Alguém gritou "Vai sair o contracheque!", e um bando de nós nos ouriçamos (menos eu, mole de avanços).
Sexta-feira, final de tarde. Lá fora um sol quentíssimo. De onde estávamos, aventurávamos uns desejos secretos à paisagem tantalizante da rua, longe de nosso gozo uma folha de vidro. Do lado de cá, a seção era um frigorífico de funcionários amarelos, tristes gentes tirando ininterruptas chapas de raios X de suas caras na tela do computador. O oco das caveiras contemplava, hipnotizado, a multidão de formigas em desfile pelas folhas brancas, algo tão estúpido quanto o brado: "perdi todo o meu trabalho!", quando sumia o cortejo negro e a folha branqueava.
-Ei, Bia, vai sair o contracheque!
-Agora? (fingi interesse.)
- Não sei, vou lá ver. Vamos?
- Vou só fazer... (e nem terminei a frase, já estava longe.)
Lá se foi a turbamulta. Todos passaram, passos, e balanços, e zunzunzuns de ditos e risadas, amigos felizes por finalmente desgrudarem as caras do visgo da tela, grandes companheiros de infância se reencontrando. Eram de si outra vez, e tinham dentes tão brancos, tinham cabelos, sim, e muitas que muitas mãos e braços.
- Vai sair o contracheque! Vai sair o contracheque!
Querer saber de contracheque, eu lá não queria. Vinha mês, ia mês, e a mesma ansiedade em receber o mero papel. Curiosidade besta, pois não havia a menor esperança sequer de um algarismo novato à direita da vírgula, talvez o que houvesse fosse antes um bom de um desconto do Fisco.
Mas eu não teria coragem jamais nesta vida de ser tão desmancha-prazeres, que, acima de tudo, a seção agora tomava uns ares de minha casa (menos pelo bem-apessoado sapato lindinho, de bico fino o sem-vergonha, que parecia costurado a fio de cobre bem puxado, num ponto que vergava a linha, vaidade doendo nos dez dedos do pé. Se eu estivesse em casa, meu pé estaria respirando seu alívio.).
Não dei a mínima para a procissão que a essa altura já havia sumido de vista rumo aos corredores que desembocavam no Serviço de Pagamento. Dediquei apenas uma lembrança ao rapaz que entregava os contracheques, dali a pouco acossado por aquele cordão humano. Vai que ainda não estivessem prontos os holerites, e as personas, decididas que estavam, só sairiam de lá com o envelopinho nas mãos.
Outra luta desnecessária, meu Deus! Mais uma vez, de novo e sempre, a reinvenção da guerra, tropas movimentando-se, "ao ataque!".
Penso num tomate podre no caminho dessa gente. Pior ainda, vejo uma casca de banana bem no meio do brilho do piso por onde essa multidão escorregará. Que nada! Não haveria um cisco que desviasse o rumo de pessoas tão determinadas: o contracheque ou a vida!
Assim, desse ângulo, o instante não me possuía, eu inteirinha, sentindo todos os dedos do pé apertados em meu sapato lindinho mas desgramado de castigador (ai, meus dez dedos!).
Desliguei o computador, tragada pelo momento. Claro, eu não me rasgava uma vírgula para o envelope numerado que, mais cedo, mais tarde, eu teria comigo. Mas detesto rifas e similares, tenho horror a números. Todo pagamento me parece miserável quando o comparo com a obrigação de horas a fio movendo dedos sobre teclas, ajeitando postura, suportando meia coladíssima querendo se arvorar de minha segunda pele, aturando a pintura borrada no rosto, eterna preguiça de retocar maquiagem. Não, o que me dava tanta cisma era o papel lacrado com as cifras dentro, a angústia forçada no abrir o contracheque. Preferia pular essa parte, sem delongas.
Ao longe, eu ouvia os rugidos e atropelos. Digo mesmo que eu até presenciava a cena, o povo chegando de chofre e invadindo a sala apertada de pagamento, revirando a papelama até encontrar num caixotinho separado o monte de envelopes. E o rapaz que entregava os contracheques, inerte como um espantalho. Bando de corvos!
Enquanto espero, posso adiantar o trabalho de amanhã. Mais alguns ofícios poucos, uns oito, e uns relatórios, talvez dois, e eu me dou por satisfeita. É, mas o frenesi impregnara todas as reentrâncias e agora queria me invadir também. Quando dei pela coisa, já estava fuçando a gaveta atafulhada, caçando algum matatempo para me entreter. Adeus, concentração!
O dentro da gaveta era que só um formigueiro de miudagens desorganizadas, caixinhas que deveriam guardar clipes, esses derramados, entrelaçados uns aos outros. Santo inferno, que tristeza!
Ah, mas um papelzinho colorido, assim matreiro, balançava uma perninha de origâmi. Puxei-a devagar para não maltratar o escrito. Finalmente eu achara tempo de passar a receita de "Pudim de Leite Condensado" a limpo, em papel de gente, daí eu a colaria mais tarde no caderno de culinária. E seria testada logo, logo, porque eu já não agüentava mais desculpar-me com a Tati, quando ela vinha: "E o pudim, deu certo?" Não, Tati, não deu, bem dizendo nem dará, porque eu não fiz pudim algum, nem sei quando farei, ora bolas! Não vê que se eu o tivesse testado e o bendito tivesse dado certo, eu até traria um pedaço para você?
Mas agora era o momento adequado do primeiro passo ("fique onde está, turbamulta, não me devore!"). E meti-me a bordar letras antigas para escrever a "Receita de Pudim de Leite Condensado". Assim: "Leve ao liquidificador (a turbamulta rodopiando sobre as hélices em turbilhão convulso) 3 ovos frescos (fresquíssimos todos os que dominam as rodas de conversa enquanto chantageiam o rapaz que entrega contracheques!), a lata de leite condensado (o sumo, leia-se "contracheque"), duas vezes a mesma medida de leite (se houvesse aumento, acho que nada conteria a euforia deles!) e bata cinco minutos (bata-se e arranhe-se após constatar que não havia aumento nenhum! Afinal para que a pressa?).
Agora a segunda parte (aqui desenho umas estrelinhas para marcar a divisão entre a parte 1 - dos ingredientes sendo apresentados um ao outro - da parte 2, dos ingredientes já amalgamados, esta: "Derrame meia xícara de chá (derramar é sempre bom, entornar, vazar, extravasar, líquidos e matérias), de açúcar (doce vida) e leve ao fogo (queimando tudo, que quero me flambar na euforia do momento que me sorve) até que o açúcar se caramelize (caramelo se dissolve na boca bem gostoso, devagar, com pausa, sem bulir no dente), até que não reste nenhum grumo (nada de ruídos, de pedras, de vozerio clamando por contracheque, só o caramelo na aquarela da saliva). Besunte toda a forma (o corpo todo se preferir), e deixe endurecer ("deixe", sem esforço). Agora é só despejar o conteúdo do liquidificador (a emoção toda), tapar a forma de buraco no meio com papel alumínio (o lado brilhoso voltado para dentro, que os brilhos todos sejam para você!) e levar ao forno em temperatura máxima (máxima! Estourando de quente! Botando pra queimar!) a primeira meia-hora. Depois, para tirar a prova, o velho palito: se sair sequinho, está pronto (Isso, desconfiar da receita, para isso o palito!)".
Terminada a receita, até que enfim. Mas. Não? Parecia que, anotado a caneta, ao pé do papelzinho, havia um lembrete: "Só desenforme quando esfriar. Nem seja louca de enfiar a forma com o pudim numa bacia cheia de água com gelo, para apressar o esfriamento! Esse truquezinho só o utilizam mulheres sem paciência, essas fadadas a errar no pudim. Seja delicada, fina. E bom apetite! Tati".
Minha amiga Tati, você bem deveria ter assinado "Tati, a irônica", que eu tomaria por brincadeira esse seu último cuidado. O problema é que conheço sua letra de quando séria: bem caprichada, sem abreviações. Como esta letra do lembrete. Ai, um simples pudim acha de ser suscetível! Por trás de um pudim sólido e frágil, também haverá uma angústia. Aguardar o esfriamento para desenformá-lo, fosse fácil! Quantos minutos, receita? (Já agora ela não respondia.). É neste ponto que todo pudim começa a dar errado. Que tão subjetivo é o esfriar de um pudim, quanto mais imprevisto ainda o seu desenformar. E Tati, pela letra bem definida, de bolinhas em lugar de pingos nos is, acha que o charme do pudim está no desenformar, tenho certeza. Mas para que então a receita?
- Oi, Bia, não foi esperar o contracheque?
- Ir eu não fui, mas esperando, estou sim (eu melada em calda, nadando no mais açucarado dos mundos, lambança.).
- Resolvi voltar do Pagamento e esperar aqui mesmo. Já não agüentava ficar em pé naquele calor.
- Acabou preferindo o necrotério, Verinha?
- Pois é. Mas, Bia, sabe aquele filme que você gravou e não ficou legal por causa da chuva?
- Ah, sei. Filme lindo. Mesmo com o chuvisco da imagem, eu quero vê-lo de novo.
- Queria dizer que eu também o gravei, e minha gravação ficou perfeita. Se quiser, trago um dia desses. Você quer?
- Mas claro!
- Só não entendi aquele negócio da chuva. Chuva estraga a imagem da sua televisão?
- É uma longa história. Acontece que meu vídeo é incompatível com a tevê a cabo do quarto, que meu vídeo é meio antigo, sabe? Que tenho só um vídeo, enfim... A televisão da sala é daquelas de antena escama-de-peixe, que ao primeiro vento se desgoverna, e eu sou daquele tempo de marido em cima do telhado gritando se a imagem melhorou. Mas ainda vou comprar um vídeo compatível com a televisão, que ando muito relaxada nessas coisas. Só que eu não queria um vídeo de não-sei-quantas-mil-cabeças, essas coisas complicadas, cheias de recursos que a gente nunca vai usar.
- Ah, sei, tenho uma tia que comprou um vídeo com várias cabeças e até hoje só gravou um filme, nada mais. Para isso ela só precisava de um vídeo que apenas reproduzisse fitas e gravasse filmes, acho que deve ser um de duas cabeças, né?
- Não sei. Não entendo bem de vídeos... Mas sei que sou dessas pessoas que não vão na onda de comprar tudo o que é eletrodoméstico.
- Eu também sou assim. Sabia que há duas coisas que todo o mundo tem e eu não?
- O quê?
- Primeiro: microondas.
- Ah, microondas! Também não tenho.
- Claro, todo o mundo que tem microondas só faz...
- ... pipocas!
- Além de utilizá-lo como enfeite da cozinha, que, convenhamos, um microondas dá um ar de moderno, de prático, concorda?
- É. Mas qual o segundo aparelho que você não tem?
- Engraçado, deixe ver...
- Ah, também não sei para que ter tanto treco, Verinha, nesses nossos minúsculos espaços! Agora fica a gente abarrotada de coisa inútil, acumulando e acumulando um monte de engrenagens...
- Pois não é? A vida tão curta, as pessoas trabalhando...
- ...e depois no fim, já velhas, se você lhes propuser trocar tudo o que amealharam a vida toda pela juventude...
- ... ah, elas não pensariam duas vezes! Mas engraçado é que as pessoas não têm limites. Veja bem, para uma determinada camada da população, nós somos ricas.
- Para uma "considerável" camada da população, minha filha! Não que sejamos "muito"ricas, claro...
-... mas porque existem muitos miseráveis.
- Exatamente.
- Mas haverá sempre um vizinho mais rico. E a gente nunca sossega, e não há limite, e por isso a gente quer se igualar a um, depois a outro. Porque se houvesse limite...
- ... o Sílvio santos não estaria ainda na ativa.
- Essa é boa!
(Uma ovelha desgarrara-se do rebanho e correra até sua mesa abrindo gavetas, procurando coisas):
- Tudo bem, meninas?
- Tudo beeeeeeeeeeemmmmmmm!
- Repara não, estávamos falando dos sílvios santos da vida.
(E o moço voltou ao ajunto dos ansiosos. Parecia que não entendera a resposta da Verinha.)
- Ah, esse negócio está demorando, não está? Acho que não vou esperar mais, Bia.
- Eu também não esperaria, mas já esperei até aqui.
- É que tenho um curso daqui a meia hora.
- Ah, então está certo. Mas espere só mais uns dez minutinhos.
- Não dá mais, acho que vou embora. Tchau.
- Então... tchau, né?
O pudim! Retomando a receita, eu havia parado no ponto da angústia, e agora já não tinha tanta certeza se esta noite eu daria início ao fiasco do "Mingau Duro Boiando em Calda Vermelha". Mas, hoje mesmo, quando chegasse em casa, a primeira coisa que faria seria... A procissão retornando, rostos realíssimos, expressões terríficas de frustração. "Descontaram isso, descontaram aquilo". Suados, camisas fora das calças, gravatas babando no ombro, o frio envelope na mão. O abrir das gavetas quase a um só tempo, depois o barulho do papel sendo guardado, das gavetas novamente fechando-se. Terminara a batalha, todos perderam. Um restinho de pôr-do-sol trazia os ares da noite. Escurecia. A seção ainda um gelo. Atrás da folha de vidro a primeira lua. Um a um fomos saindo, eu me levantando para acomodar os apetrechos cada um em seu canto.
Esquecida por completo do meu próprio contracheque, fui saindo. Uma boa alma me entregou o envelope:
- Trouxe o seu!
- Ah, muito obrigada, gentil-homem!
E não sei por quê me voltou a angústia do pudim prestes a se desenformar. Enquanto rasgava as aletas do contracheque com cuidado, que não sou boa disso, não me saía da idéia o pudim, sempre esboroado, rindo de mim. Tomei da mesa dura, fiz dela anteparo ao rasgo, acerquei-me de uma boa régua para não cometer o erro da cozinheira descuidada. A meu lado, o gentil-homem aguardava, ansioso de meus movimentos, bebendo minha angústia, certo de meu desapontamento ao final da cerimônia. De repente, a imagem de Verinha, a que desistira e fora embora para o curso havia uns dois minutos.
- Gente, a Verinha! Ela acabou de sair, deve ainda estar no estacionamento. Alguém tem o celular dela? (procura-procura em agendinhas de telefone, bloquinhos, cantos de páginas, rascunhos...)
- Ah, Bia, ninguém tem meu celular!
- Verinha, ainda aqui?
- Pois é. E o bom foi que acabei lembrando: o outro treco que eu lhe disse que não tinha era o celular!
- Mas já pensou se você tivesse ido embora? Ninguém ia poder lhe avisar!
- Ah, minha amiga, sempre acabo sendo salva. E desisti de ir ao curso.
Eu não sabia se ainda teria coragem de me aventurar, mais uma vez, a fazer o pudim certo, se conseguiria esperar que a paixão esfriasse até o dia seguinte. Enfiei duas angústias no bolsinho embutido da bolsa: o papelzinho dobrado da receita e o envelope aberto do contracheque. Rasquei o zíper de uma vez.
Mas antes de ir embora, tendo já perdido o último pôr-do-sol, interrompi-me diante da folha de vidro e voltei-me para despedir-me do cenário costumeiro. Encostada à parede, Verinha ainda conversava, abanando-se com o contracheque, e uns gatos pingados resistiam, morosos nos despedires. Saí dali pensando que chegará o dia em que Verinha terá seu celular, um desses pequeninos que nem barulho fazem.
As coisas cresciam ao transpassar da folha de vidro. Tanta coisa.