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Contos-->O INGAZEIRO -- 31/03/2003 - 16:51 (José Eustáquio Martins) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O INGAZEIRO


A pequena cidade onde fui criado, não a que nasci, é cortada por um rio mais ou menos caudaloso, o Rio Misericórdia.

Tive apenas dois endereços na cidadezinha. O primeiro foi no pequeno bairro denominado “Niterói”. O segundo foi na casa número 29 da Rua Um. Ambos localizavam-se às margens do Rio Misericórdia.

Posso dizer que toda a minha infância e quase toda a minha adolescência foram banhadas pelo Misericórdia. Aprendi a nadar em suas águas barrentas na época das chuvas e cristalinas na época da seca.

Nos entremeios, chuvas e seca, a coloração e a temperatura de suas águas favoreciam a prática da pescaria. Não eram muitas as espécies de peixes que o rio oferecia, porém, as poucas existentes, nas épocas certas, brindavam os pescadores com grande quantidade. Desta forma me foi possível garantir, muitas vezes, o jantar em minha casa com alguns piaus bem criados, bagres, mandis e, de quando em vez, o mais cobiçado de todos, o dourado.

Esse peixe merece uma referência à parte. Era de tal forma cobiçado que, quando capturado, era exibido a toda a vizinhança como um verdadeiro troféu. Dependendo do tamanho, era assunto para mais de uma semana e a notícia corria pela cidade. O heroísmo do pescador era maior ou menor na proporção exata do tamanho dele.

Pescar os demais peixes não constituía nenhuma vantagem. O dourado era o mais raro, o maior e mais difícil de ser pescado. Depois de fisgado lutava com uma bravura extremada, violenta mesmo. Preso ao anzol saltava das águas expondo à luz do sol sua cor amarelo-ouro, muito bonita. Instalava-se um verdadeiro clima de tensa e aguerrida competição. Pescador de um lado e o dourado do outro.

Da parte do pescador os sentimentos de angústia e prazer se alternavam. Angústia pela possibilidade do insucesso. Muita coisa poderia acontecer: ou a quebra do anzol, ou a ruptura da linha ou o rompimento da cartilagem da boca do peixe. Enquanto durava a contenda sua respiração ficava ofegante, os batimentos cardíacos se aceleravam e o suor umedecia abundantemente suas axilas. Prazer porque, na medida em que se aproximava o final da luta e a certeza da vitória aumentava, ele começava, no mesmo compasso, a antever as manifestações de admiração, curiosidade e até de inveja dos conhecidos.

Da parte do dourado, com certeza, só existia um sentimento, o do pavor, razão de seu empenho em se livrar daquele metal curvo que lhe perfurava a mandíbula e tolhia seus movimentos. Felizmente, para ele, a luta nem sempre era vencida pelo pescador.

Minha intenção, ao iniciar este pretensioso conto, era a de registar a participação que um certo “ingazeiro” (pé-de-ingá como diziam os nativos do lugar) exerceu no meu curto e distante período de infância e adolescência. Ocorre que, apenas com a intenção de situar o “ingazeiro”, me referi ao Rio Misericórdia. Quando me dei conta, já havia derivado meu relato às não menos saudosas pescarias.

Não obstante o tempo transcorrido (e põe tempo nisto!), as lembranças se me apresentam agora de uma forma tal e tão fortes que, por alguns instantes, cheguei a sentir as mesmas sensações dos tempos em que competia com um dourado grande.

Trago de volta o “ingazeiro”. Pretendo me ater somente na descrição de nossa relação daqui por diante.

A árvore que embalou os sonhos, fantasias e frustrações de meus primeiros anos estava encravada à margem do Misericórdia, num lugar bem próximo do meu segundo endereço.

O rio formava uma curva pouco acentuada que o tornava mais largo naquele ponto, propiciando um remanso que funcionava como um vetor das águas correntes, tornando-as calmas numa área considerável, muito propícia às pescarias.

O ingazeiro postava-se, altaneiro, no lado côncavo da curva, numa posição inclinada que lhe permitia estender os galhos abundantes e retorcidos sobre o remanso, projetando uma sombra constante sobre ele como que para protege-lo e para lançar sobre suas águas os frutos maduros, alimento natural dos peixes.

Seus frutos, os “ingás”, ao caírem nas águas do remanso, faziam a festa dos pequenos cardumes de lambaris. Era divertido assistir a algazarra que se formava na superfície, algumas vezes interrompida por um peixe maior que de uma só vez abocanhava o ingá maduro, para frustração dos menores.

O ingá era um fruto de aspecto simpaticamente feio. Sua cor, um misto de verde e ferrugem, dificultava a identificação dos que estivessem maduros. Era preciso conviver com ele algum tempo, como aconteceu comigo, para se conseguir, sem erro, não colher os verdes. Sua aparência estética também não seduzia. Davam a impressão de que os caroços eram muito grandes para a casca, impedindo a formação de maior quantidade de poupa comestível. Tinha uma aparência rugosa, de muitas barrigas provocadas pelos caroços. Das frutas conhecidas aqui por São Paulo, a que mais se assemelha ao ingá é o tamarindo. A diferença mais acentuada entre as duas está no fato de que o ingá é bem mais comprido, chegando alguns a medir mais de dez centímetros. Não sei se pelo tempo transcorrido ou por falta de referência, não consigo definir seu sabor. Lembro-me apenas de que não era de todo agradável. As pessoas só o colhiam quando passavam pelo ingazeiro por acaso. Mesmo assim não colhiam mais do que um ou dois. Jamais freqüentou uma mesa. Não era páreo para as goiabas, jabuticabas, mamões, ameixas e outras frutas comuns da região. Parece que só existia para a alegria dos peixes.

O tronco do ingazeiro tinha, ao rés-do-chão, um terreno arenoso, de uma areia fina e fofa. Ao seu redor notava-se uma vegetação rala, formada por pequenos arbustos que exalavam um cheiro muito agradável, quando pisados.

O conjunto formado pela pequena inclinação do tronco abaulado, a topografia do terreno arenoso, a sombra dos galhos que pendiam do lado oposto ao rio, o cheiro da vegetação pisada, os sons das águas, o canto dos pássaros, o conforto do assento de areia fina e o sabor do ingá, compunham o ambiente que embalou-me por alguns anos. Não sei precisar quantos.

Também não sei precisar o momento e nem as razões que levaram-me a freqüentar com assiduidade crescente aquele recantozinho a beira do remanso e a eleger aquela árvore como o melhor de meus amigos.

Quaisquer estados de ânimo, alegria ou tristeza, levavam-me a procurar o meu ingazeiro. Era meu sim. Eu tinha a posse dele. Certa vez vi um garoto mais ou menos da minha idade, muito conhecido meu, fazendo xixi em seu tronco. Fiquei irado e por pouco não briguei. Só não o fiz porque não conseguiria justificar o motivo da briga. O fato de ele ter feito xixi no tronco de uma árvore não seria motivo compreensível. Dizer-lhe que a árvore era minha? Como? Preferi que o menino não me visse. Permaneci quieto, por detrás de uma touceira de capim, espreitando. Mal ele escorregou pelo barranco e mergulhou no rio, fui conferir. Ele havia feito xixi em um lado do tronco, o que não me impedia de sentar na areia fina. Alguns dias depois o garoto pediu-me emprestada a câmara de ar que eu usava, como bóia, para brincar no rio. Neguei lacônica e incisivamente. Ele, logicamente, não entendeu a negativa. Já me emprestara a dele algumas vezes. Até hoje ele não sabe que não emprestei por vingança.

Estas recordações remetem-me ao famoso verso do cancioneiro popular, “Eu era feliz e não sabia”.

Quanta coisa eu partilhei com o meu pé-de-ingá! Ele era, ao mesmo tempo, cenário e personagem real dos sonhos e fantasias de um menino sonhador. Jamais conheci um ouvinte melhor.

À sua sombra ruminei os resquícios de ira resultantes das brigas de escola ou das surras que tomava de minha mãe ou de meu pai. Ali chorei minhas notas vermelhas rogando pragas às professoras. Ali eu era Tarzan sempre que queria, com direito ao grito característico e a diálogos imaginários com a Jane e com a Chita. Ali, embalado por aquele clima tão confortável e acolhedor, adormeci algumas vezes. Tive muitos sonhos.

Somente à ele confessei toda a extensão de minhas alegrias e tristezas juvenis. Exibia-lhe todos os poucos presentes que ganhava. Regava-o com minhas lágrimas. Contava-lhe, em voz alta, todas as minhas ansiedades, angústias e inconformismos.

O tempo foi passando lentamente e eu, no mesmo compasso, fui crescendo e me modificando física, mental e psicologicamente.

Um fato marcou-me indelevelmente. Estava com onze ou doze anos, não sei ao certo, quando me senti apaixonado pela minha professora de matemática.

Naquele tempo as crianças não chamavam de tia as professoras. Havia uma exigência maior, uma imposição, que nos obrigavam a tratar os professores com uma reverência quase solene. Foi a época em que minha sexualidade despertava com toda a sua força.

Hoje eu sei que minha paixão pela professora era meramente sexual, por isso mesmo tão forte e tão marcante. Foi meu primeiro desejo. Um desejo ardente. Era ela uma morena clara muito bonita. Uma beleza realçada pelos cuidados que tinha com a aparência. Vestia-se com esmero, era perfumada e, na minha visão pecaminosa, era também insinuante. Cantava maravilhosamente bem. Falava com uma voz levemente rouca e aveludada. Se relacionava com os alunos de uma forma “guevariana”, ou seja, era sempre firme, sem perder a ternura.

A presença dela causava-me calafrios. Sua lembrança tornou-se uma obsessão.

Foi ao pé do meu ingazeiro que certa vez as minhas fantasias, em relação a ela, fizeram aflorar meus instintos de macho de uma forma tal que fui induzido a mais uma masturbação e à minha primeira ejaculação. O orgasmo, inesperado, provocou-me uma sensação que não consigo descrever. Embora maravilhosa, inundou minha pequena alma de sentimentos contraditórios: um grande susto, um prazer indescritível e um grande remorso. Ninguém nunca havia me dito claramente que aquilo era pecado, porém eu não tinha dúvidas de que era. Um pecado que seduzia-me inexoravelmente. Tinha comigo que era tão grave que nem ao padre eu o confessei. Por muito tempo eu vivi com este conflito muito sério na consciência. Até hoje, quando vejo a professora, (Deve estar com bem mais de sessenta anos), peço-lhe desculpas mentalmente. De toda aquela beleza que deslumbrava-me sobraram apenas a voz e o trejeito nos lábios que era traduzido por mim, na época, como insinuação.

Um outro acontecimento marcante, também partilhado com o meu ingazeiro, foi quando consegui um trabalho, que considerei como sendo meu primeiro emprego sério, na estação de rádio da cidade. Acho que este foi o último acontecimento importante que dividi com ele. Comecei a trabalhar com horários inflexíveis, durante o dia. Só me era possível visita-lo aos domingos. Ocorre que o trabalho despertou em mim outros interesses e, sem que me desse conta, já havia abandonado meu grande amigo. Grande em todos os sentidos da palavra.

Desta forma, não me recordo quando e nem qual foi a última vez que o visitei. Neste momento em que escrevo estas lembranças, estou me sentindo um ingrato. Já se passaram quase cinqüenta anos. Na verdade, nem sei se ele ainda existe. Verificarei na primeira oportunidade. Caso ele permaneça lá, tenho tantas confidências represadas, inauspiciosas na maioria delas, infelizmente, que precisaremos de muito tempo e de muitas lágrimas para conversarmos.
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