Mais uma vez cumpria-me a não preferida missão de transportar o numerário excedente da agência do banco em São Gotardo, onde eu era funcionário, para a agência de Dores do Indaiá. Era verão de 1.965, uma segunda feira qualquer do mês de fevereiro.
A natureza da missão em si não era de todo ingrata. Naquela época, transportar dinheiro em grande quantidade não constituía grandes riscos. Não exigia qualquer aparato de segurança. Transportei muitas malas cheias, nas piores condições de transporte possíveis, algumas vezes até de carona. Não nos ocorria a possibilidade de um assalto.
O que entristecia qualquer funcionário era justamente o transporte para Dores do Indaiá. Uma verdadeira tortura, algumas vezes com requintes de perversidade.
Como meus prováveis leitores, poderão não conhecer a região, vou tentar descrever aquele pedaço de chão que separa as cidades de São Gotardo e Dores do Indaiá, ambas localizadas em Minas Gerais, na região do Alto Paranaíba.
Inicialmente há que se imaginar a presença de uma serra, denominada Serra da Saudade, mais ou menos parecida com a Serra do Mar aqui em São Paulo, separando as duas cidades. Digo parecida com a Serra do Mar porque o tipo de vegetação não é o mesmo. As árvores da Serra da Saudade são menores, de outras qualidades e formam uma mata menos densa. A maior semelhança está mesmo é na topografia. Eu diria até que a Serra da Saudade é mais acidentada do que a Serra do Mar, ensejando uma estrada excessivamente tortuosa e de curvas mais radicais. Além disso, a estrada não era asfaltada (naquela época, a estrada asfaltada mais perto era em Belo Horizonte, cerca de 300 km de distância). Não ser asfaltada não era tudo. O pior eram as condições do piso. Cheio de buracos, muitos buracos e, quando não chovia, exalava uma poeira intensa e amarelada tão abundante que chegava a sufocar. Quando chovia a poeira desaparecia, dando lugar a um lamaçal assustador, quase intransponível.
O ônibus também merece uma referência particular e especial. Na época, não era chamado de ônibus e sim de “jardineira”. Era um chevrolet a gasolina, frente avançada, suspensão de caminhão, portanto dura. A cabina agasalhava cerca de 25 passageiros sentados e se alargava na traseira, o que ensejava o apelido de Marta Rocha, em referência a nossa miss que só não ganhou o título de miss universo porque também tinha a traseira avantajada.
Este conjunto, ônibus e estrada, inspirou algumas estórias jocosas. Alguém dizia que os solavancos eram tantos que, um pente colocado no bolso traseiro direito quando procurado, estava no bolso esquerdo. Outros diziam que algumas curvas eram tão acentuadas que o motorista e o passageiro da frente conseguiam ver as lanternas traseiras da própria jardineira.
A viagem que fiz naquela segunda-feira de sol escaldante, por mais sofrida que tenha sido, teve também seu lado cômico.
A ida transcorreu sem qualquer acontecimento que não fosse esperado, de acordo com as condições do jardineira e da estrada. Até o tempo de viagem foi normal, saímos de São Gotardo às sete e trinta e chegamos em Dores do Indaiá por volta das 10 horas.
Um dos toques de perversidade aconteceu na volta. A jardineira apresentou um defeito no motor, justamente quando iniciávamos a entrada na serra. Tudo indicava que havia algum entupimento impedindo a entrada de gasolina no carburador porque a jardineira nem se movia direito, se deslocando aos solavancos, e nem parava de todo.
O motorista, pacientemente, parou a condução pela primeira vez. Lembro-me que já era quase meio-dia. Um sol abrasador. Poeira até na alma. O interior do veículo tornou-se insuportável. Todos os passageiros desceram, a exceção de um que embarcou muito bêbado em Dores do Indaiá e dormia profundamente com o chapéu sobre o rosto.
Falemos um pouco sobre os passageiros. Uma gente humilde, muito humilde. Certamente todos eles, ou a grande maioria deles, havia passado o domingo na cidade e retornavam às suas casas em fazendas, sítios, garimpos, lavouras e outras atividades correlatas, não urbanas.
A dedução de que haviam ido passar o domingo na cidade era suscitada pelos trajes. Os homens com botinas e chapéus novos vestiam a melhor roupa, ou seja, as calças de um brim bege e brilhante e as camisas de um tecido muito comum na época, chamado fustão. As mulheres com tiaras de plástico nos cabelos mal cortados e mal lavados, vestiam vestidos de chita estampados com motivos florais. Calçavam tamanco ou alpergatas de pano vermelhas. As crianças, quando irmãs, vestiam iguais: Os meninos de calças curtas e camisas feitas do mesmo tecido e as meninas com vestidinhos feitos com as sobras da chita usada nos vestidos das mães.
Era perceptível a ressaca de alguns homens, tanto pelo semblante amarrotado como pelo hálito. Alguns só não estavam de ressaca porque ainda estavam um pouco bêbados.
Ao longo da estrada havia muitas paradas para embarque e desembarque de passageiros e bagagens. Por falar em bagagens, estas também merecem um comentário à parte. Constituíam-se em fieiras de galinhas vivas e barulhentas, peças de trator agrícola, rolos de fumo, amarrados de mandioca, sacas de abóbora e coisas assim.
Bem, voltemos a primeira parada que o motorista fez, já no início da serra. Ainda pacientemente desmontou todo o carburador, examinou detidamente todas as peças, lavou algumas com gasolina e iniciou a remontagem cuidadosamente. Enfim, concluiu o trabalho.
Todos embarcaram novamente exibindo um sorriso que traduzia alegria e alívio. O motorista acionou a partida. O motor funcionou novamente, com a jardineira parada. Quando ele soltou a embreagem e acelerou, o veículo partiu aos arrancos, ou seja, nem andava e nem parava. Os sorrisos desapareceram, os olhares eram contrariados. Já passava das treze horas. Alguns reclamavam da sede, principalmente os ressaqueados, crianças já choramingavam de fome.
Foi neste clima que o motorista novamente se dispôs a desmontar o carburador. Por causa do calor, todos desembarcaram outra vez, exceto o bêbado que continuava dormindo com o chapéu sobre o rosto. O motorista já não estava tão paciente. Contudo concluiu pela segunda vez a remontagem e, sem dizer palavra, voltou ao seu posto após o reembarque dos passageiros. Pela terceira vez o defeito se apresentou.
Aí já era possível ouvir algumas blasfemas não só da parte dos passageiros mas também do motorista que resolveu ir tocando a jardineira da forma que era possível, ou seja, aos arrancos nas subidas e na banguela (como diria o Roberto Carlos) nas descidas. Este expediente, no entanto, não satisfez a ninguém, pois retirava quase toda a velocidade do veículo e, o fato de estar trabalhando muito forçado poderia para-lo de vez. Por esta razão paramos pela quarta vez.
Tudo aconteceu como das três paradas anteriores. A única de diferença é que o mau humor se tornou irreprimível. Maridos brigavam com as esposas e crianças apanhavam das mães.O calor, a poeira, a fome e a sede ditavam os ânimos. Também esta parada não resolveu o problema. Serviu apenas para exaurir definitivamente toda a paciência do motorista que bradou:
- Nem que eu leve o resto do dia e a noite toda, eu juro que não desmonto mais o raio deste carburador.
Com esta disposição ele continuou conduzindo a jardineira aos arrancos nas subidas e desengrenado nas descidas para aproveitar ao máximo a velocidade adquirida com a força da gravidade.
Foi numa dessas descidas, justamente no momento em que o ônibus estava adquirindo a maior velocidade, que uma pessoa, à beira da estrada, fez sinal para que parasse. Como não podia deixar de parar, o motorista esbravejou antes:
- Não teria um lugar melhor pra essa velha pedir para parar!?. E parou.
Antes de entrar no ônibus a “velha” perguntou a ele, sorrindo (fazia tempo que não se via um sorriso):
- Por quanto o senhor me leva pra São Gotardo?
- Três e oitenta. Respondeu lacônico e com cara de poucos amigos, o motorista.
- Eu sou pobre, só tenho três e cinqüenta. Faz um abatimento pra mim?
- Não posso minha senhora, tenho uma tabela de preços e não tenho autorização para conceder abatimentos.
Ouvindo aquele diálogo, que mais parecia um ferrenho exercício de pechincha, eu disse ao carrancudo motorista que permitisse o embarque da velhinha. Eu pagaria a diferença. Com isto, o diálogo deles continuou:
- Está bem minha senhora, eu deixo por três e cinqüenta. Disse o motorista.
- É verdade? O senhor me leva por três e cinqüenta?
- Sim, estou dizendo que levo!
- Então, muito obrigada e que Deus Nosso Senhor ajude muito o senhor e sua família. – NA QUINTA-FEIRA EU VOU!!!!!!
O motorista, com os olhos faiscando, ficou vermelho e uivou como se fosse um lobo. Engatou a primeira marcha e pisou com tanta raiva no acelerador que a alimentação do combustível desentupiu e a jardineira não mais enguiçou até o final da viagem. Porém, a possibilidade de que o entupimento pudesse voltar tirou todo o humor e todo o assunto do pessoal.
Por volta de cinco e meia da tarde chegamos em São Gotardo. Alguém conseguiu acordar o bêbado que levantou a aba do chapéu e exclamou: