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Contos-->O homem contrariado -- 24/01/2000 - 09:32 (Edson Amâncio) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O HOMEM CONTRARIADO








Numa dessas belas manhãs de fevereiro, desci à calçada e peguei o ônibus em direção à cidade. Não tinha, àquela hora, objetivo definido. Duas horas mais tarde, deveria procurar uma pessoa num hotel que eu mesmo reservara. Um desses hotéis decadentes que, nos finais de semana, se enchem de turistas de baixa renda. Quando reservei este hotel já me sentia contrariado. Como não houve nenhum tipo de exigência por parte dele ao telefone, reservei o Astória. Fiz de caso pensado. Poderia ter reservado um desses sofisticados hotéis da orla, com os salões abarrotados de tapetes suntuosos, telas caríssimas de gosto duvidoso, onde uma plaqueta estrategicamente colocada sobre a moldura anuncia o valor da "obra de arte" e - naturalmente - o nome (bem legível) do seu infeliz comprador. Cheguei a ir a este hotel. Pessoalmente, procurei saber o preço da diária, conversei com porteiros de uniforme, gerentes enfatiotados cheirando a perfume barato, perguntei por estacionamento e me escafedi, convicto de que meu hóspede não se hospedaria naquele ridículo êmulo de Palácio de Cristal. Contrariado, saí dali e, dessa forma, fui bater às portas do Astória. Não pensem que meu ânimo azedo me trouxe algum tipo de satisfação ao percorrer os corredores cheirando a mofo do Astória. Nenhum prazer mórbido ao ver o carpete puído, com um buraco aqui outro acolá, e nem quando me deparei com baratas trançando antenas num vão entre a parede e o batente. O quarto, para minha surpresa, era limpo. Os lençóis, evidentemente muito antigos, quase transparentes, não ostentavam nenhuma imundície, como era de se esperar. Embora o ar condicionado fosse apenas um buraco na parede e, da janela, a visão estivesse obstruída pelo dorso de uma enorme placa de luminoso que cobria não só a paisagem mas impedia também a penetração da luz, decidi, contrariado, que meu convidado se hospedaria ali.
Desculpem-me as divagações, mas me ative aos detalhes dos hotéis com o fito único de lhes mostrar meu estado de ânimo naquele momento.
Voltemos ao meu passeio.
Desci do ônibus na cidade. Na rua Amador Bueno, fui me esgueirando pelas transversais estreitas, me equilibrando entre os passantes e a fila de carros que se espremem naquele verdadeiro moedor de carne por onde os automóveis circulam em fila indiana entre os pedestres. Quis tomar café num bar de aparência decente e recuei no último minuto. Por que "no bar de aparência decente?" Voltei, sem saber ainda o que fazer, quando vi a tabuleta daquela espelunca onde há algum tempo os proprietários foram surpreendidos trinchando um vira-latas para fazer pastel. Por que não aí? pensei. E, sem muito refletir, entrei no bar. O chinês que me atendeu, mal me viu, ciciou:
- Pastéis?
- Sim, pastéis, respondi. Dois para viagem.
Por alguma razão misteriosa me recusei a comer os pastéis ali, ao lado de vagabundos que dormitavam sobre uma mesa, com moscas lhes sobrevoando as cabeleiras desgrenhadas. Peguei a sacola de pastéis e saí pela calçada, em direção à alfândega. Ao passar pela XV de Novembro ainda não tinha decidido comê-los. Vi um casal de mendigos se atracando por um pedaço de bife, e joguei a seus pés o pacote. Obviamente eu ainda estava contrariado. Não fiquei para ver as conseqüências do meu ato irrefletido. Continuei.

De cada lado da rua havia uma papelaria. Ah! era esse o objetivo difuso a que eu me propusera. Precisava confeccionar cartões. Na dúvida entre a de melhor aparência e a outra, escolhi a última. Fui atendido por um balconista com dois metros de altura que me abordou assim:
- Qualé, meu...?
Sem dúvida, era uma péssima recepção. Não teria sido melhor retroceder, procurar a papelaria em frente? pensei. E aí voltou a mim a irrefreável questão: "Por que a papelaria em frente?" "É mais limpa?" "Virão me receber como a um barão?". "Qual o meu propósito aqui?" "Não é apenas confeccionar cartões?" Logo, concluí, esta aqui está perfeita.
- Cartões, balbuciei, mal-humorado.
- Manda lá o tamanho e os dizeres, ele continuou.
Em dois minutos tudo estava arranjado. Deixei a papelaria, enquanto uma mulher esbravejava por uma encomenda que fora entregue com erros.
- Mil exemplares! berrava. Tudo perdido!
Temi por meus cartões, mas já estava longe antes de saber o desfecho da estória.

De volta à Rua XV, eis que me ponho a discutir com o segurança do banco onde fora sacar minha aposentadoria. Ele não me permitiu entrar de bermudas e chinelo. Era o cúmulo. Ameacei entrar. Ele, um rapaz franzino de uniforme cáqui com enorme cassetete pendurado na cinta e um revólver no outro lado, certamente não estava blefando. Lembrei-me na hora daquele crime que os jornais anunciaram com estardalhaço, em que um vendedor de livros fora metralhado dentro de um banco confundido com um bandido. Recuei do meu ímpeto contrariado e tentei dialogar. Cheguei mesmo a levantar o braço num protesto miúdo para, logo em seguida, coçar a cabeça num gesto nítido de impaciência. Expliquei que iria apenas à caixa, falei da distância percorrida para chegar até ali, do compromisso que teria a seguir, do tempo perdido, etc., etc. Em vão. As pessoas que circulavam pela escadaria se contentaram em olhar com alguma curiosidade a nossa lengalenga. Alguns me olharam com desprezo a bermuda rota, a camisa entreaberta no peito e meu olhar decadente e derrotado. Mas estaria mesmo derrotado? Era esse, na verdade, o sentimento que me dominava? Eu teria, literariamente falando, depositado as armas diante de um obstáculo tão ridículo quanto esse? Ou apenas me abatera um estado de ânimo indefinido, desses que de tempos em tempos nos dominam de chofre, diante de uma situação inusitada qualquer, sabe-se lá por que razão? Uma apatia súbita, uma vontade enorme de deixar de lutar, um cansaço de ter que provar que você também é um cidadão, tem direitos e, se quiser, pode até se transformar num Napoleão. Napoleão! Afinal, qual é mesmo a medida da minha insanidade? E pensar que Napoleão já era general aos 23 anos...
Acabei me dando por vencido e me retirei, recriminando as leis, as convenções, as ordens dos superiores e a incapacidade dessas criaturas mal preparadas para lidar com o grande público. Sim, foi isso mesmo o que pensei. Então, por estar afastado das atividades que exercera durante meio século eu não poderia mais ser considerado um mortal comum? Não pertenceria mais ao "grande público"? Em que espécie de gente eu me teria convertido? Saí por ali, sem saber direito o que fazer ou aonde ir, com o objetivo da minha viagem reduzido a um evasivo e impessoal "Não. De bermuda, não!" Poderia ter protestado, agarrado o franzino pelo pescoço e me atracado com ele ali na escadaria. "E os anos todos, seu verme, em que deixei meu sangue na repartição? Contemple esses cabelos brancos, o joanete, a ciática e o reumatismo que adquiri no serviço e responda: posso, ou não, entrar aí de bermudas?" Mas... minha irritação não durou o tempo de chegar à praça Rui Barbosa, andando até o final da XV. Ali, peguei uma ruela à esquerda, passei em frente à única barbearia antiga que a cidade conserva, tomei de novo o ônibus e fui encontrar meu convidado.
Feitas as contas, cheguei ao local pouco mais de 11h30 da manhã. Um sol vermelho iluminava o chão debaixo da marquise do hotel, onde contei seis pessoas dormindo ao relento. Quatro delas não tinham mais do que 12 anos. Não parei para olhar. Vi a cena de esguelha, maldisfarçando. Passei de fininho, como aliás passavam os outros transeuntes. Ninguém se espantava, ninguém parava para ver. Íamos passando... Se algum de nós sentiu uma ponta de culpa, ninguém demonstrou. Vimos e tornamos a ser o que sempre fomos, se posso utilizar o clichê. Me explico melhor. Eis o cerne da questão. Fizemos vista grossa para o populacho deitado ali sem teto. Falei em populacho. Talvez tenha sido indelicado. Ali, debaixo dos nossos olhos estava a borra da sociedade, a ralé, a escumalha. Por isso, olhamos apenas. Teríamos agido diferente se ali, debaixo daquela marquise, sob o sol de fevereiro, ao meio-dia, estivesse deitado um dândi ou um caudilho, um cacique, um jabarandaia, um mandachuva? É claro. Todos sabemos a resposta. Seríamos os primeiros apressados a socorrer a vítima. Não digo isto para chocar. Gostaria de ter sido mais delicado. Mas é a realidade. O pajé deitado sofreu um ataque de amnésia, um porre ou coisa que o valha. A ralé deitada é outra coisa. Mas talvez estejam curiosos para saber como reagi. Vejamos.
Sem pestanejar, entrei na recepção do hotel pulando por sobre as pernas de um dos meninos. Infelizmente, meu convidado ainda não chegara. Agora sim, o que fazer? A primeira idéia que me ocorreu foi esperá-lo sentado numa daquelas cadeiras enfileiradas, pegar um jornal e aguardar. Mas como poderia cometer tal desatino? Meu impulso foi esse, eu o deveria ter seguido. Era incômodo, vexatório, permanecer ali, como um turista indiferente que só vê os coqueiros, o mar e as moças de biquíni? Era. Por isso mesmo eu deveria ter-me sentado, contrariado. Eu deveria ter feito como os verdadeiros turistas. Mas certamente temi o "olhem o folgado" que teriam dito a meu respeito. Logo, embora contrariado, resolvi me afastar. Atravessei a rua, procurei a sombra protetora de uma árvore e me pus a ler o jornal. De vez em quando meu olhar resvalava sobre o calçadão do hotel. Ninguém se mexia. Àquela hora, o sol atingira o zênite. O ruído do trânsito era ensurdecedor. Nem assim as crianças despertaram.

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