Foi numa praia, praia de rio, o primeiro encontro dos dois. Um tão franzino, o outro não menos frágil. Pequenos mesmo para um olhar de fora. Mal saberia quem se atrevesse a tal observação o que era verdade. O caso me lembrou aquele outro menino. Apesar de foi bem diferente. Aquele menino não gostava de passarinhos, vivia com o estilingue na mão a procura de um. Até que conseguiu acertar uma pedra de longe bem no bichinho que caiu duro no chão. Aquele menino jogou o coitadinho atrás da cerca e passou o resto do dia brincando. No outro dia acordou desesperado, tinha sonhado com o passarinho aos pés da cama cantando. Logo ao abrir a porta; e não é que o corpo do defuntinho estava esticado em frente? Incrível, não?
Num sei o porquê contei essa história, até porque não tem nada a ver com a outra. Talvez porque nas duas haja um passarinho e um menino, porém, a primeira aconteceu 10 anos Antes da segunda e os fatos fossem bem diferentes. Contudo, o que vou contar agora é a segunda, a do encontro na praia e a que mais me emocionou. Sim, emocionou. Queria ver se estivesse no meu lugar e presenciasse todo início da descoberta e envolvimento do menino com o passarinho. Pode até parecer bobinha, mas quem lembra ainda de seus tempos de criança, sabe como nós facilmente nos apegamos ás coisas, a fim de salvarmos nossas carências e esconder nossas fragilidades, principalmente por seres de aparência meiga como animais e brinquedos, e quem refletir um pouco irá perceber que não é diferente quando se é adulto.
Assim, fiquei desconsertado perante aquela cena. O meu sobrinho mais novo, o qual levei nadar comigo na praia, tentava a todo custo capturar um passarinho ferido que se escondia para se defender. Tio, se eu não levar o passarinho daqui, ele pode morrer, disse-me com espírito sóbrio e solene de alguém que já conhecesse muito da vida e da morte. Gritei na mesma hora; deixe o aí, ou jogue no rio, esse bicho vai te dar muito trabalho e ele não vale um tostão, com uma insensibilidade ingênua negada pelos olhos do menino. Ta bom, leve! Mas responsabilidade é tua garoto!
Meu sobrinho pegou o animalzinho com tanto cuidado e carinho para não o machucar, como se tivesse nas mãos um tesouro. Pensei: coisas de criança, já adulto esquecerá os mais fracos atacando os para sua sobrevivência e poder. Também eu nem ligava muito para animais e coisas do gênero, achava uma perda de tempo e aquilo não passava de uma mania de um menino de 8 anos. Dentro do carro olhei o rapazinho segurando com apenas uma das mãos a ave e fiquei imaginado o que seria do meu automóvel se o bicho fizesse cocô ali mesmo e fui vermente mais uma vez de que a responsabilidade seria dele, porém, o menino nem me ouvia, já estava tão compenetrado de amor e ternura pelo montinho de penas que queria ser alguma coisa, que estremeci. E se o pássaro morresse nas mãos dele? O que seria? Jogue esse bicho pela janela Luan! Esse animal não presta, só vai te dar dor de cabeça.
O menino continuava quieto, não resisti: Ta bom, ta bom, quando chegarmos a cidade, iremos procurar algum especialista para cuidar do assunto, ta bom? O menino sorriu. Chegando lá o zôo estava fechado, liguei para os bombeiros e eles me disseram que nada podiam fazer, já eram mais de 6 horas da tarde, não tinha nenhum veterinário aberto, até que venho uma mulher oferecer para ficar com o passarinho. Ela daria ração, cuidaria da ferida etc. mas vi Luan desesperado aos olhos, com medo de perder o bicho, e pior; preso numa gaiola! Apesar disso, sabia que sua vida estava em perigo e não arriscaria a não doá-lo para alguém que pudesse mantê-lo vivo. Contudo não sei como eu fiz, mas não deixei o fazer isso. Ele me agradeceu com aqueles abraços e beijos no rosto de amolecer qualquer pedra.
Chegou em casa, o menino foi ajeitar tudo, desde ma caixinha de papelão onde seria o abrigo, até os recipientes com água, papinha de fubá e de pão, panos limpos e até um pau como apoiador, sei lá como se chama. Um capricho feito por um pequeno menino, mas que já conhecia a força que o motivava. E eu me sentia mal com tanta boa ação, carinho e afeto de graça. Luan não desgrudava mais daquela caixa. Para cima e para baixo mostrando o passarinho para os seus amigos e elegendo o mascote da turma. Não me dei conta de quantos já eram os meninos e meninas que se ternuravam do que eles chamavam de Girassol. Um pássaro com nome de flor, engraçado demais para o meu gosto. Tanto entrosamento e dedicação me fizeram até esquecer o veterinário. Talvez fosse apenas um corte de nada.
Assim ficou, o menino e o passarinho com dois amigos fizeram o favor de não lembrar do tio aqui existia. De repente, o mundo de toda criança de 8 anos ganhava uma missão diferente. Uma brincadeira nova como nunca se viu. É que para mim, tanto faz. O pássaro vivo ou morto. Na verdade fazia até Luan, meu sobrinho se encantar pelo Girassol. O menino até tentou devolvê-lo a uma arvore, mas, o passaro também estava cativado pelo menino. Não quis ir embora, voltou voando desesperado para o seu ombro. Aquela demonstração de afeto era tudo que Luan precisava para se sentir recompensado.
Não disfarcei meu sorriso ao contar me o ocorrido. Seria penoso demais para ambos, a separação naquele momento. E acho que para mim também. Mas ela não foi impossível de ser evitada. Era já o terceiro dia que estavam juntos. Luan colheu acerola, catou minhoca e fez papinha de fubá como de costume. Abria o bico de Girassol com cuidado e dava a comidinha com colher na sua boquinha. Ou melhor, no seu biquinho. O problema aconteceu no 4° dia e o que mais me doeu, foi que na noite anterior, tal como pressentindo e intuição, o menino não parava de ir até a caixa para verificar se o passarinho estava bem. Fiquei nervoso e gritei. Menino vai dormir, deixe o pássaro em paz. Antes disso, ele parou em frente do bichinho com um olhar bem triste e distante. Pegou o passarinho nas mãos, afagou sua cabecinha contra o seu peito e se despediu.
Eu já não sou mais o mesmo depois desta manhã. A imagem do menino com o passarinho nas mãos, os olhos se mantendo como podiam em pé, o corpinho frágil daquele animal rijo... Sempre disse para o meu sobrinho que homem não chora, até quem desabou primeiro foi eu. As lágrimas corriam elo meu rosto sem nenhuma razão que me desse esse direito antes de Luan. Já não eram tio e sobrinho se abraçando, mas agora dois meninos que tentaram voar, um que já esquecera do vôo e o outro que acabara de pousar.
Nesse momento Luan está enterrando girassol com mais outras flores. Enquanto eu estou tirando da gaveta, já todo gasto pela poeira e que nunca mais teve e nem terá um elástico, o meu estilingue.