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Contos-->Arame Farpado -- 17/01/2000 - 22:24 (Erasmo Junior) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A senhora está se sentindo bem? Está se sentindo bem?
Ai meu Deus, ai meu Deus.
Quer vomitar mais?
Não, chega. Eu bebi muito, moço. Estou vendo tudo torto.
Quer que chame um médico? Se quiser, eu ligo lá do balcão.
Não precisa. Eu só quero uma água mineral e a conta.
Tudo bem.
Senta aí um pouco, eu tenho que desabafar.
?
Senta aí, por favor. Conversa comigo.
Eu sou só o garçom. Estou de serviço.
Só acontece coisa ruim comigo, meu Deus do céu. Mas vai dar tudo certo, eu sei que dessa vez vai.
Vai dar sim.
Eu acabo de vir do hospital, eu sou enfermeira. Não sei por onde começar, senta.
Não posso, não posso.
Se quiser sentar, senta, não tem ninguém aqui, não vão te chamar para atender, eu sei que o movimento tá parado, por isso entrei aqui para encher a cara e deu nisso...Ai meu Deus, eu quero morrer mas é tanta coisa, tanta coisa que não dá tempo, bastou aparecer aquela pin-up e mudou minha vida toda.
Pin-up?
É, ela chegou no hospital que eu trabalho, que atende presidiário e gente enrolada com a polícia, tinha entrado embaixo de uma carreta com o namorado, fugindo de uma viatura com uma mala cheia de pedra de crack e três defuntos dentro de sacos plásticos no porta-mala. Ela e o rapaz se esfolaram inteiros, principalmente ela que ferrou com as pernas porque ficou presa na lataria e foi parar na enfermaria que eu tomava conta. Estava aplicando uma injeção nela quando me contou do acidente e que seu namorado estava na delegacia aguardando a audiência que decidia se ia para um manicômio judiciário ou se ia para o xadrez mesmo, o cara era meio doido, ela chamava ele de porralouca, disse que alucinava com tudo que é de química que tem por aí, credo. Me arrepia só de lembrar, olha só meu braço. E daí ela passou uma semana me infernizando quando eu passava lá no seu leito para que fosse visitá-lo, levar um bilhete para ele na cadeia, esperando a lei funcionar. Ela era tão bonitinha, tinha um cabelo lindo, enorme e escorrido, que dividia no meio e fazia uma trança de cada lado, bem magrinha, e estava com as pernas cheias de ferro, toda esfolada, teve fratura exposta, perda de musculatura, nunca mais ia andar direito, só com muleta e prótese, num tinha fisioterapia no mundo que desse jeito, já vi muito caso assim até pior, com homem feito e ela era só uma menina que quando saísse de lá ia para reformatório de menores. E ficou me amolando para levar o bilhete, que o amava, que queria saber como ele estava, daí eu fiquei com dó, puxa vida, se fosse comigo eu também ficaria desesperada e ela era uma boa pessoa apesar de ser desajustada e fui lá na delegacia levar.
Sei.
Daí toda semana ela começou a pedir para eu levar para ele um bilhete e eu ia, depois começou a pedir para eu passar lá mais de uma vez por semana e eu continuava indo. Depois de bem uns dois meses com ela aleijada na enfermaria, transferiram o rapaz para um manicômio dizendo que ele era um psicopata, sociopata e mais um monte de termos psiquiátricos, e ela achou melhor do que se ele fosse para o xilindró mesmo, porque pelo menos corria menos risco de se lascar, mas a barra em hospício não é menos carregada não que eu sei, fui trabalhar lá também depois de um tempo. E ela sempre mandava bilhetinho para ele, falando de amor, que iam fugir juntos, que ela estava se esforçando para melhorar das pernas e que ia ficar com um monte de pino de metal mas que ficariam juntos até o fim, e a besta aqui de cúmplice, eu sou idiota, idiota. Minha mãe vivia dizendo que eu era besta e amolecia por qualquer coisa e que eu falo demais também, que devia fechar a boca mas é mentira, eu só converso o necessário, abertamente como eu estou fazendo aqui agora com o senhor, moço. E teve um dia, um bom tempo depois dele ter ido para o hospício, que eu fui levar os remédios dela e ela estava chorando, gritou comigo, virou a bandeja na minha cara e me chutou com aqueles ferros, me chamando de piranha, mentirosa, você é uma vaca safada, desse jeito, vieram me dizer hoje que ele tentou fugir semana passada, levou tiro e está na CTI dessa porra desse hospital, que história é essa, eu disse fica calma, deixa eu te contar, fica calma, e ela se deitou chorando, ficava o tempo todo vestida com aqueles shortinhos que deixam a polpa da bunda de fora, pouco acima dos ferros das pernas, e com uma camiseta regata minúscula com a capa de um disco dos Beatles, acho que é Sgt. Peppers alguma coisa, que nem uma pin-up, por isso que eu chamo ela de pin-up, parecia uma.
Certo.
Quando ela tomou o remédio e parou de soluçar, abri logo o jogo e disse desde que fui aquele dia na delegacia estou apaixonada pelo teu namorado, perdidamente apaixonada, isso só aconteceu comigo uma vez, mas faz tempo e ele me deixou e num sinto mais nada por aquele safado, eu amo teu namorado, falei na cara dela, que arregalou os olhos e ficou calada, com uma olheiras de anemia horrorosa. Aqueles teus bilhetinhos tão tudo guardado lá em casa, não entreguei nem um, nem o primeiro, pois fiquei gamada logo de cara e mudei os planos. Ele nem queria conversa, mas depois de me ver umas cinco vezes, começou a mudar de idéia e eu deixei ele pegar nos meus peitos e não resistiu, falei para ele se fazer de doido que ia para o manicômio e eu dava um jeito de ir trabalhar lá, também. Ela continuou calada, parada feito morta, se tivesse de olho fechado eu ia jurar que tinha morrido, Deus me livre. Continuei, foi difícil conseguir transferência para o hospício mas eu dei um jeito, sou capaz de tudo, de tudo, assim que ele foi para lá, eu já estava trabalhando nas enfermarias, limpando cocô de doido e dando papa para velho gagá, eu odiava esse serviço mas faria aquilo só por causa dele. Quando veio, ficou no quarto com mais sete e era o único que tinha razão, ele não era nem doido nem psicopata coisa nenhuma, só era meio esquentado, e sempre que eu ia lá no quarto dele a gente se tocava e às vezes a noite quando eu conseguia trocar o plantão a gente fodia a noite toda, no escuro no meio dos doidos. Ela começou a fechar a cara e a encher os olhos de lágrimas, quase fiquei com dó porque ela era uma lascada aleijada, puxa vida. Ia andar de muleta o resto da vida, se arrastando com aquelas próteses medonhas de plástico, com ferro furando a perna torta e desmantelada. E depois, desgraçada, ela gritava, e essa estória de que ele fugiu, me fala, vai falando, eu olhei para a cara dela, bem no olho, falo na cara mesmo, ele não queria esquecer de você e disse para mim uma noite depois da gente transar que ia tentar fugir para ter notícias suas, que estava estranhando, mas também falou que estava gostando de mim mas que tinha que se resolver com você primeiro. Fiquei desconfiada e comecei a aplicar amplictil nele, segurei na cama assim por umas duas semanas, mesmo que estivesse dopado, mas pelo menos num fugia ou fazia besteira. Quando parei de aplicar, ele brigou comigo, me xingou de sacana escrota, e disse que ia fugir aquela noite e que nunca mais queria ver minha cara, chorei o resto do dia e quando ele foi fugir, se preparando para pular o muro com arame farpado, chamei os guardas, desceram bala nele, enquanto eu gritava, pelo amor de Deus, num pode morrer se não eu vou junto, nossa Senhora.
E aí?
E aí que levou quatro tiros de trinta e oito, dois nas costas, um no pescoço e outro na barriga, mas era macho mesmo, não morreu não. Foi para o hospital onde ela estava, quase batendo as botas, fizeram uma laparotomia, nefrectomia e colostomia nele, foi para a CTI em estado crítico, mas Deus é forte que eu sei, vai sair daquela.
Não entendi nada do que a senhora disse.
Como não entendeu? Ah, laparotomia é uma cirurgia que abre a barriga da gente, um corte que vai de abaixo do esterno até a virilha, para ver o estrago e reparar, tinha alça de intestino perfurada, fígado rompido, coágulos, ia fazer abcesso e infecção. Nefrectomia é que ele perdeu o rim direito por causa dos tiros nas costas e a colostomia foi por causa das balas também, abriram o intestino dele direto com a parede do abdome, daí ele fica fazendo cocô por uma bolsa de plástico pregada de lado. Sofrendo muito, mas ele é forte. Quando falei para ela do estado dele, se levantou, pulou em cima de mim com ferro e tudo, precisou meio mundo de gente para tirá-la, doparam e queriam saber o que tinha acontecido mas eu enrolei. Olha só meus braços, estão tudo lanhados daquela vaca.
Nossa...
Quando foi hoje, eu peguei a arma que tenho em casa, que era do meu pai, e levei carregada para o hospital, ia descarregar na cabeça dela, que se danasse o resto todo, eu só quero saber dele. Mulher apaixonada é meio doida mesmo, eu tinha uma vida normal e ele apareceu, mudou tudo. Cheguei lá, mas ela já estava fora dos efeitos do medicamento, falando nada com nada, parecendo uma doida e fiquei com pena de atirar, apesar de ter puxado a arma e colado o cano na testa dela. Quando vi, a piranha tomou a arma de mim, tomou a arma de mim na moral, rápida feito cobra, deu uma coronhada na minha nuca e eu apaguei.
Meu Deus do céu.
Estou com o galo doendo até agora. Quando acordei, com as meninas do posto me abanando, disseram que os guardas derrubaram ela lá no corredor mesmo, quando se arrastava com os ferros na perna e a muleta para chegar na CTI. Deu uns tiros para cima, num chegou a ferir ninguém, mas levou umas bolachas na cara para deixar de ser besta, além de terem arrancado sem querer uma das próteses porque num parava de espernear. Levou injeção também, foi transferida na hora para o reformatório, mas talvez tenha que cortar as duas pernas dela por causa das pancadas, se bem que eu acho que é para ela num fugir. Fui olhar meu amor na CTI, coitadinho, tem que ficar dormindo o tempo todo se não fica gritando e chorando inconformado, mas eu entendo, é uma situação difícil e vamos sair dessa juntos. Arrumei serviço no setor para cuidar dele, e quando me vê fica desesperado, cospe em mim, mas eu sei que me ama e que cedo ou tarde vai entender isso, cedo ou tarde vai entender isso, não é possível.
Ainda quer a água e a conta?
Traga que eu vou dar uma volta por aí.
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