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Contos-->O resto de todos -- 26/03/2003 - 08:20 (José Ricardo Mendes Oliveira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O sol da manhã rasga as frestas do trapiche onde durmo, bate e atravessa minhas cianóticas pálpebras contraindo minhas pupilas. Dia após dia a mesma situação se repete, a luminosidade me enxota do meu frio ninho para as ruas da cidade.

Ao me levantar vou até a varanda do trapiche e sinto sob meus pés descalços a madeira quente com suas farpas inóspitas. O sol já está a esquentá-la por pelo menos duas horas.
Com um bocejo longo e surdo me sento no chão de madeira e observo o vasto terreno baldio que outrora fora um belo jardim. Debruço-me para tirar uma farpa de madeira que, de forma repressora, penetrou meu dedão. Levo cerca de cinco ou dez minutos para começar a pensar, o estímulo para o pensamento vem com o revolver gasoso promovido pelo peristaltismo estomacal, estomago vazio urra de fome.

Em um movimento mecânico e instintivo vou até a porta do meu velho trapiche e depois de duas ou três tentativas frustradas, consigo vedar a entrada com uma ripa de madeira velha.

Logo no início da descida da ladeira posso ver, cerca de cem metros, a padaria que me serve o café da manhã, café que se resume em dois ou três pães velhos e amanhecidos. Como, sem nenhuma restrição ou escolha. É o que eu tenho. O que mais eu poderia esperar?

Quando estou a comer na sarjeta o velho pão amanhecido um cliente da padaria me olha com desdém e me perfura com seu olhar de repulsa. Sacando que sou indesejado, meto o pão na boca e continuo minha sistemática caminhada ladeira a baixo.

Neste dia quente de verão resolvi modificar o caminho de sempre, ao invés de convergir à direita, logo que chego na casa de presentes, continuei a descer a ladeira. Ao passar pela casa de presentes fui saudado pelo balconista que, sempre meu amigo, me oferece um gole de água fresca direto da mangueira da torneira. Sou reticente a este tipo de oferta, muitas vezes são enganosas, quase sempre tem alguém novo na loja ou até mesmo o dono está presente e me hostiliza de forma cruel. Aceno e vou embora.

Neste novo caminho descubro coisas novas, como uma casa de doces. Na porta um mendigo pede uma esmola ou algo para comer, no mesmo momento o dono esbraveja e só não empurra o mendigo porque este estava muito sujo. O velho mendigo, corcunda por natureza, sai desolado mas mostrando experiência com tal situação.
Como estou a cerca de dez metros da cena, pude observar que algo avia de errado. O mendigo pode não ter se expressado corretamente, então me dirijo até a porta da doceria.

A tática é nunca se aproximar muito, fico um pouco antes do meio fio, na rua, assim o sujeito não pode sentir meu odor fétido. Lanço sobre ele um olhar exausto e bondoso, mostro minhas feridas na testa, provenientes de uma dermatite qualquer, e me posiciono um pouco na lateral para que ele possa ver minha cicatriz, oriunda de um atropelamento.
O indivíduo me olha, percebo leves contrações em seus músculos do braço, finjo medo e ameaço logo correr. Logo a traz dele chega o que parece ser um outro funcionário, me olha em silêncio e finalmente diz para o outro:

- Judiação...deve estar com uma fome danada.
- Será?
- Com certeza, olhe só a magreza...isso deve levar um cacete por dia, olhe só a cicatriz nas costelas.
- Nem pense em lhe dar algo, é dar e acostumar, amanhã estará aqui de novo pedindo.
- Que nada, vamos fazer nossa parte que amanhã é outro dia. Vou pegar o resto que os clientes não comem e as bordas de chocolate que estão no pé do forno.

Neste momento, para confirmar que não iria incomodá-los novamente, esboço uma retirada desolada. No mesmo instante, o rapaz que estava na porta me pede para esperar. Do fundo da doceria vem o outro com as mãos cheias, chega no meio da calçada lançando sobre o morno asfalto os restos de chocolate. Vou comendo fragmento por fragmento, chegando a lamber os beiços. Agradeço com um olhar que diz mais quer muitas palavras e vou embora. Da esquina de baixo, o mendigo que fora hostilizado me olha perplexo.

Seguindo em frente, observando o novo e contagiante caminho, pude sentir um cheiro provocante de comida amanhecida. Da esquina que estou olho à minha direita, um andante de rua revira uma grande lata de lixo que está ao lado da porta dos fundos de um restaurante. Ao me aproximar o andante percebe minha presença, me olha fundo nos olhos. Ele parece saber como a vida nas ruas é difícil, mas não dá o braço a torcer.É a lei da sobrevivência: Se me oferece a lata, ele fica sem! Em uma demonstração de afeto, ele diz:

- Coma, mas coma o que eu deixar cair no chão.

As sobras são poucas, mas extremamente ricas: macarrão, bordas de carne tostadas, grãos de arroz e molho. De tão absorto que eu estava com os restos não pude perceber que o cozinheiro saia da porta, e em um movimento furtivo deu com o cabo da vassoura nas costas do andante, este emitiu um som doloroso e se afastou. Patinei e me afastei também, na verdade acho que não fui nem notado.
.O cozinheiro parecia conhecer o infeliz, pois disse empunhando o cabo de vassoura:

- Todos os dias eu tenho que limpar esta imundície que você faz na calçada, vá comer restos nos quintos do inferno.

À distância percebi o andante se afastar, ele massageava as costas que foi alvejada pelo golpe certeiro da madeira.
Neste instante o cozinheiro percebeu minha presença, olhou nos meus olhos por um instante, pareceu refletir e disse:

- O que queres, apanhar também?

Baixei a cabeça e lhe lancei um rápido olhar de pestanas. Virei-me olhando para traz e parei, voltei-lhe o olhar desta vez perfurando-lhe o véu do preconceito. Mostrei toda minha vulnerabilidade e aspecto de fome. Ele me encarou, desceu o degrau da porta e encostou o pau na parede. Após titubear por algum instante, enquanto repunha a bagunça proveniente do revirar, ele se virou para mim e disse:

- Aguarde só um instante, vou ver se acho algo para você.

Deu-me a costa e entrou porta adentro resmungando não sei que. Após alguns segundos lá estava ele de volta, nas mãos, semi-embrulhado por um jornal, uma bela porção de arroz e frango cozido, ainda quente por sinal. Colocou sobre a sarjeta o belo prato e disse:

- Isto é por sua discrição, tem gente que não sabe pedir e apronta bagunça para a gente limpar.

Aproximei-me da refeição e comecei a saboreá-la.Pude perceber que o cozinheiro me observava à distância. Ainda mastigando, lambi os lábios engordurados e olhei para ele que, com o olhar compenetrado disse:

- Que vida miserável...chuva, sol, fome e filhos para tratar...

No mesmo instante, como em um despertar, lembrei-me dos meus filhos. O sino da igreja deu duas badaladas estridentes e longas. Deixei um resto de alimento ainda sobre o jornal e bati em retirada. O cozinheiro indignado esbravejou:

- Ingrato, filho da puta! Volte aqui para comer.

Virei-me para traz, tentei responder mas meu extinto era em prol dos meus filhos, e afinal de contas já tinha comido o bastante por hoje.

Subi ladeira a cima, passei pela padaria e novamente fui saudado pelos funcionários que diziam: “corre, corre”.

Ao me aproximar do velho trapiche, ainda na entrada do longo e abandonado quintal, pude ver três pessoas se dirigindo de forma peremptória para o trapiche. Pude ouvir, aguçando os ouvidos, que eles comentavam:

- Estão chorando, devem estar com fome e abandonados.

Neste momento eu estava por trás de um velho limoeiro ressecado, sai em disparada em cima dos intrusos que se assustaram. Investi furiosamente contra o maior, fazendo com que eles se espalhassem e batessem em retirada. Um louro magro, que estava na turma, deu de peito contra o velho limoeiro que, em um contra golpe com seus ainda flexíveis galhos, rasgou a camisa e o peito do invasor. Saíram pela velha cerca aos xingos e risadas e foram embora.

Corri para o trapiche entrando ruidosamente pela sala abandonada, fui até o cômodo onde choravam em polvorosa meus cinco filhos. Fui chegando e eles foram se acalmando, me rodearam aflitos pedindo por alimento.
Aconchegando-me e deitando com cuidado para não deitar sobre nenhum deles. Lancei, abrindo as pernas, minha farta carreira de tetas ingurgitadas de leite morno. Todos os cinco, inclusive o pretinho que estava meio adoentado no começo da semana, se posicionaram confortavelmente para sugar o leite que, por ter me alimentado bem durante a manhã, estava forte e viscoso.
Lambi um a um, farejei todos para ver se nada de novo tinha os tocado. Sentindo a sucção de suas quentes bocas em minhas tetas, cai em pensamentos. Fui relembrando meticulosamente tudo o que ocorrera pela manhã. Lambendo minha pata direita, pude ver pela fresta de madeira da parede o recorte de um transeunte coxeando lá na rua. Era o pobre andante que tinha levado um golpe de cabo de vassoura nas costas, lá no restaurante onde fiz minha última refeição. Ele passou silenciosamente ladeira a cima, inerme às condições que lhe foram impostas. Pensei como devia ser difícil estar vivo em uma
sociedade que se autoconsome.

Olhei para meus filhos, muitos já tinham parado de mamar e dormiam, outros dormiam e
sugavam vez em quando minha mama. Olhei-os com compaixão e comecei a articular meus pensamentos e artimanhas.

Como faria para garantir o alimento da tarde para que, no final do dia, minhas tetas estivessem novamente ingurgitadas de leite para alimentar meus cinco lindos filhotinhos?


José Ricardo Mendes
13/02/03

Obs*

Em um momento de indignação e de perfeita solidão, tomo posse da pena. Assim como a angústia e a solidão me invadem a alma, me torno invasor do interior soturno que há dentro de mim. Arranco o viscoso conteúdo que lambuza a minha alma, que me turva o espírito e comanda a triste expressão que meu semblante demonstra.
O grande responsável por esta gama de imundícies que está aqui dentro não sou eu.
Achas que sou?
Gosto mais das coisas tristes que há em mim, pois estas são mais sinceras, mas foram colocadas em mim sem permissão. As coisas alegres que tenho, nada são. São volúveis, quase sempre tristes.
São meus olhos, que insistem em ver sempre as coisas como realmente são, tristes. As barbaridades deste sistema falido e caótico me afogam nesta lama densa de descrença. Lama que sobe pouco a pouco, me cobrindo o peito, o pescoço, o maxilar. Fecho a boca e inclino a cabeça para cima, a lama sobe e toma o bigode, entra pelas minhas narinas, me toma a alma e me sufoca. Passo, neste instante, a viver, viver na realidade...








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