Seu Salomão era um senhor de 87 anos, que morava sozinho num sítio encravado entre duas serras na região da Borborema, na Paraíba. Sua rotina era quase uma penitência. Dizia o povo que ele acordava o galo e a noite cantava pras galinhas dormir.
Virava a noite piando igual a coruja ou gritando rasga-mortalha quando tinha raposa por perto. O velho conseguia o maior e melhor milho da região e o povo sem ter mais o que inventar, dizia que seu Salomão passava a noite urinando no milharal.
Foi exatamente a fama desse milho que me fez conhecer a história daquele homem...
“Eu estava cursando o 3º ano do curso de engenharia agrícola, e na ansiedade pertinente a todo jovem eu queria saber algo além da técnica, queria juntar as nuances da sabedoria popular, que sempre me encantou. Comecei a pesquisar casos que chamassem atenção e cujas técnicas fossem desconhecidas. Assim ouvi falar de Seu Salomão, que como já disse, tinha o melhor milho produzido na região”.
Foi uma aproximação difícil, já na primeira visita quando olhei aquele rosto a primeira vez, soube que seria mais difícil que pensava. Comecei a falar do propósito da minha visita e ele só ouvindo... Quando eu já estava há uns 20 minutos falando sem parar, ele olhou e com a voz quase sussurrando me disse “- você fala demais, tá assustando meus bichos”. Foi quando percebi que pela empolgação e achando que o velho era meio surdo, eu tava quase gritando. Pedi desculpas e o velho continuou: "- volte aqui amanhã, e se você conseguir repetir tudo que falou, palavra por palavra e falando baixo a gente conversa."
Passei a noite inteira pensando naquilo. Que tipo de teste é esse?! Ora, se eu que falei não consigo lembrar, imagine ele! Mesmo assim me esforcei pra lembrar, porém quando estava na porteira do sítio, resolvi esquecer tudo, inclusive da cara do velho ou de qualquer detalhe que pudesse tirar minha atenção. E como se o dia anterior não tivesse existido, eu me apresentei e comecei a falar, o único cuidado que tomei foi quanto ao volume da voz, quando terminei o velho disse “vamos conversar”. E como condição pediu para ouvir com atenção e escrever a sua história...
- A história desse milho começou quando eu tinha 18 anos, era um vaqueiro promissor e também já era noivo, minha noiva era a moça mais bonita da serra da Borborema e era louca por mim e eu, como a maioria dos jovens, era pura arrogância e sendo vaqueiro bom então. Além de tudo isso eu era muito ganancioso, sonhava em ficar rico, ter fazendas, poder e tudo o que o dinheiro pudesse comprar. Certa noite, estava numa festa de vaquejada quando um fazendeiro pouco mais velho que eu (tinha herdado muita terra recentemente) se apresentou e na maior cara de pau disse que estava apaixonada por minha noiva. Minha primeira reação foi a de partir a cara dele, mas ele com toda calma disse:
- Eu quero fazer negócio com você: eu lhe dou minha maior fazenda em troca de uma tentativa de conquistar sua noiva. Se eu conseguir, você se afasta pra sempre, caso contrário você volta pra sua noiva e fica com a fazenda.
Só pensei em como minha noiva era apaixonada por mim e como seria fácil ganhar aquela fazenda. Não titubeei e aceitei a proposta com a prepotência que me era peculiar. Nisso, por trás de mim, estava Joana, irmã de Adélia minha noiva. Joana correu e contou não só para Joana como também para os pais que eu acabara de trocar minha noiva por uma fazenda. Uma hora depois do maldito trato, eu recebi o recado que o pai de Joana estava atrás de mim querendo me matar. Foi nessa hora que toda coragem que eu pensava ter, desapareceu, e a sensatez da covardia gritou no meu ouvido... SUMA!
Passei um mês sem parar em lugar nenhum, até que recebi notícias: meu ex-sogro ainda me jurava de morte, principalmente depois que o médico comprovou que Adélia ficara louca. Andava perambulando até que encontrei um velho no meio de uma picada, sentado de frente para uma fogueira, assando um pedaço de toucinho, e antes que eu falasse qualquer coisa ele me perguntou:
- O que você faria para recuperar a vida que você tinha?
- Qualquer coisa! – respondi
- Seria capaz de empenhar sua alma?
E como erro nunca vem só e desgraça só anda acompanhada, sem demora eu gritei:
- Só se for agora!
- Pois o trato tá feito: daqui a trinta dias pode voltar. Ninguém vai lhe perturbar, só eu estarei lhe esperando para você assinar o contrato. Não tente me enganar, você não irá conseguir.
Falou isso e entrou no meio do mato, desaparecendo. Quando eu cheguei perto da fogueira pra me esquentar, a fogueira apagou e o que era brasa esfriou, ficando apenas o pedaço de toucinho meio queimado. Eu com medo, mas também com fome, mordi aquela carne gordurosa. Nessa hora o toucinho deu um grito e saiu pulando pra dentro do mato. Só ouvi a gargalhada do velho ecoando dentro do mato. Até o dia amanhecer eu tava todo arrepiado e com os olhos ardendo com medo de piscar... Eu acho que nunca senti tanto medo.
Passaram-se os trinta dias e eu voltei pra cidade. Já na entrada eu cruzei com o enterro de seu Adelson, meu ex-sogro, que havia morrido de parada cardíaca após a fuga de Joana com o trapezista de um circo que apareceu na cidade.
Era muito desgosto pra um homem só: Adélia enlouqueceu, a esposa suicidou-se dez dias atrás, tomando todos os remédios que tinha em casa, inclusive os de Adélia, e por último a filha Joana foge com um circo. E isso tudo eu fiquei sabendo só no começo do cortejo do enterro... Surpresa grande foi quando cheguei no caixão e lá estava o velho segurando uma das abas. Ele riu pra mim e disse: “até mais tarde”. Correu um frio na espinha a procura do osso do mucumbu que eu pensei que as pernas não iam agüentar.
Entrei no primeiro bar e tomei logo uma talagada de cana e quando já estava para escurecer, encontrei o velho que me chamou e disse: "- vamos assinar o contrato?"
- Com esse contrato, sua alma agora me pertence. Estou fazendo minha parte devolvendo a vida que você tinha e que você vai desfrutar por exato um ano. Após isso você é todo meu.
- Seu uma ova. - Esbravejei!
- Como não?! Você me vendeu sua alma e pensa que pode tirar o corpo fora?
- Vendi nada! Lembro muito bem que você perguntou se eu empenharia minha alma e empenhar não é vender... E tem mais: se eu soubesse que você faria tudo isso pra poder deixar o meu caminho livre eu não teria aceitado.
- Meu jovem vamos por partes, **** você está certo, sua alma está empenhada a mim mas as condições não são favoráveis a você, por isso eu já considero minha a sua alma.
- E quais são as condições?
- Pela natureza do contrato, eu sou realmente obrigado a dizer: você tem um ano para ganhar o 1º lugar em dez vaquejadas e doar o prêmio de todas elas para a igreja. Caso consiga isso, vem a parte mais difícil ainda: vai ter vida longa e solitária, jamais poderá casar ou até mesmo namorar e caso se aproxime de alguma mulher, ela terá o mesmo destino de Adélia. Passará o resto da vida exercitando a humildade. Cada vez que for prepotente ou arrogante, será acometido por um problema de saúde e mesmo cumprindo tudo isso sua alma só não irá pro inferno, se você conseguir alguém que vá em seu lugar. Porém, você não pode pedir pra ninguém que faça isso por você, essa pessoa terá que pedir pra trocar de lugar com você.
- Mas quem faria isso sem algo em troca?
- Para isso te daremos um dom, que você poderá trocar quando alguém se mostrar interessado.
E assim tem sido minha vida desde então, esse dom para plantação de milho, pode ser usado em qualquer cultura agrícola, porém só posso passar para outra pessoa nessas condições. ”
Ainda estava formando em pensamento a frase “eu quero esse dom pra mim”, quando senti um cheiro insuportável de toucinho queimado e uma voz rouca no meu ouvido dizendo: -assine aqui!