Não deve demorar. Há de não demorar. Colocou as botas, como um último gesto. Último. Deixou-se escapar ar entre os lábios por assim ser. Olhou-se no espelho, colocando os cabelos atrás da orelha. Quis se achar bonita, e até pôde, depois de fitar-se por alguns longos minutos àquela, estranha que persegue ela, desde tanto, tanto tempo, desconhecida. Sombra da sombra dela.
Ela por mais que fosse o tempo todo, o tempo que passou, ainda não sabia como se olhar no espelho. Não via que tinha corpo de mulher porque não gostava do seu corpo. Não via que era mulher porque não gostava dela mesma. Ás vezes podia sentir repulsa ao olhar-se, a ponto de querer a destruição antes tanta... E suspirava. Ela. Uma mulher ali, acinzentada, meio torta, meio triste, persistia a estranheza de ser ela aquela, mas ainda sorrindo, sem dente, sem graça, sorriso tira colo de quem não sorri falso, de quem falta vontade e disposição até física pra abrir a boca e exibir os dentes e que mal quer mexer algum punhado de músculos até pra isso. Boca dela cerrada e condenada. Quase sempre. Por falta de vida que desse força à boca dela. Por escolha própria de querer ser morte, oca e inútil, antes qualquer vida mais, e manter o sorriso, entre aspas, inflexível e sem sentido, sem corpo, mudo e petrificado, calmo, morto, como deveria ser, como só podia ser. Ela. Que até parecia vazia e ter algum controle sob a vida, por ser ela morte, ou tentar ser.
Sentou-se no sofá, apoiando o queixo com o punho tirando a carne do rosto do lugar, como se o rosto pesasse sobre os dedos. Inclinou a cabeça para trás. Esperando a hora, seja lá qual fosse. Acendeu um cigarro. Deu uma única tragada e o segurou entre os dedos apenas, por um longo tempo, enquanto encarava a manhã esfumaçada por entre os olhos. Soprava a fumaça pela boca entreaberta que pairava na frente do rosto e que ganhava cor de Sol da janela aberta e mal coberta pela cortina vagabunda de tecido fino demais. A luminosidade quase descarada, da manhã cínica. Viva e solta no mundo, sem precisar de ninguém. Brilhando. Claro por demais aos olhos. E o rosto caindo pra resistir à luz. Como se Deus quisesse mostrar o obvio e não pudéssemos ver justo pela claridade. A vida sem a vergonha caritativa dos dias nublados e de luz pálida. A manhã nua e dourada. Verdade escarrada rente aos olhos, como ofensa, sem nem pedir permissão. Sem dó do rosto que pesa, do corpo que pesa, da vida toda que pesa frente a vida.
Era cedo. Algum som vivo cidade afora, na hora silenciosa das cidades prestes a fermentar. Remetia-se ao silêncio por ser mais fácil do que constatar qualquer coisa sobre si mesma, qualquer causa "nobre" que mereça alguma inclinação, por pura e simples preguiça. Remetia-se aos olhos vivos e o comentário mudo das coisas que iam do trivial ao nada. O silêncio, enfim, improdutivo e santo. A boca dela cerrada. E os olhos entregues à luz, sem fechá-los ou diminuí-los jamais só por causa da luz.
Sentiu o estômago reclamar. Sem tempo pra comer. Sem mais tempo pra nada, e nada de mais tempo. Ah, não. Tenho preguiça, agora chega, vai embora, tempo, e não volta, que de você eu não quero mais nada. Tempo, tanto, em tão pouco. Tanto, tanto. Os anos rasteiros até pra ela que era jovem e já estragada, suja, podre e despedaçada. Sabida de tudo. Viu e fez de tudo. Tudo. Ela tão longe do mundo. E grande. Tão grande que mal cabe nela mesma e mal se suporta sobre as pernas, alta e velha. E castrada, dada por vencida. Ela, a possibilidade morta ambulante, o epitáfio que espera cadáver com a cova recém-aberta e fresca, cheirando a terra úmida. Vai e vive, sem se notar, não querendo incomodar a vida apenas. Só esperando, esperando, esperando... O tempo acabar.
Colocou a mão na barriga, tentando aquietar a fome. Fechou os olhos enfim. Em vez de ter a vista negra das pálpebras, tinha vermelha, da luz da manhã nos olhos. Dizia que assim se visitava o Sol...
(trecho de um mega-conto, ou, quem sabe, um futuro romance)