Posso vê-la, nesse exato momento, bem na minha frente, com a mão direita na nuca e a esquerda sobre os seios, sorrindo de olhos fechados, tenra, tênue, sublime de sua silhueta afável de calor e carinho, exalando suas mensagens imprecisas contra a minha mente cansada de desenganos. Estamos dentro da loja de arte moderna, perdidos e embalados em quadros infinitos, tão lindos que eu não dou a mínima para sequer uma grama da porcaria de tinta ou inspiração dos infelizes que os pintaram. Escolhe um, ela pede, pode escolher que eu vou pagar mas eu odeio arte porque a arte me corrompe terrivelmente, estou carcomido por essa porcaria a milhares de gerações e infelizmente, por mais que eu tente e me esforce em esquecê-la, não sou poupado e caímos em amor; não que a arte me ame(eu a amo, eu sei, eu sei que a amo), pois toda arte está morta, mas somos drenados como um só e me dá vontade de vomitar só de pensar que existe tudo isso dentro de mim me fazendo tão infeliz. Vai, escolhe um, vamos olhar do outro lado, tem muita coisa bonita aqui, você vai adorar aquele Van Gogh; ela é insistente e doce, comenta tela por tela, definitivamente apaixonada pelo que vê. Bem que tentei alerta-la dessa maldição, mas somos todos desenganados, irrecuperavelmente iguais. Já havíamos percorrido toda a galeria do primeiro andar e eu não dissera uma palavra sequer mas ela de alguma maneira entendia a minha omissão, talvez por ignorância, dó ou compaixão. Chegamos na parede do Monet e eu quero um Lexotan, pelo amor de Deus; não sei se é ansiedade para sair deste lugar maldito, mas sinto o suor esfriar dentro de mim, minhas palpitações aumentarem aos poucos e a minha cabeça latejar, só que ninguém nota. Olha só, vamos fazer aquilo que a revista disse, chegar perto e depois se afastar, o efeito na pintura muda completamente, uma coisa maravilhosa, e ela se aproxima da tela e eu quase entro em pânico por isso. O desespero me faz recordar de pessoas idealistas e de como eu as odeio com todas as minhas forças porque elas me ferem com uma enorme determinação para a inutilidade, agindo mecanicamente, passando por cima de tudo e de todos, inclusive de mim, mesmo que eu seja um inofensivo, mesmo que eu sirva de apaixonado, mesmo que eu me prenda a nada e escorra pelo ralo, sumindo na sarjeta. Ela se afasta do quadro maravilhada e eu não consigo mais sentir os meus braços, que amortecem e pesam toneladas, assim como as pernas perdem a elasticidade nas articulações e clamam por um leito paliativo. Você não quer mesmo um quadro, ela continua a insistir e não tem noção do quanto esta me machucando(mais do que já machucou), então vou te dar uma escultura e seguimos para o segundo andar, com meu corpo definhando em uma agonia interna que ninguém parece ver. O nível a seguir parece mais terrível que o das telas, com todas aquelas figuras em barro, cerâmica, metal, vidro e plástico convergindo para me atormentar com formas e tendências diferentes, tamanhos que imitam os ângulos, padrões que abominam os sentidos e disposições desconexas que desconcertam minha alma, lá no fundo. Chega de arte, chega de farsas, isso tudo não passa de uma grande maldade para pessoas que estão ultra sensíveis, como eu me sinto agora. Ela aponta, toca, comenta, divaga e analisa cada centímetro esculpido, talhado, colado ou montado no salão e pergunta se gosto de algum mas eu não posso responder porque se abrir a boca vomito meus pulmões junto com o estômago, fígado e tudo mais que ainda me mantém vivo. Sinto-me como se esses órgãos estivessem simplesmente boiando em sangue dentro de mim, esperando um ferimento para fluírem e conhecerem o exterior. Olha aquela estátua cubista, que coisa impressionante, estou toda arrepiada e corre em direção da ferida, deixando-me cada vez mais desolado, pára com isso pelo amor de Deus(mas Ele nem liga, Ele não liga para os ateus ou para os que simplesmente não crêem em uma unidade existencial que centralize toda essa porcaria mal feita e borrada que chamamos de mundo). Como tudo me deixa mais deprimido e amargurado e deixam-na mais ansiosa pela tal arte, vamos até o terceiro andar onde a música nos espera; milhares de partituras dispostas, instrumentos antigos e bustos de compositores, sejam eles eruditos ou contemporâneos, mas todos me afetam e fazem com que a minha doença se agrave. Ela toca no violoncelo com a ponta dos dedos, puxando uma das cordas e desrespeitando os dizeres da placa; quando o som ressoa é como se rasgassem minha carne devagar, numa dor aguda, intensa e fracassada, maldita o suficiente para não servir de purificação e ingênua o suficiente para não se tornar uma punição por crimes que jamais cometi. No meio da galeria há um Vivaldi olhando para mim como um objeto de auto flagelo, sedento por destruir-me com toda a suas escalas e harmonias, estação por estação, e eu me mantenho ao lado dela, quase desmaiando com tanto peso nas costas. Vamos ver o último andar então, não é possível que você não queira nada de lá, e me puxa pela mão, subindo as escadas até a próxima galeria que expõe títulos quase infinitos de livros que guardam o legado da humanidade. Besteira. Ali minha dor vira ódio e desprezo e encontro lugar para detestar nossos amores, em meio a tantas páginas amarelas. Ela procura autores, nomes, clássicos e epopéias, mas tudo o que consegue é encontrar minhas feições endurecendo, secando e se consumindo em uma chama terrível de rancor; deviam queimar todo aquele lixo, celebrar as cinzas jogando sal grosso e invocando blasfêmias naquele solo apodrecido. Procura um livro, alguma coleção, algum autor que você goste, por favor, já rodamos tudo aqui e você não deu uma palavra. Não existe sons na nossa língua capazes de emitir o que eu sinto agora, querida, e eu finalmente aponto para alguma coisa, lá no fim do penúltimo corredor, embolorando com a parte esquecida daquela maldita loja de arte. Nada disso seria necessário se eu não colocasse as coisas para o extremo, mas não há saída e é a única solução; se eu cedesse, tudo mais ruiria sobre mim, sobre nós e sobre o que conspirasse a meu favor. Ela parece quase correr até onde indico, passo por passo, ansiosa por saber o que eu afinal havia escolhido e o que tanto valeria nossas obsessões. Analisa, hesitante, impassível, esplendorosa em seus contornos delicados, com os olhos brilhando, sóis que se amam, e um dedo sobre o lábio inferior, roçando de leve a carne vermelha. Procura, procura e não consegue achar o que eu escolhera; nem vai achar, infelizmente. Eu não escolho nada dali que não seja para queimar no inferno, a não ser a ela mesma, que não se achou. Sendo assim, antes que volte os seus sóis para mim, quero estar muito longe, distante, largando-a sozinha, partindo com minhas feridas expostas cheio de dores, desafetos, desenganos, fluindo a arte que restasse em mim por todos os poros até algum lugar longe dela. Não somos amantes, não pertencemos um ao outro, nem haverá cura para a minha doença. Prossigo.