O gesto sempre mal-educado de consultar o relógio sob a manga do casaco. Quando a coisa descamba para a falta de educação, é de uma tristeza! O inútil exercício de pinçar respostas para um acontecimento que vem e se perpetua: por que, meu Deus, se? Batata: meu almoço com o Zeca era um teatro vivo. Nos distraíamos boquiabertos com o movimento à nossa volta no shopping, enforcados estivéssemos pelos nossos cronômetros. Como se sobrássemos naquele arranjo todo. Eu estava perdoada desde o início porque tinha avisado: estou com pressa – uma meia-recusa. E qualquer pessoa desistiria do convite. Não o Zeca. Não ele. Manso, tinha “aquela” calma suficiente, nem mais nem menos. Pouco comemos, de pudor de ferir o outro com nosso apetite. Combinávamos no silêncio os próximos gestos e, por coincidência, obedecíamos a uma ordem que se nos impunha. Cadê a tradicional rebeldia, os panfletos? Naquele balé sem música venceríamos os trinta minutos que nos amarravam e cumpriríamos aquele dever penoso de suportar o avançado da hora, mais pontudo até do que o medo de não nos vermos nunca mais, e de ser aquele encontro o derradeiro, o ritual de nós dois sendo sepultados um para o outro. Dali por diante, se nos trombássemos, agora era de boa gentileza o outro virar a cara para buscar enxergar outra coisa qualquer que fosse. Podia o outro até passar com olhos fixos sem desviar a cara, mas era tranqüilo que, se arriscasse um alô, o outro gozava de atestado médico para não responder nada. Outros seríamos então. Até já era possível nos antevermos daqui a pouquinho nos dizendo tchau, beijinho para lá, beijinho para cá, num alívio finalmente. O que era um crime. Se nos adorávamos, agora termos que nos estourar em mil fugas!
Naquele suplício de estica-tempo, vimos ao mesmo tempo, os dois, obrigados a dar cabo daquele tormento todo. Salvos pelo garçom, que, quando demos fé, já recolhera nossos pratos. Não ousei a sobremesa, pensando bem. O Zeca também não. Também não lhe perguntei se queria mais alguma coisa. Ele, de sua vez, dedilhava os segundos que ainda tínhamos. Mas seria um crime despedirmo-nos com meia hora de desfavor. Ainda tínhamos meia hora para sabe-se lá o quê. E, por outra, não entregaríamos nosso butim sem luta. Estávamos voltando à carga, desafiando, farejando o ar. Tínhamos de ganhar mais uma.Venceríamos tudo aquilo e conquistaríamos a plenitude de, marcado o tempo, alcançarmos ainda o prazer frugal de estarmos um com o outro compondo uma obra a quantas mãos. Já se via que, de impotentes, agora ousávamos. Então arriscamos namorar vitrines. E conseguimos sair dessa de mãos dadas, rindo um para o outro. Quem visse, adivinharia que não perderíamos tempo com nenhum tempo que não fosse aquele nosso. Mergulhados um nas graças do outro, tudo era de uma beleza, as vitrines tingindo-se de verde-limão, pinque botão, cítricas e aciduladas. E, tão soberanos reinávamos, que debochávamos de todas as maravilhas – fosse pelo preço inalcançável dos badulaques, fosse pelo excesso de sermos enfim nós de nosso mundo, sem relógio e sem impulsos cronometrados, rítmicos.