Seus olhos pareciam não querer ver a claridade do dia frio. Seria um sonho? Sim, tinha certeza. Não poderia ser real. Dores agudas o acometeram. Gemia alto convencendo-se de que estava acordado. Mas onde se encontrava? As dores agora se misturavam com a temperatura gelada provocando adormecimento por todo o corpo, quase fazendo-o desfalecer. Resistiu o quanto pode sentindo algum tempo depois, uma sensação de melhora.
Acreditou estar a sua alma abandonando o corpo mas logo compreendeu que havia sofrido um terrível acidente e que necessitava de ajuda. Naquele exato momento sentiu que estava sobre um deserto de gelo, envolto em estilhaços de vidro e peças de ferro danificado. Não sabia como e porque seu avião sofrera pane, quase no final da rota.
Inacreditável estar vivo. Veio-lhe à mente que não estava sozinho. Percebeu num pequeno declive, a jovem moça desacordada. A seu lado, o gelo vermelho indicava que a queda fora violenta.
- Kelly !! – gritou desesperado. Não obteve resposta. A quietude absoluta ao redor, o intrigava.
Lembrou- se então que estava fazendo uma viagem em lua-de-mel, para o Alaska. Ganharam da empresa, esse passeio, como presente de casamento, em reconhecimento aos ótimos trabalhos prestados à firma.
Tentando desvencilhar-se do aparelho danificado, Ryan desamarrou o cinto, livrou-se dos equipamentos e arrastou-se para perto de Kelly, procurando despertá-la daquele sono absurdo, em vão. O vento frio sobre eles, mantinha o aviador lúcido, o suficiente para lembrar e relembrar tudo que planejara.
Com dificuldade analisou a situação e decidiu pedir socorro. Socorro de onde e como? Encontrar qualquer pessoa que fosse, então parecia-lhe uma idéia idiota e ao mesmo tempo assustadora. Começava desesperar-se quando olhava a amada naquele estado deprimente.
Mantendo o controle, com olhar penetrante, fulminou toda a paisagem branca com picos pontiagudos cobertos de gelo. Deu-se conta de que não vira nenhuma planta, nem mesmo pássaros, répteis e outros bichos que faziam ruídos. Estranho tudo aquilo.
"Seria a região dos corações de gelo? Nada aqui comprova a corrida do ouro tão falada, acontecia no Alaska. Nos meus vôos oníricos não aparecia o medo de espatifar no concreto gelado, o avião. E agora?"
À medida que o tempo passava, a neblina, antes rala e dispersa, tornava-se densa e pesada, ofuscando a sua visão dificultando e atrasando a busca de socorro.
Naquela lentidão do caminhar sem acessórios adequados refletiu sobre os anos em que crescera junto com a empresa, enamorou-se da aeromoça, e agora se encontrava com um enorme desafio: sair dali com sua esposa sã e salva. Poderiam ter escolhido outro roteiro para a viagem mas todos só falavam nessa região coberta de gelo e neve que durante a maior parte do ano, habitada pelos esquimós. Ouvira falar desse povo primitivo que vivia da captura de focas , renas e peixes. Nesse fervilhar de idéias concluiu-se que o pouso forçado foi justamente na região escolhida para a viagem.
" Ah, o gelo". Adorava a palavra gelo, não naquela circunstâncias.
Aproximou-se mais um pouco da geleira, perscrutou e de repente, uma alegria arrebatou-lhe o espírito. Blocos retangulares de gelo empilhados em forma de cúpula constituíam os igloos. Sem delonga, já exausto, pediu ajuda através de gestos àqueles pardo- amarelados que se misturavam com os biólogos, físicos, oceanógrafos, enfim, pesquisadores.
Imediatamente o socorro foi providenciado e voluntários se ofereciam para ajudar no resgate da aeromoça.
Quando lá chegaram, a garota pálida de medo, imóvel mas já consciente, gritava por socorro. Sentiu-se protegida e aliviada ao ver o rosto do marido:
- Por onde andou? Hum!... minha mente está confusa, anuviada....
- Fui buscar socorro. Perdi muito tempo tentando driblar o gelo e a neve.
- Poderia ter deixado um bilhete. Fiquei apavorada e com muito frio.
Ainda bem que estava com essa roupa de couro, apesar de não estar me sentindo bem.
- Não gaste energia falando sem necessidade. O importante é que
estamos aqui.
Nos dias subseqüentes, ficaram ali, recebendo o tratamento adequado e passeando na medida do possível.
Num dia desses, umas nativas entraram com uns utensílios estranhos ao casal. Aliás, ali tudo era estranho para eles.
Aproximaram-se de Kelly e disseram que na condição de esposa, precisava ser tatuada. Era um diferencial.
Ela olhou para o marido com muito medo, dizendo:
- Não quero fazer isso. Ficaremos aqui por pouco tempo. Não gosto de
tatuagem.
- É o costume dos esquimós; caso contrário, poderá ser atacada e
violentada por nativos.
- Às favas, os esquimós. Quero ir embora. Gostar daqui nem um
pouco, apesar da beleza do lugar.
Paulatinamente a negativa da moça foi cedendo e sobre a pele da face tatuada, a tinta vegetal infiltrava devagarinho, misturando-se com o sangue.
- Ficou muito bonita e todos saberão que é uma senhora casada,
Comentou Ryan
- E o que diferencia você dos solteiros?
- Este costume é usado somente com as mulheres. Os homens,
eternamente solteiros.
- Hum-hum!!! Foi por isso que escolheu passar lua de mel aqui? –
brincou Kelly enlaçando-o pelo pescoço.
Terminado todo o trabalho, foram convidados para o círculo do jantar. Era farto e variado: carne de lebre, cães, focas e caribus.
O vômito veio à tona quando eles foram apreciar o cardápio. Não estavam acostumados a comer carne crua, muito menos mergulhada em salmoura vermelha. Esforçaram para realizar esta façanha mas os enlatados foram solicitados.
O casal se preparava para regressar. Dentro de poucos dias, o conserto do avião estaria concluído. Planejaram naquele dia, um roteiro de volta, passando por outros lugares famosos. Esquiar na neve fariam com mais freqüência para aproveitar bastante essa oportunidade única.
Chegaram tarde e muito cansados. Dormiram cedo.
Altas horas, Kelly acordou assustada passando a mão procurando o esposo e deparou com algo estranho, entre eles. De cabelos grandes completamente sem roupa, uma nativa se aninhou entre os braços de Ryan.
Kelli, descontrolada e aos gritos, desarmou toda a vivenda enfeitada e alcochoada com pele de foca. A gritaria fora tamanha que várias pessoas correram para aquele local.
Sorrateiramente entrou um esquimó cobrando de Ryan os seus direitos; no seu linguajar, reclamava que emprestou sua esposa a ele e não houve a recíproca.
Ficou esperando até aquela hora e a aeromoça não apareceu. Já estava com seu grupo preparado para a luta.
Quando Kelly olhou a figura de estatura baixa, nariz mesorrino, olhos com prega palpebral, quase engolindo-a de desejos, olhou para o marido, arrastou-o e gritou desvairadamente: "Pernas para que te quero".
Juraci de Oliveira Chaves
Pirapora MG
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