Lágrimas grossas e salgadas deslizavam pela pele delicada do rosto angelical daquela criança e rolavam até sua boca deixando ela com um gosto amargo, enquanto o mesmo amargor dolorido invadia a sua alma.
Uma dor forte e intensa atingia o seu peito e ela tinha a impressão de ter o seu coração fragmentado em partículas pequenas, se tornando insensível à outra coisa além do sofrimento pelo qual era atingido.
Outro sentimento que também dominava aquela criança, naquela hora, junto a essa dor que a enchia de desespero, era um medo enorme de enfrentar a vida e viver o dia de manhã.
Vergonha, ela sentia muita vergonha e isso aumentava o seu desespero fazendo-a ficar confusa e sem saber o que fazer.
Ela estava sentada em seu quarto, com os olhos cheios de lágrimas e vazios, olhando para o nada. Revivia em sua lembrança os momentos terríveis e humilhantes pelos quais passou naquele entardecer, triste e nebuloso, no caminho pelo qual voltava da escola.
Ela era uma menina bonita e inocente que vinha sempre da escola com suas amiguinhas, todas crianças como ela, brincando e cantando cantigas de roda ou colhendo flores do campo pelo caminho para levar pra sua mãe colocar no vaso que tinha na sala de sua casa humilde. Como morava mais longe da escola que todas as outras crianças, quando passava pela casa que a última amiga que a acompanhava morava, ela deixava ela ali e ainda tinha de caminhar por muito tempo através de um caminho solitário para chegar até a sua.
Naquela tarde ela caminhava depressa porque já era tarde, e ela queria chegar em casa antes que escurecesse, quando foi abordada por um homem magro e alto com a barba por fazer:
- Menininha, por favor.
- Sim senhor, ela respondeu com educação apesar do susto que sentiu ao ver aquele desconhecido surgir do nada naquele lugar ermo.
Ela não tinha terminado de responder, quando teve a sua boca tapada pela mão daquele desconhecido e foi arrastada por ele com violência para um bambuzal cerrado que havia na beira do caminho.Nele, ao som dos gritos lamurientos, dos pedidos por piedade e o choro convulsivo da pobre criança, ele a estuprou.
Quando aquele animal a largou, jogada entre os bambus, ela foi para casa abalada com o que lhe tinha acontecido e quando lá chegou escondeu de todos o que tinha acontecido. Trocou de roupa e depois sumiu com a que estava usando quando voltava da escola, que estava toda manchada de sangue, sem que ninguém visse.
Foram os mesmos sentimentos que agora a torturavam, o medo e a vergonha, que fizeram com que ela agisse assim e escondesse de seus pais e de todos a desgraça que lhe tinha acontecido. Só a sua boneca de louça ouviu seus lamentos e foi testemunha do desespero que a dominava e de seu sofrimento.
Ela sentiu naquele momento um pulsar de vida dentro dela e, apesar da sua inocência, seu instinto de mulher lhe deu a certeza da conseqüência maior da desgraça que tinha lhe acontecido. Ela teve certeza que estava grávida daquele desgraçado que a tinha estuprado.
Olhou e viu sua boneca velha e quebrada, que tinha só um olho de vidro. Sua primeira boneca, que ganhou quando ainda era bem pequenininha e ainda era seu brinquedo predileto.
Seu olhar correu até o material escolar que estava espalhado sobre sua mesa de estudos. Cadernos, lapiseiras,canetas, tintas, seu livro de matemática, os mapas que a faziam sonhar com viagens e com terras desconhecidas e encantadas.
Parou o olhar sobre um estilete de cor amarela que usava para cortar papéis quando fazia os seus trabalhos da escola. Agindo como se tivesse hipnotizado por ele, ela caminhou como uma sonâmbula até o estilete, pegou-o e passou sua lámina afiada em seu pulso.
Horas depois seus pais a encontraram, já sem vida em meio a uma poça de sangue, caída sobre o chão do quarto.
A boneca de louça toda desconjuntada, jogada em um canto do quarto, foi ytestemunha dessa tragédia cruel. Seu único olho via aqueles pais e o desespero deles quando viram sua filha, estendida sem vida no chão do quarto, sem entenderem o porque daquela desgraça.
A boneca era a única que compreendia tudo, pois tudo aquilo que a criança tinha escondido dos pais e de todos, ela tinha contado para a sua boneca querida.
CARLOS CUNHA
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