_Já descasquei as batatas, lavei a alface e a roupa já ta secando no varal. ... Já to indo passar a vassoura no quintal.
As frases entrecortavam-se com a respiração acelerada e difícil e as palavras saiam dos lábios róseos e arroxeados da menina de treze anos. Os olhos fechados, assim o eram não só pelo estado de torpor comatoso mas pelo volumoso edema das pálpebras. Na fronte o hematoma desfigurando um angelical rostinho de criança. Feições nordestinas, o suor cobrindo o corpo franzino, os pulsos atados nos lados do leito da enfermaria suja daquele pronto socorro. O malar fraturado, a boquinha torta e a repetição:
_Já descasquei as batatas. A panela já ta lavada.
Delirante, revelava as preocupações de seu dia a dia. Um discurso com ar de seriedade. Mais parecia, porém, uma prestação de contas para prevenção do castigo. Atropelada a caminho da padaria. Os patrões irritados com a demora para o lanche certamente estariam então, a lastimar a falta dos préstimos da pequena serviçal.
E a criança continuava: _ As batatas. As batatas.
O rostinho, as mãozinhas precocemente calejadas. O ar compenetrado. A responsabilidade de u’a menina de treze aninhos. O corpinho ainda impúbere. A vida rodeada de cereais, vinagres, alho e roupa suja. Os pezinhos marcados. Cicatrizes. Toda a importância de sua vida naquelas batatas. O veículo fora-lhe impiedoso. Toneladas de ferro contra os ossinhos frágeis da imigrante nordestina. A menina exilada da família para a semi-escravidão no Rio de Janeiro encontrara, apressada, no caminho, o para choques tresloucado.
Dissonante do corre-corre pelas salas do hospital, o jovem estagiário a observava,
parado. Calado. Há poucos meses da conquista de um diploma. A noiva bela e inteligente
aguardando-o . Classe média alta, teatro, cinemas confortáveis com espetáculos de
primeira classe. Restaurantes refinados, garçons solícitos. Elegância. Camisas de seda.
Conversas de alto nível. E um futuro. E agora ali estatelado defronte ao leito ornamentado
de lençóis lambuzados de sangue e de urina, desnorteado com a falta de um futuro. Aquele
corpinho sem futuro. Aquele rostinho sem chances. As palavras sem ecos. A guria machucada, a infância roubada. Os sonhos adulterados. Magoada de todas as formas. O rapaz entristecido com o abandono de uma criança sem os afagos de seus pais num momento como aquele. O mais notável exemplo de solidão.O fim de semana promissor não haveria de compensar sua desolação. Impossível conformar-se com a naturalidade com que aquela tragédia era comumente assistida. Era só uma empregadinha. Era só uma criança. Era só a destruição dos sonhos de u’a menina. Era só uma grande desigualdade. Era só uma adolescente sem esperanças. Era só um imenso aleijão social. O fim de semana prometia prazeres, mas não haveria compensação para a tristeza. Não haveria mais fins de semana que anulassem aquele desgosto. Nem depois de muitos dias. Nem após muitos anos. Nada que minorasse a culpa pela sua inércia. Muitos anos seriam consumidos e a lembrança daquela pobre criatura haveria de persegui-lo, como muitas outras, apenas símbolos de uma situação aberrante, negligentemente suportada como corriqueira e que não se resolve nunca. Herança da história de uma nação que nasceu e cresceu sob a égide da exploração humana.Uma paisagem distorcida que parece nunca haverá de corrigir-se. Um quadro mal pintado cuja tinta torpe teima em manchar de vergonha jovens ou velhos que insistem em desviar os olhares para que a impotência não lhes machuque. O tempo passou célere. E ele nada fez. Permanecem-lhe ecoando até hoje as tristes frases: _ Já descasquei as batatas. A alface já ... .
Maio de 2001
Daniel Carrano Albuquerque