Usina de Letras
Usina de Letras
85 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62352 )

Cartas ( 21334)

Contos (13268)

Cordel (10451)

Cronicas (22544)

Discursos (3239)

Ensaios - (10412)

Erótico (13576)

Frases (50729)

Humor (20058)

Infantil (5476)

Infanto Juvenil (4795)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140851)

Redação (3316)

Roteiro de Filme ou Novela (1064)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1961)

Textos Religiosos/Sermões (6224)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->LUÍS -- 14/07/2003 - 21:37 (DANIEL CARRANO ALBUQUERQUE) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Começando na Rua do Riachuelo, no Bairro de Fátima, a Rua Monte Alegre vai serpenteando como nenhuma outra para chegar à parte alta de Santa Tereza, morrendo antes, porém, no encontro com a Aarão Reis, há poucos metros de onde esta última faz esquina com a Almirante Alexandrino que a supera em tamanho e em importância, uma vez que mais rica em comércio, tráfego, instituições e residências de luxo. O trecho percorrido pelo bonde, entretanto, é muito curto, reto, aquele lhe adentrando abruptamente e com violência por uma curva na esquina com a antiga Rua Mauá (hoje Pascoal Carlos Magno) e deixando-a também com a mesma truculência no cruzamento com a Áurea, o sino tocando para sugerir cautela aos motoristas que sobem ou descem aquele morro singular do Rio de Janeiro. É formada por casas e prédios de apartamentos habitados por famílias de classe média, diferenciando-se deles, no entanto, lá pelo meio da ladeira, uma pequena ruína, que melhor talvez deva ser definida como um barraco, onde residia uma mulher pobre com seus cinco filhos, quatro dos quais meninas. Todos trabalhavam.

Dona Elza se ocupava de serviços domésticos pela vizinhança e era respeitada apesar de, em momentos de crise e de depressão, alcoolizar-se e ficar à porta de casa provocando transeuntes que, não obstante, penalizados, a ignoravam. O tempo passou e a família foi aumentando, começando pelo filho mais velho que levou a mulher, grávida, para o seu convívio. Dois filhos vieram dessa primeira união, a moça sendo expulsa por ele, mas as crianças ficando. A partir dali, novas mulheres e novas crianças, as irmãs acompanhando-o naquele tipo de experiência, cada uma delas contribuindo com mais uma boca para ser alimentada e agasalhada naquele casebre. O varão parou na quinta esposa, com quem vive ainda, já há cerca de vinte e oito anos, e que contribuiu para exatamente sete rebentos.

Ninguém entendia como podia caber tanta gente naquela casinha, nem como a pobre Dona Elza conseguia administrá-la com tanto rebuliço, mas o fato é que ela, talvez achando pouco – dizíamos isso como pilhéria – levou para o seio da família mais um menino. Tinha uns sete anos de idade. Ninguém sabe onde ela o encontrara. Provavelmente abandonado e a solidariedade inigualável peculiar às comunidades mais humildes, que jamais deixa um ser humano ao relento, tratou de, na pessoa daquela típica representante, dar a ele o lar. Aquele ponto da rua era, assim, uma minúscula amostra das favelas, com seu retrato fiel, seu cotidiano, sua linguagem, seus dramas e sua problemática.

Luís, era esse o nome do garoto e em sua homenagem o mantenho dispensando pseudônimo, era de cor mais escura que os outros membros da família. Acompanhava-se sempre do Sérgio, um dos netos da matriarca e que deveria ter a mesma idade. Nunca o vi vestindo camisa ou calçados. Uma das lembranças que tenho é daquele pequenino troncudo, musculoso, mais parecido com a miniatura de um adulto do que uma criança, brincando na rua com o irmão adotivo, subindo na árvore e fazendo cambalhotas. Ria muito. Era livre tanto de roupas quanto de modos. Um pequeno passarinho preto visto saltitando no solo ou nos galhos das árvores. Mas, muito mais do que brincar, Luís também trabalhava. Não me recordo de tê-lo visto indo à escola. A outra lembrança, ainda mais viva e que parece me perseguir nos momentos de reflexões é a daquele pequeno Hércules subindo a ladeira carregando bolsas de compras. Uma senhora na frente, séria, empertigada, a carteira espremida junto ao peito e logo atrás Luís, equilibrando-se entre as duas sacolas, as perninhas arqueando-se com o peso, lépidas, num esforço para acompanhar os passos largos da madame. E o sorriso constante. Feliz por ter conseguido aqueles trocados e ansioso para descer novamente e oferecer seu serviço a outra freguesa. Via-o subindo e descendo tantas vezes no mesmo dia que admirava sua resistência frente ao que todos consideravam um verdadeiro calvário para uma única escalada. E as dificuldades naquele tipo de trabalho não se limitavam apenas ao esforço físico de galgar o morro com pesos pendurados. Haveria também, presumo, percalços na conquista da clientela, quando a concorrência levaria a embates físicos e a performances de malandragem. Todo o cuidado para que os maiores não lhe tomassem o dinheirinho suado no final do dia.

Aqueles são os dois retratos que tenho da infância deste personagem real. Impregnaram-se na minha mente pela sua constância. Os anos se passando, ele crescendo e, sem camisa, sem calçados e de short, as mãos ocupadas com as bolsas, as pernas envergadas, o sorriso. Mudei-me e retornando ao bairro muito tempo depois, encontrei-o no estacionamento do supermercado onde fazia o ponto, na Rua do Riachuelo, bem em frente à subida da Monte Alegre. Eu não o teria reconhecido se ele não tivesse me chamado pelo nome. Era agora um negro alto e forte. Progredira porque já vestia uma camiseta sem mangas e calçava sandálias de dedo. Tinha um carrinho de madeira que usava para transportar as sacolas.
_ Seu Daniel! Seu Daniel! Não está se lembrando de mim?
Falava com muito entusiasmo, mostrando dar muita importância àquele reencontro e denotando querer exibir sua transformação e, de certo modo revelar a sua simpatia por aquele vizinho que só conhecia de vista. A pressa me impediu de lhe retribuir a atenção e eu já perdera alguns minutos tentando fazer o reconhecimento. Tive depois remorsos. Não perderia nada lhe dispensando um pouco mais de tempo para conversar e lhe dizer algo que, quem sabe, poderia lhe ser de bom proveito. Recebi, pouco tempo depois, notícias ruins, através de uma de suas tias adotivas.

Luís teria recebido um convite por parte das “más companhias”.
_Vamos roubar uns gringos?.
Que outro tipo de convite, imaginemos, seria feito àquele menino insignificante, analfabeto e acostumado à força física? Alguém o chamaria para uma excursão, festas familiares, atividades culturais ou esportivas? Seria difícil imaginá-lo tendo acesso a algum clube de recreações onde pudesse usufruir de boas amizades e se desenvolver sócio-culturalmente. Quem se incomodaria com aquele pobre “burro de carga” e o chamaria para uma agradável e saudável prosa? Que tipo de pudor poderíamos esperar de quem, não fosse o espírito humanitário de uma velha e pobre mulher, estaria ainda em situação pior? Não tenho como saber se relutou no atendimento àquela proposta. Não seria capaz de especular com perfeição sobre os balanceamentos que quiçá teriam acontecido em sua consciência. Talvez não lhe tivesse chegado ainda à superfície do ego, a cobrança de tudo o que a sociedade, em seus séculos de existência lhe tivera subtraído em legado. Provavelmente não tinha a menor noção da responsabilidade que os “gringos”, historicamente, carregam nas costas na gênese daquela miséria que ele conhecia tão bem. Que seria um relógio surrupiado frente a milhões de dólares em juros impostos por economias protecionistas e riquezas continuamente aspiradas desta terra que, em decorrência, submete seus filhos a carências tão extremas? Não posso avaliar.

Mas o fato é que Luís foi. Pode ser que tenha sido pelo imaginado produto do roubo, mas eu não descartaria também que se tivesse incluído no peso de sua decisão, a conveniência de manter-se integrado à cultura do grupo de que fazia parte. Um grupo que talvez ele não tivesse escolhido por livre opção mas que era o único que se oferecera a ele. E o que afinal acontecera, segundo minha informante, na inauguração daquela experiência? Simples. Abordado o turista incauto, uma patrulhinha surpreendeu-os no momento em que os pertences lhes eram passados. Os amigos experientes deram no pé e Luís parou, apatetado, por falta de conhecimento das instruções sobre aquele momento da operação, as quais lhe foram negligenciadas. Ele agora cumpria pena no Presídio da
Frei Caneca. Trabalhava na cozinha. Não sei que tipo de atenuantes o Juiz deve ter considerado. Não sei qual a qualidade do empenho de seu defensor. Mas estou certo de que não deve ter entrado em questão todo o histórico que fiz acima. Eu também não absolveria Luís. Mas certamente contemporizaria na pena porque tenho absoluta certeza de que aquele menino não machucaria ninguém. Estou certo de que jamais atearia fogo em uma pessoa que dormisse num banco de praça. Estou absolutamente seguro de que não se juntaria com praticantes de artes marciais para agredir quem nunca lhe tivesse feito mal. Não me enganaria nunca quanto à sua incapacidade de jogar pela janela do alto de um edifício uma adolescente que se recusasse a ser estuprada. É mais do que óbvio para mim que ele não cometeria um milésimo qualquer dos crimes a que se dão o direito de cometer muitos dos bem abastados que são ordinariamente beneficiados por complacências judiciais.

Já há pelo menos dez anos que não tenho mais notícias. Não sei por onde anda se é que ainda pisa o chão desta terra. Claro que deve ter enriquecido seu currículo que timidamente iniciara-se com mau resultado. Há apenas uma certeza que é a de que os fatos acima narrados não me contemplam com um mínimo de razão para que eu sinta orgulho da sociedade a qual pertenço. Dessa grande e confusa organização que mutila, deturpa e deforma pessoas que saem íntegras dos ventres à busca de luz, com um potencial completo para edificar e gozar de tudo que a Terra dispõe, plena em generosidade e ampla em espaço a elas destinado. Seres geneticamente perfeitos com mente e corpo codificados ao íntegro exercício do trabalho, do amor e da alegria mas que se vêem suprimidos em suas expectativas num mundo em que as gentes se perdem, confusas, no emaranhado de suas mal definidas ambições, propondo-se a disputas equivocadas e à prática de mútuas agressões, a Terra assistindo-as perplexa e à curiosa destruição de sua harmoniosa oferta.

Agosto de 2000
Daniel Carrano Albuquerque
E-mail: notdam@bol.com.br

Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui