Solto por uma traquinagem do caçula, o passarinho se viu pela primeira vez só. Olhou da portinhola para o mundo e achou grande aquele novo compartimento da gaiola. Pulou para o muro com três breves bater de asas, desequilibrou-se, mas restabeleceu a postura com certa dificuldade. Olhou para a sua esquerda demoradamente, apreciou o que a vista lhe ofereceu e investigou minuciosamente o que viu. No quintal de uma casa um cão preso a uma corrente o observava quase entendendo o que se passava ali, mas ele não se manifestou. Em frente, um varal com roupas já secas balançavam ao vento como espantalhos travessos. O passarinho não se assustou, ele não entendia. Á direita, o muro estendia-se por vários metros antes de terminar num terreno baldio onde o passarinho avistou enormes pontas de moitas de capim que ultrapassavam sua altura. Foi para lá que ele se dirigiu. Bateu suas frágeis asinhas desastrosamente e voou até lá. As pontas das folhas ao vento não permitiram que ele se sustentasse nelas o que o forçou a alçar novo vôo, agora sem destino pré-estabelecido. Voou entre varais, torres de caixas d água, pequenos arbustos e pousou no solo. Em sua inocência de jovem pássaro ele sentiu medo, tudo era grande, desconhecido. Ficou um pouco ali e aquele lugar o acalentou, investigou onde se encontrava e percebeu que estava numa horta com folhas, legumes e ervas que exalavam odores deliciosos. Rapidamente, o pássaro se deu conta que estava pisando em terra de verdade, não areia. Ciscou aquela superfície macia e úmida com avidez, descobriu pedacinhos de pau, pedregulhos, pequenas larvas, lagartas, matérias decompostas que tinham uma agradável textura aos seus delicados pezinhos, uma infinidade de sensações o invadiam. Ciscando, encontrou algo para comer. Uma minhoca. Degustou-a como pode, pois grande era a sua falta de habilidade para deglutir coisas vivas, na gaiola só comia alpiste e folhas. Experimentou também comer alfaces, couves e tomates. Chovera durante o dia e a horta estava linda. Aquilo era tão bom. Mas aconteceu que um calango passou rapidamente pelas imediações e assustou o passarinho. Amedrontado, ele bateu as asas como se estivesse sido violentamente atacado por um gato ou coisa pior. Seu novo vôo foi um desastre, esbarrou em várias objetos e quando começou a ganhar altura enfrentou um pequeno enxame de mariposas. Seu frenesi aumentou, mas o instinto de sobrevivência o socorreu e ele conseguiu livrar-se dos insetos e pousar num dos galhos mais altos de uma árvore. Recompôs-se, ofegante e trêmulo o passarinho teve vontade voltar para casa. Começava a escurecer e ele teve medo, sentiu falta da proteção de sua gaiola. Pulou de galho em galho, ainda sem habilidade, e chegou num patamar de galhos baixos, esquadrinhou a região e descobriu que estava perdido. Ele quis beber água, quis cantar para o seu dono e ser paparicado. Quis receber legumes e folhas cortadas em seu minúsculo castelo em troca de seus cantos falsos de felicidade. Falsos? Sim, o jovem pássaro refletiu que não era realmente feliz preso, lembrou-se de dos vários dias que passava sem água fresca, dos dias que passava sob o sol, dos dias sem alpiste, dos domingos em que sua gaiola era esquecida pendurada sobre a fumaça da churrasqueira. Lembrou-se dos maltratos, enfim. O pássaro teve asco de si próprio por ter sentido vontade de voltar para a gaiola. Ele estava livre! Pensou, livre para fazer o que quiser, para voltar á horta, para procurar a companhia de outros pássaros, para comer mariposas em pleno vôo ao invés de fugir delas, para traçar o próprio destino e escrever a própria estória. Um sentimento de euforia Tomou conta de si, cantos altíssimos de felicidade brotavam de sua garganta. Saltitando e cantando, sem ser preciso ganhar nada em troca, ele cantava agora para o mundo ouvir que naquele momento nascia um novo pássaro. Um pássaro diferente, livre! Quantas hortas existiriam no mundo? Indagou para si, o pássaro.
Com esse fato o jovem pássaro aprendeu que uma vez fora da gaiola não é mais possível voltar ao seu interior como antes. No decorrer de sua vida, o passarinho convidou muitos outros pássaros prisioneiros, iludidos com a falsa felicidade, a provar sua experiência. A experiência de quem existiu, renasceu e finalmente viveu.