Se o quarto se iluminava do azul mortiço de uma janela salva da penumbra, então a roupa tinha que ser esta: o vestido azul inteiriço, com os acessórios habituais para a meteorologia de um céu sem nuvens. A pele branca do rosto anilava as olheiras profundas, mas meus olhos insistiam negros e opacos, como se nunca tivessem sido azuis. Que fazer com mais esse desencontro? Enquanto me aprofundo no reflexo desse prisma que me acontece, me compreendo uma personagem em filme preto e branco colorizado após. Artificial! Mas se estou desmaquiada ainda - e eu havia esquecido mais esta: de cara limpa pareço ser tanta gente, menos eu, porque sou tantas. Quando me viro para a prateleira de meus rebocos, compreendo que o que era disfarce virou acessório indispensável. Sem meus retoques, perco a silhueta, eu, que não sei caminhar sem saltos-agulha. Não sou deserta. Tenho lá meus bilhetes de recordações. Eu sou tudo isso que eu habito. E não tenho nenhum temor nem constrangimento em chegar a esse ponto débil de uma existência parda. Por isso, digo, sussurrando ao lóbulo da orelha úmida: “Quando eu viajar por outros mundos, queime, queime cada rastro meu. Até mesmo a casa toda. Senão teimarei em existir”. Na gaveta emperrada digladiam-se minhas digitais com a grife de uma caneta. O sabonete que usei uma vez só numa viagem a Goiás, guardei-o com zelo, embrulhadinho em papel de seda – o sabonete me lavou o corpo naquela ocasião na pousada. Sob a espuma seca, repontam células mortas da pele que me vestiu um dia. Células resistentes à espuma que se depositou seca no sabonete que foi sabonete só daquela vez. Não tenho existência certa, um corpo só não me basta. Prefiro ser uma nuvem plena de gotículas que vão desabar e correr enxurradas até o primeiro rio, depois evaporar e arremedar o círculo até ser nuvem de novo – presente, passada, futura, infinitamente. Sou meus comentários muito mais do que vivo de minha figura. E pensar que alguém guardará de mim uma imagem física, alguém que se lembrará do dia em que passei num relâmpago, montada em minha própria paisagem. Esse instantâneo algum coração me roubou. Mas, enquanto eu passeava, eu não era. Dentro de mim havia um algo que, esse sim, era eu mais do que a de mim que passeava ao vento de uma manhã de março. É, os olhos se traem e, não poucas vezes, brincam de se enganar.