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Contos-->Uma menina na janela -- 25/01/2000 - 10:27 (Maria Abília de Andrade Pacheco) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Uma menina na janela

A questão: "Um picolé custando mais do que um frango é uma heresia!" "Pois então devore uma coxa de frango sob esse calor!" ‘Não, recuso o frango e o sorvete, e me regalo com um bom copo da água que jorra em bicas lá em casa". À fome, o frango; à sede, a água; ao prazer, um bom picolé sob ultravioleta raios de sol para refrescar a alma. A solução do problema viaja no minuto certo. Passa o bonde, o expectante titubeia, e a poeira se levanta, ardendo os olhos. O Acaso só existe aos cegos e ineptos na arte do encaixe certo. O seu milagre, moço, para mim é ilusão de ótica; o meu milagre, seu herege, você o estala entre as unhas de seus ouvidos surdos.
Façamos psiu às rusgas e acendamos os faróis dos fatos. Sosseguemos, que algum herói inesperado e certo salvará a todos, indistintamente, da sua própria catástrofe. Trombetas soarão e um imenso céu se abrirá estrepitosamente, quando uma legião de anjos e arcanjos surgirá numa tróica, entre flocos de nuvens, cantando: Glória! Você ri, você me sabe. Pois eu o retalio, beliscando-o desta vez bem miudinho, invocando o sagrado para anunciar com reverência a próxima heresia.
Cato na memória uma casa esburacada e mal caiada, de janela sem dentes a sorrir para a rua um riso banguela de criança feia. Mirando esse quadro desconforme, juro que sou capaz de descobrir-lhe algum tesouro, igualável apenas-talvez-somente a um quadro bíblico da Fúria contida nos gestos presos e nas vestes baloiçantes a um vento que não sopra.
Vou contar-lhe, meu amigo, de uma menina que ressuma candura do peitoril de uma janela. Traz a menina uma medalhinha a reverberar o sol, obrigando os olhares ao desvio do ofuscamento rumo ao abrigo de um sorriso calmo, que também brilha, sem cegar. O curto caminho entre a medalhinha e o sorriso é essa mínima distância que eu e você exercitamos, diariamente, no talvez e no quase. E a humilde serva postada diante da "Menina na Janela" cabe dentro da perspectiva de outro olhar circunstante, atento à simbiose da "Mulher diante de uma menina na janela". Cabe nesta cena, penso, toda a rua, o universo inteiro.
O Estático vive quando a janela abre alguma menina para a rua. O calor se amorna, os barulhos se calam. O dia passa numa volubilidade do intenso para o insípido, para o extático, para o inexplicável. O sorriso, esse um debulhar de dentinhos brancos, miúdos, de olhos puxadinhos a sorrirem também. A menina está na janela há sóis e luas. À noite a janela fecha os olhos e a menina se recolhe. Por isso, o sossego de saber que todas as noites cantam ecos de músicas antigas musas. Guardemos um pouco da alegria do sol para o aconchego nos braços macios da lua!
Tudo o que digo traz o vírus do que sinto, eu estátua dourada, fincada no miolo de um lugar onde a terra gira em torno do sol e os morros giram em torno dela. A meu pensar, o destino sem aviso às vezes veste roupas seculares. Não menos certo, no entanto, é eu dizer, no conforto de meu isolamento, que todo espetáculo tem seus dias contados, e chegará o exato momento em que alguém soprará a brasa dormida. Bom-dia se responde com bom-dia, ora pois! E eu, uma que outra vez, recusarei de pulso firme sorrisos em lugar de palavras, já que tenho muito o que matutar, e um sorriso é mestre em dizer sem dizer.
As mínimas exigências civilizatórias acabarão por desnudar personagens de seus trajes sacros e os cobrirá com um mesmo uniforme. E todo o mundo responderá unissonamente um ao outro, palavra por palavra. "Bom dia", digo eu. Responde você: "bom-dia". Fácil, sem tortura. Talvez – acho que não – eu aviste, nesta exata linha que agora as letras me bordam, uma pinta de presunção em todos os sorrisos até então oferecidos gratuitamente às nossas esperanças. Bem que poderíamos devolver-lhes o mistério e sorrir-lhes também. Mas eu, o que consigo, é só um esboço de sorriso amarelo. Você, não sei se detém a gargalhada sonora.
Vou acabar deixando de andar na rua só para não ter a obrigação de sorrir de fachada, a coisa mais insossa que há. Fique a menina na janela a debulhar a canjiquinha de dentes alvíssimos e sorrir com os olhos, coisa que jamais conseguirei! Um dia desses me esqueço da combinação tácita travada com meu íntimo e avanço para a rua, despojada. A uns dois metros de distância, diante da boca de batom que sorri ao vento, quase enxergando o som de um sorriso, vou disparar um rosário de indagações: "Os cabelos da menina da janela estarão sempre presos?" "Em coque, em rabo de cavalo, ou em trança?" "Sempre adorei tranças, entrelaços que mostram a necessidade humana de mostrar acuro nos mais simples lavores, mas importa isso agora?" "Com que então a pessoa tanto se esmera em deixar suas pegadas na areia, que até uma trança acha de ter sua graça?" "A da menina seria daquelas bem fornidas, que chegam à cintura?"
Diante da janela, então, de onde a menina sorri, nada direi, nem sorrirei, pois meu pensamento a esse ponto o vento já terá carregado para outros milagres. Frente a frente com o sorriso, quando o avistar sentirei um quasezinho de nojo. Nojo de mim, ingênua, tola, que vê num simples espasmo de canto de boca algum augúrio. "Que outro papel o de quem sorri, senão o desnudamento de um fragmento da alma?" "Ou será, antes, um disfarce, uma veste a mais?" O fortuito, o raio de sol, a chuva, o odor, o tato, o impulso, num peteleco de alguma mão invisível, certamente me socorrerão do cansaço. Resolverei de contínuo não mais divagar, sepultando o explicar gostos e sabores. Se é belo, vivam os sentidos! E por mais instigante seja um sorriso, nada há nele que não um sorriso, mesmo lindo, mesmo pleno. Ele se basta. "Mas por que a menina que sorri da janela não freqüenta a escola, como todas as meninas de sua idade?" "Por que não brinca?" "Por que nunca fala?" "Por que por quê?"
Tanta pergunta fosse medo de uma resposta. Lindo é o sorriso, grande é a generosidade de um coração pálido a abrir o dia com um enigma. Néctar. Muitos pares de luas e sóis passarão, trezenas de estrelas e ventos se despedirão do agora. E cada dia aumentará a romaria de fiéis contritos às janelas que sorriem.
E quando a menina se despedir deste mundo e ganhar o céu que sempre viveu em terra, não pedirá nada senão uma janelinha de nuvem para entreter os passarinhos. Que a menina que espia o mundo da janela e se compraz em sorrir aos passantes, ensaiando enigmas e mistérios, essa menina não passa de ser eu querendo sê-la.
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