Era um dia incomum, pois que silencioso e a venda estava vazia. Havia mais de uma hora que não aparecia ninguém. Desse tipo de trégua que sempre acontece após dias de muito movimento e antecede outros ruidosos. Vez por outra um carro interferia naquela calma através da trepidação sobre os paralelepípedos daquela rua antiquada de Santa Tereza. Aquela paz injustificada para dias de semana, com sabor de feriado, levou ao comerciante uns instantes raros, para que, imerso naquela atmosfera hipnótica, se distraísse sobre um velho jornal esquecido no balcão, a ler os relatos corriqueiros sobre o cotidiano numa página de variedades. De repente, não se sabe o que o despertara, levantou a cabeça e deparou-se com ela parada bem à sua frente, a uma distância que lhe proporcionava vê-la de corpo inteiro, desde os pezinhos delicados com unhas perfeitas repousados sobre as sandálias de salto baixo, até os primeiros fios de cabelos castanhos que muito brilhantes pendiam de cada lado do rostinho singelo a enviar-lhe um sorriso comandado pelos olhos enigmáticos. O vestidinho de feitio muito simples deixava à mostra, por seu decote e outros cortes igualmente generosos, a silhueta fina e leve de uma jovem de uns vinte e dois anos. Parecia estar ali parada há muito tempo, a fitá-lo e a divertir-se com a sua distração. Caminhou então em direção a ele e com movimentos tão sutis quanto sua aparência, fincou os cotovelos sobre a bancada e com uma voz intencionalmente meiga e cheia de sensualidade, perguntou-lhe, olhando bem no meio de suas pupilas, a respeito de uma certa marca de detergente. Gaguejando um pouco, o homem apontou para a prateleira da parede junto à porta da extremidade esquerda, a qual compunha com as outras três, bem altas e com grossos alisares verdes, a fachada daquela construção do século passado, como tantas outras que personalizam aquele bairro tradicional do Rio de Janeiro. Abençoada a idéia de ter colocado lá aquela mercadoria, pensou deliciando-se com a chance que tinha agora de avaliar a deliciosa visão pela parte de trás. Sob a fina cinturinha, os impecáveis glúteos pareciam ter sido desenhados a compasso, tão perfeita e exata a sua convexidade. Ao erguer-se sobre as pontas dos pés para atingir o produto, a cabeça inclinando para cima e fazendo descer os cabelos a realçar com suas ondulações douradas as finas espáduas, o vestidinho, mais curto ainda se fazendo, deixou que se entrevissem as adiposas coxas, num singelo contraste entre formas voluptuosas e um frágil e pueril corpo de mulher.
Era o impacto daquela leveza o que impressionara Alfredo. Aquele homem de pesados quarenta anos, alto, corpulento e com uma barriga proeminente, a envolver-se numa lida diária e sem trégua com sacos de batatas e de cereais, caixas de frutas, conservas e engradados de bebidas. Uma clientela de homenzarrões sedentos por bebidas quentes e amargas ou de matronas donas de casa com suas bolsas e sacolas superlotadas, as carteiras gordas sob as axilas, de onde extravasavam notas e moedas a caírem ruidosas ao chão perseguidas com movimentos rápidos e nervosos dos fregueses rastejantes, eternamente angustiados e atentos. Fiscais, ora os da Fazenda, ora os sanitários, sempre com seus pesados ares de rapina a pisarem com estrondo no solo de sua casa. Tudo era pesado na vida do vendeiro. Em casa, os quatro filhos de seis a dezesseis anos, somando toneladas de problemas mal absorvidos pela esposa, uma portuguesa obesa de negros cabelos curtos cujos ombros não resistiam sozinhos à árdua labuta do lar e que esgotada, não tinha a pobre a menor chance de aprimorar os seus tratos. Tinha diante de si, agora, aquela figurinha leve como uma pena, lenta como se flutuasse e eis que flutuava sim, dentro de sua imaginação a converter em relaxados seus nervos e músculos exaustos de tanta grosseria, por meio daquele meigo, terno, suave e convidativo sorriso. Pode ser que calma e quietude inesperadas daquela tarde tenham se aliado à presença da caprichada freguesinha, favorecendo aquele instante de magia. Alfredo já sofrera outras provocações de mulheres. E quantas. Não era um homem escrupuloso com questões daquela natureza e a quase todas, respondera afirmativamente. Fazia amor ali mesmo, depois que fechava as portas, sempre de mau jeito, um pouco apressado, improvisando sacos de embalagem como leito e nunca se desnudando de todo. Era um ritual meio animalesco, sem prévia sensualidade e que ele mesmo reconhecia como pouco gratificante, as raparigas aceitando aquilo talvez pela expectativa de um pequeno favorecimento de ordem econômica. Mas aquela menina emprestava agora à sua rotina de pequeno garanhão um adicional de encantamento que iria despertar no meio de sua sexualidade emperrada os vulcões extintos de êxtase e amor. E, por isso, a partir daquele instante, seus pensamentos viram-se perpetuamente invadidos por aquela imagem de pluma à brisa que tinha vindo incomodá-lo. Cuidava de rememorar com a máxima competência todos os pequenos detalhes daqueles poucos momentos, como os movimentos suaves dos dedinhos finos explorando a bolsa na procura do dinheiro, expondo as unhas bem cuidadas a rosa-pálido, a fisionomia serena com um pequeno toque de compenetração ao fazer a contagem das notas e o andar derradeiro em direção à saída, seu vulto simetricamente posicionado entre os portais, uma luz do sol que se despedia deixando um efeito prateado a emoldurar-lhe a sinuosa silhueta. Ela voltaria. Claro, voltaria. Deve ser nova por aqui. Haveria de tornar-se freguesa. E que freguesa.
Muito pouco tempo se passara até que a perspectiva otimista se concretizou. Numa manhã ensolarada a moça voltou e dessa vez trajava uma bermuda curta e uma blusa do tipo “tomara-que-caia”. Os ombros dourados, as pernas mostrando pelinhos reluzentes, o umbigo se revelando. Os finos cabelos castanhos emoldurando o sempre risonho e claro rostinho. Dessa vez Alfredo examinava ainda com mais cuidado e deslumbramento o desenho dos lábios e a perfeição dos nasais. Os malares discretos, o queixo macio e miúdo e as covinhas despontando nos cantos da boca sensual à acentuação do sorriso. Sem dúvida ela já notara a fascinação daquele senhor que transpirava desejos. E haveria de alimenta-la, sem receio ou hesitação. Era só deixar ainda mais soltos os seus modos generosos de oferta de sensualidade. Hoje fez uma compra maior. Uma alegria para Alfredo que tinha então a oportunidade de oferecer com voz rouca e cheia de ternura e aproveitar para inserir um significativo galanteio:
_A graciosa mocinha deseja que eu entregue em casa?
_Se puder me fazer esse favorzinho, aceito com o maior prazer. _ Respondeu aprofundando a penetração do olhar e aumentando, na entonação, a palavra prazer.
Alfredo arrepiou-se dos pés à cabeça. Apressou-se a tomar nota do endereço, a hora para a entrega e o nome daquela coisinha maravilhosa. Ah! O nome! Qual seria o nomezinho dela? Um segundo de espera que parecia muito maior diante da ansiedade de alguém a quem o desejo parecia que levava à loucura e a resposta veio vagarosa, suave como o sopro de uma flauta doce num movimento lento de uma obra de Schubert:
_Sandra Rosa.
Ah, quanta sonoridade a agracia-lo os ouvidos! Mais uma onda de arrepio e outra a seguir quando lhe apertou a mãozinha, aquela coisa pequenina e macia quase desaparecendo como que engolida pela sua. E o resto do dia até a hora combinada, o homem quase desfaleceu de tanta ansiedade.
Às 7 da noite, finalmente, partiu com a Kombi em direção a uma pequena e estreita rua que descia desde o Largo das Neves para o Catumbi, um pouco distante do centro do bairro onde ficavam a venda e a sua residência. A casinha, humilde e pequena, era construída sobre um barranco contido por uma barreira de concreto e a ela se chegava através de uma pequena escada em “L”. Lá em cima, uma varandinha ornamentada com plantas diversas e algumas roseiras que emprestavam umidade ao ambiente. Sandra estava em companhia de uma vizinha, morena e de mesma idade e que lançando um olhar compreensivo à amiga, despediu-se. Descarregada a mercadoria, o ajudante pulou escada abaixo deixando Alfredo para trás, esse gratificado com o convite para sentar-se numa das poltronas. Os cômodos exíguos e pouco numerosos revelaram prontamente que a moça residia sozinha, sem companheiro e sem filhos. Iniciaram uma conversa amena, banalidades a disfarçarem a intenção óbvia e o caminho para a intimidade sendo aos poucos trilhado com algumas brincadeiras e pilhérias. Os risos foram abrindo espaço, os galanteios precedendo então a declaração que bem recebida abria o sinal para o impetuoso e ansiosamente aguardado momento em que aquele corpinho se deixaria cair no meio daquela imensa peitaria, mãos agitando-se frenéticas, corpos se conhecendo, bocas se encontrando, os estalidos ocupando todo o espaço sonoro daquela sala, os cabelos participando despudoradamente daquela batalha de êxtases, gemidos e loucura. O sofá era agora o palco onde um corpinho delgado, em ágeis e coreográficas acrobacias, levitava por sobre o colo do varão, a cópula enfim se completando em meio aos lençóis irradiando brancura e deslumbramento. Aquela era uma experiência inusitada para Alfredo, pois que lhe proporcionara satisfação total. Sendo assim queria repeti-la sempre e seria quase diária não fossem as objeções de Sandra Rosa, com alegações de ordem prática.
Alfredo mudou um pouco desde aqueles dias, passando a cultivar uma preocupação com a melhora de sua aparência. Ficou também mais relaxado e mais bem humorado, pois afinal tinha, vez por outra, o seu gratificante fim de expediente. Mal fechava, partia correndo para a casa da amante, subia ofegante as escadas, a porta se abrindo timidamente e eis que surgia por trás dela a figurinha enfiada num “baby-doll” cor de abóbora, os cabelos ainda por secar, o cheirinho de sabonete e um discreto mas poderoso perfume a anunciar o paraíso que adviria. Alfredo assentava-se no sofá e sem perda de tempo trazia Sandra para o seu colo, a qual enlaçava-lhe o pescoço, beijava-o e dava início a uma exploração de seu rosto cansado com as pontas dos dedinhos suaves, os pés diminutos balançando sob a vista maravilhada do “quarentão”. Sedosa “lingerie”, igualmente sedosa e saborosa pele, ambas a deliciarem terminações táteis em delírio. Abençoados momentos de gozo, prazer e magia e um coração quase a arrancar-se do peito, tamanha carreira. Com insuportável impaciência, ele a levava com ternura ao leito onde haveria de derramar toda a euforia, anos contida, germinada em seus sonhos, agora adubada, incontrolável êxtase. Retornava ao lar com um cansaço diferente, mas Das Dores, a esposa, face às atribulações caseiras e ao habitual desleixo nas relações com o marido, mal se dava conta de sua transformação.
As coisas corriam assim aparentemente bem, quando numa das visitas a Sandra, o amante deu com a cara na porta. Era já tarde. O que teria acontecido? Tocou a campainha diversas vezes e não houve resposta. Teria saído àquela hora da noite? Estaria saindo com mais alguém? Um ciúme, pela primeira vez arranhou-lhe o peito. Voltou para casa triste e pensativo. Não pegou no sono, pois a expectativa do dia seguinte era enorme e haveria de ter explicações. Bem cedo, para seu alívio, já comparecia à venda a menina dizendo que havia dormido na casa de uma amiga que, doente, precisara de sua companhia. Embora sem noção das razões que lhe levaram a sentir ciúmes por uma rapariga que, afinal, não tinha com ele nenhum tipo de compromisso, Alfredo sentiu-se mais leve com a explanação da moça, mas ficou uma feridinha residual, pronta para abrir novamente no caso de repetição da noite anterior. E não tardou. Algumas noites se passaram e lá estava novamente o homem nervoso a bater à porta de quem não respondia. O fato vinha acontecendo novamente com freqüência e outras explicações de Sandra Rosa já não conseguiam satisfazer a curiosidade ciumenta de Alfredo. Tinha que engoli-las, pois convenhamos, não tinha com ela nenhum laço mais apertado a não ser o de um amante casado. Mas isso não minorava sua inquietação. Imaginava-a nos braços de um outro, repetindo com aquele todo o doce ritual que ele julgava ser só seu. Tudo aquilo era parte de si mesmo, tinha que ser exclusivo aos seus momentos, era íntimo demais para ser compartilhado. Aquele olhar que desde o início o inebriara de magia não podia ter outra direção. Tal cobrança involuntária de exclusividade o fazia sofrer, inquietando-o e o que era pior, aumentava ainda mais o encantamento e o desejo. Sandra Rosa agora era senhora absoluta dos pensamentos de Alfredo, de seus quereres, de sua atenção e reinava totalitária em seus delírios, invadindo-lhe os sonhos, enegrecendo seus pesadelos. O sono era ocupado por imagens coloridas, onde a erótica criaturinha coberta de jóias reluzentes dançava movimentando vestidos multicores e véus em azul e vermelho, num fundo misto de amarelo, vermelho e azul bem forte, com movimentos deliciosos de danças árabes, suspensa no ar, rindo e convidando-o. De repente, ela aparecia vestida em um longo negro talhado nas coxas pendendo seu corpo nos braços de alguém em um ritmo de tango. Em outra visão desesperadora, nadava ela nua num rio de espermas, acompanhada pelos risos de homens despudorados. Não podia conviver mais com aqueles pesadelos. A ela pertencia seu apetite. Dela dependia sua vontade de viver. Sentia-se mal naquele jeito adolescente de ser e sabia que precisava, sem demora, libertar-se de angustiante clausura. Precisava saber dos hábitos da mulher.
A oportunidade surgiu através de Osório, um amigo de mais de vinte anos, que aparecera no armazém logo cedo pela manhã. Caíra como do céu, pois residia há muitos anos naqueles lados do acesso ao Catumbi. Era seu amigo do peito e a ele podia confidenciar suas aflições e não se constrangeria, diante de situação tão desesperadora, em lhe solicitar um papel de olheiro. E assim o fez, mas não precisou esperar muito. Osório, um aposentado com seus modos extrovertidos e dono de grande simpatia, acabara por conhecer todo o mundo naquela parte do bairro e Sandra Rosa não estava fora de sua circunscrição.
_Aquela? Virgem Maria! Já aprontou horrores. Era mulher de um vagabundo que costumava lhe bater. Também, pudera! Enfeitava-lhe a cabeça como ninguém. Um dia ele foi tomar satisfação com um fulano do Morro dos Prazeres e nunca mais foi visto. Costumava beber e não atinava para o que fazia. Devem ter jantado ele direitinho. Pra ela foi bom, pois se livrou da peste que não lhe ajudava em nada. Ela apenas continuou a se virar com os seus biscates, não tendo mais que dividir seus ganhos com o pilantra e passou a distribuir sua carne como açougue em promoção. Qualquer um que chega lá tem.
O pobre homem, empedrado pela desilusão, ficou ali parado, fitando o amigo como um bocó, sem nada para dizer e sem um movimento sequer. Osório, compreensivo, passou-lhe a mão pelo ombro, limitando-se a dizer:
_Isso passa, amigão.
Impotente para continuar trabalhando, abatido como se todo o peso acumulado que lhe dera trégua naqueles últimos dias viessem agora a lhe desabar de uma só vez, deixou a venda aos cuidados do empregado e saiu caminhando pelos trilhos do bonde. Chegou a pé até a estação do Curvelo, desceu a rua e parou numa pracinha deserta que serve de mirante, pondo-se a olhar fixo em direção à Baia de Guanabara, observando as embarcações longínquas, lentas e, mais próximos, os veículos velozes cortando as avenidas da orla. Nos prédios janelas revelando cotidianos, quem sabe, muitos iguais ao dele. Desceu então a Hermenegildo de Barros e na Glória percorreu ruas e praças, como um andarilho desocupado dissonante de toda aquela gente que se movimentava interminavelmente no ritmo de seus afazeres.
Voltou para casa mais tarde que nos outros dias, desprezou a janta, banhou-se demoradamente, quase inerte embaixo do chuveiro e deitou-se ao lado de Das Dores. Os olhos no teto, a esposa indiferente virada para o outro lado. Depois de umas duas horas de insônia, acordou a mulher e tentou conversar sobre o passado, tentando reviver emoções apagadas. Das Dores, fechadíssima, totalmente obturada, impacientou-se:
_Ta ficando doido, homem? Vê se dorme, pomba!
E Alfredo então, num suspiro profundo, decidiu por acordar... para poder dormir em paz.