São abertas as portas, as luzes fortes lá fora, diminuindo as pupilas dos que dentro estão. Alguns descem, alguns sobem, alguns não voltam, alguns nunca o deixam, alguns nunca chegam, em lugar nenhum. Alguns não dizem nada, alguns dizem bom dia e dão um sorriso barato que não vale nada, alguns se jogam pelos cantos, procurando apoio (apenas das paredes), outros ocupam o centro, outros não sabem onde ficar. E passam as horas, as pessoas, os "bom dias", os números, os desces e os sobes. Um quadrado, um cubículo, uma caixinha, um ponto numa reta, um elevador, em algum lugar, um nada. Quatro lados a serem preenchidos (de quê?) para transportar (para onde?). E eu espero que esteja se perguntando também "e para quê?".
Em um outro lado, que mal existe, por mal ser visto, um homem resguardado, debruçado nele mesmo, e entretido com botões e mais botões, infinitos, o ascensorista, em seu uniforme, num canto de um canto. O que recebe os "bom dias", que não valem nada. O que não recebe nada. E não é nada. Tão vivo quanto uma das paredes, e um dos "bom dias". Pobre ascensorista. Sem dar importância, seguimos...
Em dada hora, qualquer hora (pois esta é sempre a mesma, neste lugar sem janelas, só portas) entram um senhor, uma senhora, um jovem, uma jovem, e uma menina. Não necessariamente nesta ordem, pois aqui também não há ordem, há o caos das portas abertas e de sinais verdes invisíveis, e a ferocidade das pessoas em conseguir entrar, em conseguir um lugar, na caixinha, no ponto da reta, sabe se lá onde. Um lugar que ninguém conhece, pode ser um lugar que não existe, mas lá estão eles, estes figurantes na vida morta do ascensorista: o senhor, a senhora, o jovem, a jovem, e a menina.
Tosse, perturbando o silêncio do elevador. O senhor tem tosse. Leva um lenço amarelo a boca, e o volta ao bolso, com a mão tremulante. Tosse carregada, debilitante, de despertar preocupação até em estranhos, mas estes nada faziam além de olhar, e voltar para seus próprios corpos, e preocupações. Usava um colete de lã verde amassado, cheirando a guardado, camisa branca, calças cinzas, e um sapato marrom, e o outro preto. Deve ter se enganado, ou não prestado atenção em si mesmo, ou está não prestando atenção para os outros. Que mal há de usar um pé de cada cor? Perdera a esposa há alguns meses. Não sabia cuidar das roupas, da casa, nem dar atenção aos seus próprios pés sozinho. Sente uma dor no peito, e no braço esquerdo, que ignora. Tosse. O senhor tem tosse...
A senhora espera por olhos que a notem, e digam como ela está bonita e bem arrumada, e como os anos não passaram para ela, e como sua pele continuava firme, com algumas poucas rugas e marcas, estas disfarçadas, maquiadas, com cuidado. A senhora usa uma sombra lilás sobre os olhos, batom vermelho, blusa branca de seda, um broche dourado, uma saia preta, meias calças, e sapatos de salto, brilhando. Perfumada. A senhora cheira de longe a um perfume antigo, forte, de como quando as flores morrem, e seus cheiros ficam mais fortes, mesmo mortas. Divorciada, sem filhos. Não podia ter filhos, problemas com sei lá o quê, dentro do próprio corpo. Tinha algumas amigas, espalhadas pela vida, mas estas não apareciam tanto, e não estavam presentes para lhe dizer o quanto ela estava bonita, assim como sua casa, suas roupas, sua vida. A senhora era sozinha, mas ainda assim, usava baby doll, e robe de cetim, nas noites em casa, tomando um pouco de vinho, numa taça de cristal, sentada no sofá, da sala, vazia, com algum disco tocando, para fazer companhia, o que não funcionava tão bem. E ainda tinha o perfume, perfume forte...
Horas. Que horas são? Seu relógio está certo? Os minutos estão certos? Os segundos estão certos? Que horas são? O jovem, engravatado, de relógio sempre a vista e pasta na mão, tem pressa, pressa, muita pressa. Trabalha com... o quê mesmo? Não importa. Ele trabalha, trabalha, trabalha, trabalha, trabalha, trabalha. (Para quê?) Novamente respostas às perguntas básicas fogem, assustadas e espantadas por nós mesmos. Mas, onde estávamos? Ah sim... Ele trabalha, trabalha, trabalha, trabalha. Não tem marcas de Sol, não tem lembranças de férias, não tem amigos, não tem namorada, não tem nada. Mas ele chora, de vez em quando. E sente raiva. E ele se tranca no banheiro, com uma faca. E corta os braços, para sentir a dor dos braços antes a de dentro do peito. E ele chora, chora, chora, e chora. O jovem sente vontade de chorar, e sente novamente vontade de se cortar, mas este se cala, e se encosta numa das paredes do elevador.
A jovem, de rosto e corpo bem formados, arrumada, bonita. Com folhetos de lugares paradisíacos sob os braços. Agente de viagens. Todos os dias, atendia pessoas cansadas, com sorrisos nos lábios, conduzindo-as (e iludindo) à terras prometidas, dos mais diversos tipos. Praias, montanhas, cidades, campos. Sorriso. O segredo do negócio era o sorriso, a cafezinho servido, a voz macia, a total falta de sentimentos próprios, para o “bem” alheio, este, altamente lucrativo, em questões de economia (apenas) para si próprio, e assim, ela, e seus falsos sorrisos, viveriam “bem”. Esta era sua filosofia de vida, não deixando de ser apenas teoria, tão diferente da prática, da vida, das pessoas, dos elevadores. Fazia cursos e mais cursos. Culinária, crochê, italiano, espanhol, computação, e outros tantos... Nunca serviram de nada, mas o sorriso continuava lá, para quem quisesse e precisasse dele. A jovem espera, espera, espera... Algo ou alguém a quem ela possa se dedicar e dar seus sorrisos, verdadeiros, e sua energia, gastada com cursos baratos, e sorrisos falsos...
A menina? Esta ninguém sabe quem é, o que faz, ou se ela existe mesmo. Ela está sozinha. Crianças não costumam andar sozinhas. Tem-se a leve impressão dela estar perdida, porque esta olha tudo ao redor com tamanha dedicação, e há um certo chamado em seus olhos, mas esta é só uma impressão. Esta, que não responde às perguntas, e não é triste, nem alegre, nem nada, muda, mas murmura uma canção a si mesma.
Lá estão todos. Senhores, jovens, crianças, e ascensorista. Todos mudos, e comportados, olhando o teto, ou o chão, ou o relógio, ou o nada, ou as portas, ou os botões. Como se não precisassem um dos outros. Como se não conhecessem. Como se num olhar trocado não pudessem responder todas as perguntas alheias, as perguntas que eles mesmos não sabem as respostas. Como se não fossem todos da mesma espécie, e da mesma família, sob o mesmo céu, sobre a mesma terra. Cá estão, estes “estranhos”, que se estranham, quando não deviam, mas se estranham, e se alienam, e cruzam as mãos, olham os relógios, o teto, o chão, mas não se falam, não se tocam, mesmo precisando tanto... E estão sozinhos. E se ignoram. E fica o silêncio, comum ao elevador, a expectativa, de se chegar a algum lugar (onde nunca, nunca chega), e a educação, de não falar com “estranhos“, e não olhar, não tocar, nada... O elevador caminha, não se sabe bem se ele desce, ou sobe, pra onde vai, daonde veio. E todos esperam.
O ascensorista aperta botões, espia de canto os “passageiros”, e volta aos botões, e ao seu canto de canto.
E lá vai, o elevador, infinitamente, com seu silêncio absoluto...
Tosse. O senhor tem tosse.