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Contos-->GAETANISES I -- 17/02/2003 - 21:09 (Andre Dembitzky) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


As roupas de Seu Gaetano já estavam bem surradas, gastas e provavelmente nem mais precisavam do dono para que fossem em direção ao serviço. Além de seus trejeitos já fazerem aniversário, Seu Gaetano possuía uma rotina irritantemente conhecida pela vizinhança. Mesmo aqueles que apenas usavam a rua como passagem, já conheciam ou haviam ouvido falar de sua figura. Seu Gaetano, pegava o ônibus 6419-A rumo ao centro cinco vezes por semana, vinte vezes por mês, doze meses por ano. Sem folga ou dia doente. Aos fins de semana ele saia alguns minutos mais cedo. Sempre a espera do 6419-A.
Fiscal dos Portos, Seu Gaetano era um velhinho que a cada dia de sua vida, parecia buscar a sublime perfeição no ato que acompanha a maioria dos funcionários públicos. A total incapacidade de tratar qualquer ser humano como um igual. A prepotência lhe era ferramenta necessária para viver seu imutável dia a dia. Sem bom dias, sem olás, nem mesmo um cordial resmungo social. Apenas o silêncio do caminhar com seus sapatos tabacow meia-sola e do aceno para o motorista.
Tamanha era a rotina, que todos os dias, no exato momento em que o ponteiro dos minutos atravessava o minúsculo espaço entre oito e trinta e quatro e oito e trinta e cinco, lá aparecia Seu Gaetano. Impassível, imutável. Na mesma velocidade de velhinho, rumo ao ponto do 6419-A. E para depois voltar exatamente as quatro para as cinco da tarde.
Sem filhos e sem esposa, as más línguas encontravam no rotineiro homem, terreno macio para plantar e adubar conversas e especulações silenciosas sobre como era ou o que fazia privadamente. Mas nunca se havia conseguido provar ou confirmar qualquer boato.
Por diversas vezes durante os fins de semanas, as senhoras da Liga Católica local, se reuniam para observar, numa espécie de revezamento quatro por quatro de olheiros, se Seu Gaetano deslizaria em sua rotina. O que com certeza renderia horas e horas, talvez até mesmo meses e meses de novos dizeres e boatos sobre o velhinho.
Talvez, se algum destes interessados tivesse tido a curiosidade de contar os passos que Seu Gaetano dava entre sua casa e o ponto, perceberia que eram exatos sessenta e três passos médios. Pisados da mesma maneira e no mesmo ritmo, por mais de quarenta anos.
A venda da esquina era o ponto perfeito para se observar mais detalhadamente suas feições. A porta de acesso lateral do local de compras dava direto no ponto do ônibus. Seu Gaetano ficava praticamente sempre na mesma posição, segurando seu chapéu de coco e um guarda-chuva, que com certeza ainda guardava um pouco da água do dilúvio.
A cara vincada pelo tempo, parecia ser a única força capaz de alterar aquele homem. Sua vida parecia boa, dentro do conhecido. Não possuía dividas nem mesmo dividendos. Não aplicava o dinheiro nem o esbanjava. Comprava sempre a mesma quantidade de comida na venda.
Mesmo sendo assim, a rua parecia viver a sua volta, ele era a peça fundamental da vida cotidiana do pequeno conglomerado de casinhas. As questões levantadas, as perguntas sem respostas, a curiosidade inata de todos nós. O querer saber. Aquilo matava qualquer um.
Os únicos que pareciam conhecer esta figura mais intimamente eram o coronel da reserva Martinez e o Padre Oscar. O Cel. Martins nunca comentava da vida alheia, reminiscências do posto militar que havia exercido, e que naquele tempo exigia o absoluto silencio de um homem. O Padre Oscar se esquivava das perguntas lembrando o voto de silencio. Patifes. O que custava contar um pouco? Pensavam todos.
Aos domingos Seu Gaetano percorria à noitinha, o caminho até a Igreja da Paróquia de São Agostinho. Uma pequenérrima igreja, apertada entre casarões imponentes. Um deles por sinal pertencente ao Cel. Martinez.
Mas voltemos a nossa figura. Seu Gaetano tinha por hábito comprar diversas revistas importadas, entregues por um garoto de outro bairro, sempre no mesmo horário. Obviamente este garoto já havia sido parado por diversas vezes pelos habitantes para um questionamento profundo, mas nada de estranho era descoberto. Seu Gaetano lia revistas de política, esportes e cotidiano. Tudo muito normal. Normal demais.
Anos continuaram a se passar, e a mesma coisa acontecia todos os dias. Os mesmos passos, o mesmo ônibus, as mesmas revistas e as mesmas roupas.
Tudo corria como sempre... até aquele dia fatídico. Um carro, vindo do nada, aparece e, no exato momento em que Seu Gaetano levantava o braço para pegar o velho 6419-A, Seu Gaetano é atropelado por um Volkswagen Kombi, 82 de cor verde e branca. Em cheio, de frente, subindo sobre a calçada.
Coitado, morreu. Na hora. Sem segunda chance, sem ambulância, sem um único suspiro. “E agora?” todos pensavam. “Quem avisar?” “Ele tinha parentes?”
Seus pertences voaram pelos ares, e a chave para a casa do rotineiro senhor estava lá, esparramada no chão, parecia gritar desesperadamente para que alguém desbravasse aquele reino lendário e revelasse aquela estranha cultura para a civilização exterior. Todos se entreolhavam, com ares de questionamento. Ninguém se disporia a tal façanha? Matar a curiosidade. Acabar com a angústia?
O corpo do morto estava ali, esfriando na calçada, e ninguém nem mesmo se preocupou em chamar o camburão do Instituto Médico Legal.
O padre que estava de passagem percebeu a movimentação e foi investigar. Inconformado com a situação tratou de chamar os papa-defuntos, deu uma extrema-unção atrasada, só para praticar e recolheu os pertences do morto. Menos a chave, que escapou do olhar cançado do velho padre.
Dona Marciana, a líder das velhocas curiosas, num ágil movimento alcançou a pequena chave de prata. Colocando-a no meio dos peitos, provocando um leve tremelico.
Horas se passaram até que alguém viesse bater à porta de Dona Marciana, questionando sobre uma receita de bolos, que nem mesmo ela sabia mais fazer. Sendo merendeira de primeira, isso era coisa rara.
Era a senhora do lado, uma velhinha de xale e viúva recente do marido marceneiro. A receita era só pretexto para perguntar sobre a chave. Dona Marciana não sabia o que faria. Entraria na casa ou não? Mexeria nas coisas do defunto? Revelaria o segredo, seria a desbravadora?
Após a velhinha do lado, outra senhora chegou, com desculpa semelhante: uma encomenda de doce de mamão. E outra chegou logo em seguida. E mais outra. E foram chegando, uma após a outra. Então foram os homens, o vizinho da frente, o dono da venda, os meninos e até os curiosos de outras ruas.
Todos ansiosos pela resposta da portadora da chave.
Dias se passaram até que o primeiro passo fosse dado.
Um mês após a morte do velhinho. Um caminhão se aproximou da casa de Seu Gaetano e estacionou de tal forma que era impossível se ver o que estavam retirando da casa e carregando no baú da transportadora. Chamada pelo padre, agora responsável por dar fim aos bens do falecido, a transportadora foi informada que seus funcionários não deveriam relatar a ninguém o que viessem a observar dentro da casa.
A retirada tomou uma tarde inteira, mas apenas um caminhão. Saindo exatamente as quatro para às cinco da tarde, o rastro de fumaça deixado preencheu o céu da ruazinha.
Todos haviam concordado, a chave seria entregue ao padre, que obrigado pelo voto de silencio nunca haveria de comentar nada sobre quem era realmente Seu Gaetano e como era sua vida pessoal.
O mistério seria mantido, e a rotina da rua nunca mudaria. As história, os boatos, as dúvidas persistiriam no mesmo ritmo. Inalteradas as vidas daqueles que ali tinham como morada e mesmo daqueles que apenas usavam a rua como passagem.
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