O velho desfaz a mesa, empilha, com cuidado, a louça dos filhos e dos netos, raspando os restos de comida num prato só, recolhe os talheres e passa reto pelo lugar vazio antes ocupado pela esposa, há anos, falecida. O velho vai lavar louça ouvindo velhas músicas francesas. Canta um pouquinho, murmura a maior parte do tempo. Sorri, as vezes, com alguns versos, que só ele na tarde de domingo entende. Como segredo.
Oui, diz sozinho. Oui, madame. Coça a testa com a parte detrás do pulso. Pára por um segundo para ouvir um verso favorito. Suspira e volta à louça. Não deixa escapar cansaço, ou velhice nos gestos, no ritual mágico que os netos assistiam depois dos almoços de domingo, a expressão de fantástico como se ouvisse as músicas preferidas pela primeira vez, sempre. A boca entreaberta, os olhos brilhantes e algumas palavras soltas em acompanhamento, sozinho, como prece. E naquela língua tão estranha e afiada. As vezes, erguia uma das mãos e a balançava com as notas. Os pratos, talheres, copos, ignorados, guardavam-se na pia, já sem atenção do velho...
Respirava e vivia, recolhido, sutilmente, apático, já sem se importar com os anos, os dias, as pernas fracas, as costas, a saúde, os filhos crescidos. E sem comiseração de si mesmo, principalmente. Os outros faziam isso por ele, mesmo que não servindo pra nada. Não apreciava, nem desgostava do que via da vida que ainda corria, desvairada, lá fora, apenas a sorvia, aceita, porém sem entrega impassível. Teve o suficiente. E pronto. Agora, espera. Já não teve tempo, já não teve nada. E agora, tem todo o tempo do mundo, até pra largar a louça e cantarolar, enquanto os filhos e netos honram um domingo de descanso, já sem a mulher, a companhia pela vida e, ah claro, a juventude ignorante e romântica, tão forte, bela e inútil.
Carolina vê tevê ao lado do marido. Eduardo lê jornal de domingo, a namorada deve estar a caminho. As crianças, filhos de Carolina, brincam no chão. Todos os domingos, os filhos do velho aparecem para almoçar em família, para dizer, apenas dizer, que fazem companhia ao velho patriarca. Trazem os netos e seus brinquedos, alguns pratos feitos em respectivas casas para compor o almoço, e alguns assuntos banais a serem discutidos levianamente. Apenas para manter contato. Nem conversam tanto assim com o velho, já nem são tão íntimos ou familiares. Bastaria a companhia, a presença, o almoço...
O velho guarda os pratos, os copos, os talheres. Lembra que isso era tarefa da esposa, que não sabia cozinhar e ficava com a parte de apenas fazer e desfazer as mesas, o que fazia muito bem, para compensar a falta de tato na cozinha. O velho cozinhava. Aprendeu na guerra, fazendo comida para os soldados. E continuava a ouvir as mesmas músicas francesas dos anos atrás. Os mesmos refrãos com as mesmas velhas vozes, provavelmente já todas mortas, levemente roucas. Le rouge et le noir, ne s´épousent-ils pas. Murmura, feliz, com água nas mãos.
A mulher do velho não falava francês, repetia os versos como ouvia, para ele, na hora de dormir, por simples agrado ingênuo. Já nem consegue sentir saudades da mulher. Por gratidão. Ter mais dela, seria exagero. Tudo já foi tão bom, como ele nem poderia esperar. Então, não sente prazer ou dor com a falta, os dias, exceto o domingo, que passa sozinho e os lugares vagos pela casa, e todas as outras coisas perdidas. Non. Tem satisfação... Já não sente saudades de nada. Teve o suficiente, merci bien! Por fim, a velhice o levou a saciedade. Maturou-se. E, pronto.
O velho enxuga as mãos e passa-as sobre o rosto marcado de rugas. Suspira. Bisbilhoteia a sala, esgueirando o pescoço da cozinha. Ri do neto caçula que acabou de perder o equilíbrio tentando se levantar e caiu. E agradece a Dieu pela felicidade.