O pequeno-homem-muito-pobre interrompeu sua caminhada e parou diante de bonito cenário, imóvel, lá embaixo: A lua, naquela noite, a tudo clareava, nada passava: os morros; as mangueiras; as cercas; o brilho do arame-farpado nas cercas; coqueiros; o lago; o outro lago; aquela casa...
Seu olhar triste, lacrimejado, pelo vento no rosto, não pela tristeza, dizia o que estava bastante visível: o homem perdera! Não a perda circunstancial de algo que com ele estava e um dia se foi, mas a perda existencial, de coisa que nunca teve, mas que lhe pesava saber que poderia ter tido. Naquele momento, tardio, homem sem fé. Não muito velho, mas não jovem suficiente para recomeçar. Sua vida passara, pouca coisa restava.
Quis andar, naquela noite, quis pensar. Gostava de pensar, apesar de tudo, mas o preferia caminhando, à noite, quando o trabalho não o ocupava, e quando o cansaço não o impedia.
Não lhe saía da cabeça o olhar da filha, de pena, de vergonha, diante de um pai magro; boca vazia; postura arqueada; chapéu de palha. Logo ela, que foi embora quando já mocinha, naquele caminhão, quando muito chovia, acompanhada de não-sei-quem...
Ao homem pouco restava: um barraco, uma cabra. O burrinho morrera no ano anterior. A esposa também “morrera” quando há muito o deixou. Ficaram-lhe as dores, o vazio, e o desejo não realizado.
Teria de ir a cidade, mas não gostava: atravessar a ponte, entrar naquela fila, talvez, dormir na fila, conseguir um número (gostava dos números) ver um “dotôr”, se fazer entender por um “dotôr”, e por Deus, que este fosse mais paciente, teria menos vergonha, e ultimamente, a dor estava forte demais!
Tinha medo de se perder na cidade. Tinha medo de morrer na cidade.
A cidade. Tanto barulho; tanta gente; tanto dinheiro naquelas malas pretas carregadas por aqueles homens de gravata. O banco, tão frio, tão bonito. O hospital sujo e aquelas bancas de revistas. Tudo tão colorido. Tudo tão maluco. Queria logo pegar o remédio na farmácia pública e ir para casa.
O “dotôr”? Nem o tocou. Falou pouco. De longe. Lavou as mãos, mesmo não tendo chegado perto. Do mesmo jeito que antes. O remédio, mais um, quando acabar, volta a dor, nada de cura...
Um homem negro no caminho da rodoviária, rolando no chão, abraçando seu lixo com amor, falando com as pessoas que passavam sem as conhecer, bem poderia ser ele: sujo, ferido, sem esperança, destituído de pudor, esquecendo que é homem, reduzido aos molambos. Muito triste a cidade. Muito triste. No campo, a tristeza fica dentro da cada um, mas na cidade, aparece: A tristeza em cada esquina.
Muitas vezes, o pequeno-homem-muito-pobre se colocava a tentar entender as coisas que aconteciam ao seu redor. Principalmente nestas raras idas à cidade. Pois dentro do ônibus, a visão monótona da estrada lá fora, muitos pensamentos trazia. Muitas imagens. E a estranha sensação de haver uma ligação entre cada uma delas. A chave da vida, da compreensão do mundo, parecia estar o tempo todo diante de si, mas ele não a encontrava.
No banco vazio do ônibus, ao seu lado, um pedaço de papel mal dobrado e torcido. Jogado. Era um pequeno panfleto com desenho em branco e preto de um índio enjaulado dentro do que seria globo azul da bandeira nacional. Abaixo um texto pequeno. Ele achou o desenho feio, jogou-o fora, retornou às suas reflexões.
É uma pena que nosso herói, como tantos outros brasileiros, infelizmente não saiba ler, pois se soubesse, encontraria naquele encardido pedaço de papel que agora ajuda a entupir algum bueiro no centro da cidade, a resposta para todas as suas perguntas...