Danilo saiu do quarto esgueirando-se pelo corredor que levava à sala. Havia antes checado para certificar-se de que não cruzaria com ninguém no caminho rumo à porta de casa. Trazia um volume junto ao corpo, seguro pela mão direita. Se alguém pudesse adivinhar-lhe o conteúdo, saberia ali estarem dois filmes pornográficos.
Obteve êxito ao chegar à porta. Quando já ia fechando-a, escutou o grito de sua mãe indagando-lhe onde ia. “Vou lá embaixo e já volto”, respondeu indiferente. Desceu o elevador e inspirou profunda e aliviadamente quando, no térreo, constatou a própria sorte de não topar com nenhum vizinho.
Danilo tinha vinte e quatro anos e era noivo de Viviane. Mais dois meses e seria homem casado. Iria morar num apartamento menor, posto que próximo àquele onde então residia com os pais. Livrar-se dos filmes era necessidade premente. Não podia levá-los para a nova residência, pois já havia mentido à noiva ao confessar que não tinha nenhum interesse maior em filmes pornográficos, que os presumia de mau gosto e nesses casos era melhor nem experimentar. Homem que era homem não precisava daquilo para excitar-se - completou, sentindo instaurar-se na expressão da amada um efeito de satisfação e confiança. Ao lembrar disso, um breve sorriso ameaçou expandir-se nos lábios até então secos e grudados pela apreensão de ser descoberto.
Entrou no carro e deu a partida. Dirigiu rápido durante todo o curto trajeto que o separava de seu destino, um pequenino condomínio de apartamentos, onde vivia talvez o seu melhor amigo de infância e adolescência, Mauro. Tocou a campainha e o próprio Mauro foi quem veio abrir-lhe a porta.
- Danilo! Quanto tempo, rapaz!
- Mau, podemos ir para o seu quarto? – sussurrou Danilo, que tinha o poder nato de fazer agigantar-se nas feições os menores temores do seu íntimo.
Chegando ao quarto, Danilo transpareceu certo relaxamento e procurou a maneira mais correta de introduzir o assunto que o levara até ali.
- Mau, você sabe o que tem nessa caixa?
- Imagino que sejam os filmes pornôs que nós vimos na sua casa há uns oito ou nove anos atrás.
Danilo esbugalhou os olhos demonstrando certa estupefação.
- Mas como? Há na caixa alguma brecha ou estou a conversar com um vidente?
- Nem uma coisa, nem outra. Ou melhor, talvez ambas. O formato da caixa denúncia o conteúdo. Pior do que isso, só se você houvesse trazido num saco plástico. E também tive a intuição de que eram os filmes porque não lembro de você ter mencionado que destino deu a eles depois daquele período. Aliás, esse é o tipo de coisa que, justamente por estar sempre escondida, termina por alojar-se na casa sem que o próprio possuidor o perceba.
- Tudo bem, tudo bem. Será que você poderia ficar com eles?
- Claro, sem problemas. Ficou receoso de que Viviane ou sua mãe os descobrissem, não?
- Um pouco ... Na verdade, eu acho que minha mãe sabe. É uma questão de probabilidade, ela arrumou tantas vezes o meu quarto, remexeu tantas vezes minhas gavetas e armários, que acho não ter havido esconderijo que a pudesse deter. De todo modo, ela nunca mencionou nada. Sabe como são as mães, não?
- É verdade, elas querem saber tudo de seus filhos. São, porém, as mais discretas.
- Bem, é isso. Eu agora vou indo. E, caso não nos vejamos mais, aguardo-te na igreja.
- Embora não me tenham cabido as honrarias de padrinho, vou sem reclamar!
- Já está reclamando ... Sabe como é, eu convidei minha irmã e ficava um pouco desagradável excluir meu cunhado. Mas eu faço questão de sua presença.
- Eu estou de brincadeira. Ainda que me convidasse para o posto, eu recusaria, não sem antes agradecer a singeleza da lembrança, claro. Ando meio desprovido de recursos para um presente à altura do amigo.
- Não diga isso, um funcionário do Banco do Brasil!
Ambos sorriram e Mauro sorriu e conduziu o amigo até a porta.
II
Bela e concorrida foi a cerimônia realizada na Igreja de Nossa Senhora de Fátima, a mais rica do Município. Danilo, vestido com correção, parecia mais emocionado que a própria Viviane, graciosa em seu branco virginal e adolescente. Eis que em qualquer dos casos, as roupas estão mais a iludir do que a exibir qualquer conteúdo moral. Casamentos são assim e talvez por isso provoquem tanta comoção. Mauro compareceu e, à saída dos noivos, cumprimentou-os com a mescla ideal de efusão e respeito. Disse tolices simpáticas a ambos e não deixou de lado as mesuras, indo também felicitar as famílias.
Seguiram todos para a festa, igualmente bela, porém turva na lembrança de muitos, tão farta foi a quantidade de bebidas servidas. Exaustos, muitos voltaram para casa somente ao amanhecer. Igualmente, partiram os noivos para a lua-de-mel em Porto Seguro.
III
Dois meses passaram até que, durante a tarde de uma segunda-feira na empresa, Danilo foi informado de que havia uma chamada telefônica urgente.
- Danilo ...
- É o próprio. Com quem falo?
A voz feminina do outro lado fez-se truncada e a mulher desandou num choro, conseguindo somente balbuciar poucas palavras, as quais, contudo, foram suficientes para revelar a extensão da tragédia. Mauro havia falecido num acidente de carro no fim-de-semana e aquela era sua mãe, Dona Theresinha, em comovente esforço para avisar que o corpo estava sendo velado numa capela próxima ao centro e que o enterro sucederia na terça-feira, às nove da manhã. Danilo compareceu ao velório e esquivou-se do enterro. Afligia-lhe que a terra, recheada por vermes famintos, pudesse consumir um cadáver para eternidade. Fosse ainda cremação! – excogitou.
Mais duas semanas e novamente uma chamada telefônica urgente incomodou Danilo em seu trabalho. Imaginou alguma tragédia com os pais, quem sabe Viviane. Deixou de lado o que fazia e apressou o passo até o telefone. No caminho, sentiu certo prazer ao imaginar que talvez fosse mesmo a mulher, mas dando-lhe a notícia da desejada gravidez, o filho esperado como consumação daquele amor sem máculas. Era a própria, mas o que vinha a lhe dizer não cabia bem com nenhuma das hipóteses aventadas pela imaginação de Danilo.
- Alô!
- Danilo!
Ele sentiu-lhe a aflição na voz e rogou-lhe que tivesse calma.
- Ai, Danilo! Foi sua mãe ... Eu não acredito! Como ela foi estúpida comigo!
- Mas o que aconteceu, meu amor?
- Veio aqui à tarde uma senhora, Dona Theresinha, mãe daquele seu colega que faleceu há pouco tempo. Pois bem, minutos antes, sua mãe estava aqui comigo. Conversávamos animadamente sobre as futilidades de sempre. Contava-me da alegria que teria caso lhe déssemos um neto e que este haveria de ser, na beleza e no caráter, o espelho do pai ... Coisas de mãe que eu entendo e até gosto. De uma hora para outra, tocou a campainha e apareceu Dona Theresinha, que trouxe consigo uma enorme caixa, onde disse que estariam vários objetos, entre roupas e fotografias do filho. Ela queria dá-los a você. Eu fiquei interessada, sobretudo nas fotografias. Você sabe como eu adoro foto! Pois sua mãe, no gesto mais súbito e grosseiro, arrancou-me a caixa das mãos, puxou Dona Theresinha pelo braço e saiu deixando-me a falar sozinha. Ai, Danilo, eu nunca imaginei isso. Sua mãe ... Parecia tanto gostar de mim.
Nos minutos seguintes, Danilo conseguiu serenar o ânimo exaltado da esposa e disse que voltaria mais cedo para casa. Pediu licença ao chefe para resolver pendência familiar e saiu. Dali a poucos instantes, tocava a campainha da casa de seus pais. Sua mãe foi quem o recebeu. Danilo entrou, e viu a caixa de papelão ainda fechada num canto da sala. Contemplou sua mãe e, após segurá-la pelos ombros, deu-lhe o mais forte dos abraços, mal conseguindo conter as lágrimas.
- Obrigado, mamãe!
A mãe sorriu e também não escondeu a emoção na intensidade do abraço. Dentro da caixa, estavam os dois filmes pornográficos, que tanto transtorno causaram. Embora os títulos estivessem em inglês e fossem poucos sugestivos, as imagens da capa e contracapa diziam tudo, tamanha a quantidade de homens que entre si sorriam ao tempo em que confundiam seus corpos em coreografias lascivas, repletas de músculos rijos.