Usina de Letras
Usina de Letras
79 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 


Artigos ( 62742 )
Cartas ( 21341)
Contos (13287)
Cordel (10462)
Crônicas (22561)
Discursos (3245)
Ensaios - (10531)
Erótico (13585)
Frases (51126)
Humor (20112)
Infantil (5540)
Infanto Juvenil (4863)
Letras de Música (5465)
Peça de Teatro (1379)
Poesias (141061)
Redação (3339)
Roteiro de Filme ou Novela (1064)
Teses / Monologos (2439)
Textos Jurídicos (1964)
Textos Religiosos/Sermões (6293)

 

LEGENDAS
( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )
( ! )- Texto com Comentários

 

Nossa Proposta
Nota Legal
Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->El Teboroso -- 26/05/2003 - 00:55 (Jactâncio Futrica) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
El Teboroso


Eis que chegam os dois _ ele e Vânia, sua noiva _ em visita a casa de uma tia desta, até então desconhecida de Cacá. Tia Juraci ainda não conhece a peça.

Carlos Lauro é aquele tipo de rapagão cheio de onda, cismadão. Enfiou na cabeça que é a coisa mais saborosa do pedaço e pronto, apaixonou-se por si mesmo.

No idílio primaveril da juventude, do alto dos seus 25 anos, ele resplandece, equilibrado em seu pedestal de ilusões. Um ego lambuzado de mel, açúcar e chantilly. E mais um bocadinho de açúcar! Uma Ferrari último tipo em forma de gente. O que ninguém imagima, ao vê-lo tão transbordante de si, é que ele ainda molha os lençóis da cama, vez ou outra, quando sonha com o bicho papão.

Os filmes de ação americanos, centenas deles, formaram a cosmologia pessoal de Cacá. Não sem razão, ele tem o dom especial de afetar todas as atitudes e trejeitos daqueles ídolos do cinema, especialistas no gênero “fodão” (o ex-milico paranóide a quem o Pentágono vem implorar quando necessita dum elemento sobre-humano na jogada). Ele conhece todos os climas, todos os lances cênicos, todas as fotogênicas e crepitantes asneirinhas dignas dum bom roteiro norte-americano; sabe como encaixar ali um personagem bem seboso e como agir dentro da pele desse personagem: às vezes impetuoso, às vezes cool; às vezes sombrio e caladão; frenético quando em vez. Sofisticado e rude, simultaneamente. Benevolente, mas implacável. Pragmático, porém melosamente sonhoso em momentos de quietude e luar. Frio e impenetrável, porém inerme como uma criança, quando o poder do amor se impõe ou quando se lembra do perfume de uma rosa. Um fascinante amálgama de contradições, um enigma a ser desvendado... Pra fim de conversa:‘O’ Petisco!

Todas estas prendas e cabedais acabam por lhe conferir aquela personalidade robusta e magnética, aquela largueza de gestos, aquele carisma de menino grande e forte, carente de adulação, que inpira um misto de pena e intimidação _ pois ele parece poder muito bem machucar a si mesmo e aos outros caso perca o controle, ou seja, caso se desespere por não ser levado a sério.

#

Mas eis que chegam _ ele e Vânia _ em visita aos tios desta.

Constatando, logo de cara, que se trata de gente de condição mais humilde que a sua, Carlos Lauro, que por precaução se sentia de moderado tamanho até um minuto atrás, automaticamente passa a se sentir mais ilustre, mais dono da pelota. Apesar da diferença de idades, ele cumprimenta os donos da casa com uma jovialidade esfuziante, uma pegada firme e franca, quase que brutal no aperto de mãos, como se dissesse: “Alô, meninos, estou me sentindo ótimo hoje! aproveitem!” O tom prazenteiro e folgazão, que geralmente implica num postulado de cordialidade irrestrita, neste caso traduz uma clara presunção, por parte de Cacá, de que a sua presença ali é uma honra pros anfitriões. Seu peito enche-se de brisa! De sua galeria privativa de arquétipos hollywoodianos, ele evoca mais um de seus alter-egos: um nobre rei complacente, magistralmente interpretado por Charlton Heston.

O primeiro cômodo da casa é a copa, onde eles se assentam em torno da mesa já posta, pra comentarem as últimas manchetes da semana enquanto lambiscam uns quitutes; Vânia, Cacá, tia Juraci e o tio Welerson... Minutos mais tarde, depois de dar um verdadeiro show de desequilíbrio mental e monopolizar os artigos mais suculentos da mesa com a fúria de um leão, ele se levanta (a boca cheia de requeijão, ketchup e patê de sardinha) e interrompe o assunto da tia Juraci: “Agora vamos conhecer o resto da família!”, comanda ele sem a menor cerimônia. E dirige-se à sala, onde estão a vovó, as meninas e o tio Biba, assistindo televisão. Atravessa de sopetão a cortinazinha de tergal, batendo palmas, todo animadão. O pessoal se assusta.

“E aí cambada, cumé quié?! Nóis vamo ganhá esse jogo de hoje ou num vamo?!”, grita ele, referindo-se a uma partida de futebol que vai acontecer daqui a pouco, semifinal do campeonato carioca... Depois das apresentações, da troca de referências, do cheira-cheira e tal, a atenção do grupo passa a se dividir entre a conversa e o programa da televisão. Cacá desfia ruidosamente suas façanhas e predicados, sua genealogia augusta etc. “Aí, eu falei pro mecânico: taí o carango! se vira! troca tudo que não estiver cem-porcento-tinindo; não quero saber de preço! Faz balanceamento, alinhamento, revisa motor, suspensão... toma aqui dois milzim adiantado e se vira!” Tio Biba e a vovó, tentado assistir TV com rabo de olho, vez em vez contra-argumentam: “Pois é, né?!”

“Posso dar um telefonema?”, diz Cacá. “Claro, a casa é sua!” Ele só não explicou que ia ligar pro serviço esotérico que acabou de anunciar na TV. “Os poderes da numerologia a 5,99 o minuto”. Após quase meia hora de um papo muito esquisito ao telefone, Cacá se volta pro pessoal com a fisionomia de quem acabou de receber uma notícia maravilhosa. Com passadas enérgicas, visivelmente excitado, dirige-se à televisão e a desliga na cara de todos. “Vamo dialogá, minha gente, vamo dialogá! O que o mundo mais precisa hoje em dia é de diálogo, de pessoas que se comunicam, que trocam idéias!”, decretou ele, modulando saborosamente a voz. Com este gesto, que copiou de um filme, supunha estar sendo despirocantemente libertário e sedutor (e lindo como o ator cabeludo que protagonizou o filme). Passou então a falar de seu telefonema pro serviço de Walter Melado, o travesti esotérico.

Cacá desejava algumas revelações adicionais sobre sua deslumbrante personalidade. Por isso ligou. E foi batata: bastou dar seu nome e dia de nascimento pra que a feiticeira de plantão deslindasse com espantosa precisão todos os empolgantes aspectos de seu ser. A baranga, do outro lado da linha, não teve dificuldade em retê-lo por 25 minutos ao telefone, após detectar nele aquela espécie de bobeira, mesclada com vaidade e imodéstia total. E foi esta a matéria do “diálogo” que ele marretou por uma hora na cabeça do pessoal: toda a lenda, toda a vertigem, todo o mistério que jazem ocultos em seu universo interior, à espera dum chamado do destino. O imenso coração que bate em seu peito de bravo. Algo, talvez, mais forte que a própria vida!

Então, já repleto e satisfeito, ele consegue se lembrar de outro assunto.

_ Ih, caralho! O jogo! _ ele pula do sofá e torna a ligar a TV.

_ Porra, o Vasco já fez um gol, caraca! _ e pula de volta, escarrapachando-se entre a vovó e as meninas.

_ Cruza a bola, viado! ... Não tem cerveja aí nessa casa não, ô malandragem?! ... Vai tomá no cu, filho duma puta, abre esse jogo pela direita, diabo!... Essa merda vive só pra chutar uma porra duma bola, não faz outra coisa na vida, e não sabe acertar um cruzamento na área! Puta-que-o-pariu!..

Chega um momento em que a sala tá vazia. Todos saíram, constrangidos, um a um, de fininho. Ficou só o Cacá, compenetrado, gesticulando e gritando palavras cabeludas a torto e a direito. Num desses faniquitos, duas moedas lhe escorregam do bolso da calça e caem na fresta entre o assento e o braço do sofá. A princípio ele fica futucando distraidamente com os dedos, enquanto acompanha o jogo; depois tenta com uma caneta; depois com uma agulha de tricô que achou no armário do quarto de casal. Sem sucesso, começa a ficar nervoso, passando a dar estocadas e arrancões. Tirar aqueles míseros centavos da greta tornou-se pra ele uma questão de honra. Sem hesitar, ele então põe-se a arrombar o sofá aos solavancos, bufando e grunhindo. Pro sonsão, nada mais existe no mundo neste momento a não ser a sanguinolenta vingança em que ele se empenha com todas as fibras de seu ser!.. Atingido seu intento, dirige alguns desaforos emocionados às moedinhas, recoloca-as no bolso e engatilha descaradamente as duas partes quebradas da mobília, deixando-a pronta pra desmoronar a um simples assovio.

Com a consciência leve e quite, nosso príncipe troca de assento e continua a assistir o jogo, tranqüilamente... Percebendo que o pessoal tá todo na varanda, ele abandona a timidez e invade a geladeira, à procura de cerveja. “Porra, só tem três!.. Se eles perguntarem qualquer coisa, digo que já cheguei aqui com elas... Oba! tem uma cidra aqui também!.. dá pra completar a calibragem.’’

O jogo terminou, um a zero pro seu Vasco. Feliz e meio bêbado, ele reencontra a noiva e os parentes no pequeno quintal. “Vocês não imaginam o quanto estou feliz hoje!.. saber que acabo de aumentar minha parentela... pessoas assim como vocês!.. simplesinhas mas sangue-bão dimais!.. E esse seu temperinho, hem tia Juraci! me conta aí, hem!!” Cacá expõe sua análise do jogo, os equívocos do sistema tático, as palhaçadas da arbitragem, e conclui a conversa com reiteradas exclamações de como a vida é linda e preciosa. Vânia está orgulhosa!

Assim ele se despede, convencido de ter encantado a todos! Leva consigo, de cortesia, o caderno de esportes surrupiado do jornal do tio Welerson, um bonito canivete com cabo de chifre e um abridor de garrafas em forma de cavalo marinho. Deixa, em contrapartida, algumas lembranças que os donos da casa logo vão descobrir: uma peça de mussarela com várias marcas de dentada, um sofá arrombado, uma privada entupida, a televisão quase estourando no volume máximo, quatro garrafas de bebida dentro da máquina de lavar roupas e uma bomboneira de cerâmica cheia de urina em cima da estante da sala... Começo do mês que vem, a contragosto, eles tornarão a se lembrar do despachado ‘sobrinho’. “Deve haver algum erro aqui!”, pensarão eles ao receber a conta telefônica de 200 reais, sendo que 150 referentes a uma só ligação. “Que nome mais estranho é este?.. Sucesso Total _ Os Números Divinos de Walter Melado...”


Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui