Você passa dez anos da sua vida se fodendo, trabalhando feito cachorro com coisas que são horríveis demais para uma criança, e mesmo assim acaba indo tudo por água abaixo, tudo. Quando me cataram da rua para um orfanato, eu nem doze anos tinha e não sabia falar porque me examinaram da cabeça aos pés e disseram que tinha problemas mentais e amnésia. Com pouco tempo, um homem me levou embora depois de assinar um monte de papel e fui colocado para trabalhar com ele, numa casa de velórios. A primeira coisa que aprendi a fazer foi lavar e arrumar os defuntos e, mesmo que eu morresse de medo deles, o homem nunca me perguntou nada porque, graças a minha mudez, deixava transparecer que estava tudo bem, tudo bem um porra, eu nem conseguia alcançar alguma coisa em cima de uma geladeira, quanto mais ficar penteando gente morta. Eu era uma criança doente que não lembrava de nada que tivesse acontecido antes de ser encontrado pelos assistentes sociais; tudo o que eu tinha comigo era um monte de cicatrizes nas pernas, braços, costas, um olho furado e pedaços da orelha faltando. Dentes quebrados, unhas defeituosas, abuso sexual. Não entendo até hoje como alguém quis me levar de lá, só podia ser para fazer um trabalho daqueles; e ainda assim, pelo menos me dava comida e um buraco no fundo da casa para dormir, com um vaso sanitário e uma pia no meio. Doze anos, filhos da puta, doze anos. Quando cheguei aos quinze eu já conseguia chamar as pessoas pelo nome com uma certa dificuldade, e com os dezessete eu lembrei que sabia ler e roubei um dicionário do dono da mortuária, que ficava na sala dele, perdido em uma gaveta bagunçada; comecei a ler aquele negócio e a procurar significados para um monte de palavras que vinham na minha cabeça aleatoriamente, e tudo o que eu encontrava eram mais confusão e esquecimento. Um dia, numa das raras ocasiões que sai de dentro da casa, descobri um quarto nos fundos, isolado no fim do quintal da casa vizinha, abandonado e cheio de livros. A partir daí, o que eu não lia escondido, roubava; um paraíso escancarado para a minha solidão, com volumes carcomidos e fedorentos, clássicos apodrecendo, apodrecendo, como as carcaças que eu lavava e engomava para dentro do caixão, e que me perturbavam noite após noite, entrando nos meus sonhos, invadindo meu buraco e me puxando para debaixo da terra até eu morrer asfixiado, engolindo lama com os ossos do corpo quebrando, músculos partidos e pele lacerada. Kafka, Goethe, Dante, Homero, contos de fadas, estórias de horror e aventura, tratados científicos obsoletos e empíricos, Shakespeare, Nietzche, Borges, Balzac, dor, dor, dor. Li e reli tudo, decorei trechos e copiei nas paredes do buraco em que eu dormia, sempre pensando que, quando algo desse certo para mim, eu teria mais e, quem sabe, conseguiria escrever as minhas próprias estórias, cheias de mortos caminhando em nuvens de algodão, recitando versos embalados na música dos anjos. Tolstói, Cervantes, Azevedo, Byron, Voltaire, douleur, douleur, douleur. Passou o tempo e eu já tenho quase vinte e dois, não sei que dia nasci por isso escolhi a data de hoje a alguns anos atrás para comemorar meu aniversário sozinho. Nunca me deram parabéns porque eu não falei para ninguém desse dia, isso é algo só meu, e parece que não lembram jamais que até o limpador de defuntos faz anos durante o ano. Nem o dono da mortuária, que me levou do orfanato, nem o motorista do opala, nem a secretária, ninguém, ninguém. Se eu os via mais que uma vez ao dia, era muito; eu não gosto de gente e talvez nunca venha a gostar, viver em sociedade é uma coisa muito difícil para mim, sei disso porque vi nos livros brigas, intrigas, infelizes machucando amigos por nada, vagabundos, traidores, prostitutas, homens baratas e advogados desgraçados, todos escorrendo para dentro do meu buraco, fazendo a arte e a dor se confundirem numa ferida só. Para o inferno com isso, eu me sinto um perigo em potencial para essa corja, e tudo o que eu quero, do fundo do meu coração, é afoga-los na minha latrina de pus e merda, sangue e secreções. Muita sujeira, como as capas rasgadas dos meus livros ou os caixões sem uso nas quinas da mortuária. Parabéns para mim, parabéns, não lembro de nada, nem de meus pais, nem de meu nome, mas mesmo assim vou apagando uma vela preta de sete dias, acesa em cima do vaso sanitário, porque isso foi tudo que consegui. Dor é arte, arte é dor? Carcaças e nada mais.
* * *
Encontrei com ela chorando na beira do caixão aberto da carcaça cheia de algodões no nariz, a cara costurada da morte violenta. Deu trabalho para arrumar, pobre coitado; refiz o contorno da boca, mas ficou meio torto porque desde ontem que minha mão treme e não me sinto muito bem. As lágrimas dela caíam em cima de flores secas e desde as dez da manhã ela estava lá, presente, sofrendo por causa da perda. Haviam poucos outros junto, fiquei observando tudo pela fresta da porta que dava para o salão, e li na coroa de flores o nome do defunto e as mensagens de saudades. Engraçado, nessas horas eu ficava pensando, será que se fosse eu dentro do caixão, teria alguém para chorar? Mesmo que não tivesse ninguém, eu sempre choro a noite por todos aqueles que eu lavei e preparei para o velório, porque eles sempre fazem falta para mim por serem alguém para conversar, por serem pessoas boas nos meus sonhos e criaturas terríveis nos meus pesadelos, erguendo degraus de ossos até o sol, até o sol não, até a lua, eu sou uma criatura da noite. Uma imagem formando, deformado e choroso. Quando voltei a mim, estava escondido atrás da porta soluçando feito uma criança, mas não escutaram nem me viram. Eu era meio que proibido de circular pelas salas de velório porque o dono da mortuária deixou mais ou menos implícito que não era para eu assustar ninguém. Eu sempre soube que era feio, caquético, horroroso, mas não me deixar chorar por um desconhecido que eu havia arrumado com minhas próprias mãos junto de seus amigos e familiares era crueldade. E ela continuava lá, meu Deus do céu, parada, com os olhos quase caindo de tão pesados, pálpebras inchadas e cílios úmidos, sem maquiagens. Esses ritos não são necessários, só servem para fazer sofrer mais, só fazem me machucar mais, Semmelweis, Newber, Halsted, Mikulicz, Pozzi, tristesse, tristesse. Quem sabe, daqui a algum tempo, já tenha passado toda essa tristeza no coração dela? Sempre foi assim, mas no meu nunca passa, nunca passa. Não há tristeza no mundo suficiente para mim, nem rancor, nem raiva, nem esquecimento por eu não me lembrar de quem eu era e por viver me lembrando de quem eu sou, tétrico, horrível, mutilado. Voltei para meu buraco para riscar a parede e reler trechos, Baldelaire, Freud, Rimbaud. Escrevi alguns versos no teto porque o espaço já havia praticamente se esgotado; palavras juntas, desconexas, que por si só não faziam sentido naquele momento, mas que teriam seus próprios instantes. Será que ela iria estar lá amanhã novamente? Essa era a pergunta que me vinha todo fim de noite, acordado, olhando a lâmpada do buraco balançar com insetos ao redor. Como pode uma criatura da noite ter medo de escuro e dormir de luz acesa, com a cabeça enrolada no lençol? Pensava nos lábios dela, azuis, da cor dos bicos dos seios. Pode alguém ter bicos dos seios azuis? Ela podia, de tão tênue que era, fugaz, quase uma névoa de quem eu bebia as lágrimas. Blumberg, Rosseau, Lasegue, Lennon, eu queria morrer como o Morrisson, como Mozart, like a fallen star. Virar um caco no tempo, flutuando em algum lugar onde fosse possível ver todos eles, vivos, mortos, olharem para mim e sorrirem. Bicos azuis, ela tem olhos violeta, cabelos dourados, não, são verdes, eu não conseguia lembrar direito, só me vinha a pele frígida, capaz de dissolver o negro de tão branca. As minhas mãos tremiam muito mais, tosse, tosse, os ossos pareciam se rachar de frio. Quando me cataram na rua eu deveria estar daquele jeito também, delirando, eu estava delirando, será? Os olhos lacrimejando sem querer chorar, quer dizer, eu queria chorar mas eu não tenho certeza, tremendo, dentes trincando, coração disparado, vontade de urinar, com um pedaço de sol ardendo dentro das minhas entranhas, ela vestia véus feitos com folhas e flores, do povo das fadas, os cabelos, verdes ou dourados? Não importa, com laços e fitas prateados refletindo-me perto dela, e os bicos azuis, asas de uma borboleta, e eu deformado como nunca para torná-la mais linda do que antes, por contraste. Sim, amanhã ela estaria lá novamente, chorando por outro morto, todo dia era a mesma coisa, ela chegava as dez, se juntava aos familiares e começava a chorar, chorar, se lamentar e exibir a perda infinita. Todo dia, a um bom tempo, ela vinha e fazia suas homenagens ao defunto desconhecido que eu arrumava com tanto carinho, até a última pessoa ir embora ou o corpo ser levado para o cemitério. Como pode alguém ser tão sensível, tão doce? Uma orquídea no mel, Camões, Wilde, Mandelbrow, Joyce, Poe, I m so sorry about ourselves. Eu não sei o que será de nós, nem quando nossos olhares se encontrarão, nem se irei acordar aqui amanhã, porque amores secretos são os únicos verdadeiros e talvez nada disso realmente importe. Na verdade, nossas histórias, a minha, a dela, a deles, mortos, vivos, carcaças e nada mais, se confluem, fátuas, trêmulas, como um único fragmento de um fractal, para sumir para sempre, esquecido, aliviado, infinito, perdido dentro de sonhos que nunca deixarão de ser.