uma vez, como é difícil sobreviver fora do nosso habitat. Não encontramos nada que pudesse saciar a nossa fome. Tentamos comer algumas folhas, raízes, a parte mais macia da casca de uma árvore... a visão de algumas formigas me fez procurar insetos que tivessem a aparência de comestíveis. Regurgitamos em todas as tentativas que fizemos de digerir cupins e uma espécie de lagarta branquinha, que descobrimos em um tronco apodrecido. Por sorte encontramos ovos em alguns ninhos de pássaros e os devoramos ainda quentes, sob os protestos dos proprietários guardiões. Depois reforçamos a nossa refeição com minúsculos e saborosos cocos de ouricuri, apanhados ao pé de uma palmeira.
Já alimentados e com as nossas roupas secas, nos sentimos recuperados e resolvemos retornar na direção de onde viemos, na tarde anterior. Caminhamos quase todo o dia, agora encontrando muitos animais pelo caminho, que estiveram escondidos durante a chuva.
Antes de chegarmos ao local onde ocorreu o acidente, fomos localizados e resgatados por um helicóptero. Ficamos sabendo que éramos os únicos sobreviventes e que, provavelmente, tínhamos sido expelidos do avião, segundos antes do impacto com o solo, que o despedaçou completamente.
Passaram-se cinco anos, desde então. Apesar de todos os esforços que fiz, não consegui esquecer Marina. A chuva, a visão do campo, os pássaros, a música com o seu nome, tudo me faz lembrar da única noite que a tive em meus braços. Lembro-me ainda do seu sorriso triste quando veio até a enfermaria despedir-se e me desejar sorte. Mas não sei se, em algum momento, disse-lhe o meu nome.
------------------
Jardel Ramos