A bela limusine cinza atravessa a praça da matriz, no centro da pequena Vila dos Princípios, e estaciona a alguns metros de um posto policial. O povo pára, admira o grande carro, na expectativa de saber quem é o seu proprietário. Todos comentam, até mesmo o padeiro deixa o caixa às moscas e corre para a porta. Nunca tinham visto uma beleza como aquela. Na certa era de algum dos senhores do café, donos de quase todas as propriedades do lugarejo.
A porta do motorista se abre. Logo surge a figura magra e pouco simpática de um senhor de quase cinqüenta anos. Coxo, por causa de um derrame, o homem se arrasta até a porta do passageiro, transformando, o que deveria ser um simples ato, num enorme sofrimento. Com leve toque, abre a porta e dela surge um jovem de vinte e um anos.
Cabisbaixo, o rapaz procura se proteger da curiosidade alheia com as mãos. Os raios do sol também lhe afligem. Caminha alguns passos, pára, volta-se para o motorista, que ansioso, aguarda suas ordens.
_Senhor Marcos, busque-me dentro de 50 minutos, por favor!
_Sim senhor! Seu pedido é uma ordem...- responde o pobre, com um largo sorriso, tentando ocultar a dor -cuja sensação se assemelha a uma agulhada - que lhe atormenta por ter arrastado a perna com tanta veemência.
O jovem passa pelos curiosos; a macilência que lhe cobre é de causar dó naqueles que o observam... Tal é o maremoto intrínseco, que o rapaz alimenta desejo repreensível pela morte. Partir deste mundo, fingir que nunca existira, que sua história jamais fora escrita, é o que mais almeja no momento, como se todos os problemas que lhe causam infortúnio, pudessem ser deletados, por um passe de mágica, como num desses importados romances...
Mesmo inerte ante a agonia que lhe sufoca, decide continuar a caminhada, até parar, de súbito, diante da entrada de um sobrado. Um pouco acima da porta de entrada, há uma placa de metal, fina, um pouco deteriorada pelo tempo, com os seguintes dizeres: “Drª Márcia Aleluia - psiquiatra”. Após arfar, olha para trás e tem a insatisfação de perceber que é o centro das atenções; volta-se à placa, faz uma nova leitura, toma coragem e entra.
Vendo-o se aproximar, a secretária pula da cadeira e corre atendê-lo, exibindo lustroso sorriso como sinal de boas-vindas. Fitando-a do alto de seus 1,80 m, ele ignora toda a gentileza da moça.
_Doutora Márcia está?
_Sim! Está à sua espera! Venha comigo, por favor!
_Ótimo!
Os outros pacientes se impressionam com a beleza do rapaz, em cujo terno azul-marinho está a marca de sua classe. Não só a roupa se destaca, também sua postura, algo difícil de se encontrar nestas terras de roceiro. A poucos metros da porta, Ricardo se vira aos curiosos. Seus olhos, de um azul magistral - como se fossem feitos do mesmo material do luxuoso terno - brilham afoitos, ao ver toda aquela gente com piedade e pouca satisfação.
Notando a presença do insigne cliente, Doutora Márcia comenta, com uma simpatia de causar espanto:
_É novamente o centro das atenções, Ricardo!
_Eu percebi!- exclama o rapaz, com certo desdém.
_O que faz por aqui?
_Preciso de sua ajuda, tia!- confessa Ricardo, fixando-se nos olhos grandes e castanhos da doutora.
_Entre! Por favor!
Antes de fechar a porta, a terapeuta diz à secretária:
_Desmarque todas as consultas! Não estou para ninguém!
_Não é necessário, tia!- interrompe o rapaz. Logo voltarei a São Paulo. O túmulo de onde levantei, aguarda-me ansioso, como se estivesse à espera da própria noiva...
Márcia se atemoriza com a tristeza contida na fala sarcástica do sobrinho e apenas fecha a porta, sem que qualquer nova ordem fosse dada à funcionária.
Ricardo caminha à janela, espreita cada lugar que seus olhos alcançam com uma curiosidade latente. No limite da percepção, acompanha a figura de um camponês, que ávido, roça a terra, na esperança de que bem aparada, possa lhe render milhares de grãos de café e fortuna abundante...Fortuna abundante? Algo que ele, Ricardo, tem, e que poria a perder, por um minuto de paz e tranqüilidade! Entre a cortina e o vidro, focado pelos cálidos raios do sol, deixa uma lágrima lhe descer à face. Todos seus gestos são acompanhados de perto pela brisa, que iracunda, esvoaça-lhe os lisos cabelos negros...
_ O que há, Ricardo? Por que está aqui? Como pode deixar a faculdade, pegar a estrada, andar mais de quinhentos quilômetros, só para chegar até minha sala, ir à janela e se deixar dominar pela nostalgia? O que o traz aqui? Em que posso ajudá-lo?- questiona a psiquiatra, aproximando-se dele.
O silêncio reina soberano...
Diante da ausência de respostas, Márcia confirma a suspeita: seu sobrinho - outrora um garoto traumatizado pela morte da mãe em um acidente na Castelo Branco - está à mercê de uma crise existencial e ela, mais do que nunca, novamente precisa ser forte para resgatá-lo das profundezas de sua dor e fazê-lo forte, como o fizera, quando sua mãe partira, em definitivo, naquela tarde de quinta-feira...
_Ricardo, o que há contigo?
O rapaz se afasta da janela, volta-se para o consultório, espreita cada canto com atípico desvelo. À sua direita, uma tela com a imagem de Johann Sebastian Bach - o gênio imortal dos clássicos mundiais, lhe atrai. Um pequeno sorriso lhe toma os lábios. Quem diria, adora Bach, como a tia! Conhece cada uma de suas árias e a que mais lhe emociona é Corda Sol... Quando a escuta, tem a sensação de que sua alma lhe foge do corpo, resplandece no horizonte, toma a forma de uma rosa, e exala desconhecida fragrância, que, ao tocar os corações mais sensíveis, enfeitiça, elevando-os à imortalidade...
_Ricardo, meu querido, onde está?
_Aqui!..- responde o jovem, resgatando-se da letargia que o dominara por instantes. Corda Sol invadiu minha mente, por um momento, vi-me em lugares tão belos e calmos... Quanta fantasia sou capaz de criar, não é tia?
_Está na hora de buscar a realidade, não acha?
_É o que eu mais quero - diz ele, sentando-se no divã.
_Por que está aqui?
_ Para vê-la!- responde, sorrindo, o rapaz.
_Já disse, está na hora de deixar de lado as fantasias! Agora, por favor, fale: o que lhe trouxe, de fato, a Vila dos Princípios?
Ricardo emudece.
_Não tenha medo! Agora sou sua terapeuta.
_Achei que fosse minha amiga...
_Sou as duas coisas!
Ao encher os pulmões de ar, o jovem verte-se em lágrimas. Como uma criança, corre para os braços da tia e suplica-lhe por socorro. Márcia não consegue compreender o que se passa com o jovem garoto e imagina coisas terríveis.
_Fale, meu amor, o que há? Seu pai lhe fez algum mal? Fale, por favor! Estou ficando preocupada!
_ Não! Desta vez eu me acabei sozinho...
_O que o deixa tão soturno?
_O mesmo motivo que me faz suplicar pela MORTE!
_Como? Não o entendo!- sussurra a mulher, com os olhos contornados por um brilho escomunal. O que fez de errado?
_Eu perdi minha salvação, tia! Sou impuro! - confidencia o rapaz, deixando a aparente calmaria e assumindo a figura de um desatinado.
_Acalme-se! Acalme-se!- diz a psiquiatra, afastando-se até sua mesa.
_Eu perdi minha salvação, tia! Sou impuro!- grita Ricardo.
Surpreendida com as investidas psíquicas do sobrinho, a terapeuta ministra-lhe uma pequena dose de um antidepressivo, para que, ao recuperar o controle de suas emoções, possa lhe contar o que de fato ocorrera, que o deixara transtornado.
O tempo passa devagar...
_Está melhor?
_Um pouco! Desculpe por deixá-la triste...
_Não estou triste, mas preocupada... Preocupada com o sobrinho que mais estimo neste mundo!
_Você não mudou nada, não é? Continua tão doce quanto antes...Lembra-me o suco de uma laranja!
_Como pode me comparar com uma laranja? Ainda se fosse um morango, uma pêra...- diz, tentando ressuscitar alguma alegria neste, agora, melancólico consultório.
_Só você para me fazer um pouco melhor!- afirma, Ricardo, em meio a um sorriso sombrio.
_Agora vai me dizer o que o trouxe aqui?
_Vou tentar!
_ Ótimo! Vejo que está bem melhor! Então, porque afirma ter perdido a tal “salvação”? Que história mais sem nexo é esta? Afinal, meu anjo, o que quer dizer com tudo isso?
_Tia, sou...sou...bem...
_Fale, não tenha medo! – diz a mulher, numa voz angelical.
_Bem...eu sou...sou homossexual ou pelo menos acho...
_Homossexual? Como assim? Por que diz isso? - inquire a terapeuta, um pouco atordoada com a confissão.
_Não sei...estou muito confuso! Não consigo mais me reconhecer... Quando me olho no espelho, não sei mais quem vejo! Tenho a sensação de que a pessoa que se reflete não é mais eu! É como se eu tivesse deixado de viver... Talvez uma outra pessoa tenha emergido de mim, tomado meu lugar e mudado o tom de minha história, fazendo-me tão caricato, artificial, distante do que eu era.
_Continue...- solicita a tia, acompanhando, com cautela, cada gesto, palavra e sentimento expressos pelo rapaz.
_ Não tenho mais personalidade, escondo-me dentro de mim, fujo de tudo e de todos, tenho medo da luz... Por todos os lados, só vejo escuridão, dor, desespero! Por favor, tire-me deste sofrimento...Eu suplico, por favor!
_O que fizeram com você? Está me assustando! Foi seu pai que conseguiu esta proeza? Como sempre...
_Não foi ele, já disse!- intervém o jovem, em defesa do pai. Ele nunca se importou comigo e não será agora que notará minha presença. Está em sua empresa, fazendo o que mais gosta neste mundo: dando ordens!
_E você aqui, alquebrado, precisando de um colo, perturbado, frágil, a ponto de por em xeque a própria personalidade!
_Por favor, não fale assim!
_Tentarei me controlar! Prometo! Mas não será fácil! Agora vai me dizer o que tanto o angustia, deixando-o tão confuso...
_ Minha história é longa...
_Tenho todo o tempo do mundo!
_Por isso eu te amo!- completou o rapaz.
Deitado no colo de Márcia, confidencia-lhe os motivos de sua agonia.
II
A São Paulo deste inverno está irradiante. O relógio luminoso, no centro da avenida, marca 22 horas e 14 graus. O vento frio levanta a poeira, invade as casas, balança as árvores... As folhas, desatadas dos galhos, voam pelo alto; parecem pipas desorientadas, em mãos de garotos pequenos. Não demora, a garoa cai, transforma a poeira em barro, causando a comoção em dois idosos, que sentados na cama, vêem, pelas frestas da janela, o mau tempo se levantar... Cobertos por um fino manto de lã, relembram o passado, época em que o bonde cortava a cidade, as meninas pulavam amarelinha e as bicicletas concorriam, com os poucos carros, as avenidas...
Ao longe, uma família de migrantes, recém chegada do Nordeste, abriga-se do frio embaixo de caixas de papelão. O bebê chora de fome no colo da mãe, que nada pode fazer se não suplicar por misericórdia aos transeuntes, que, acostumados àquela cena, ignoram o fato. O pai, cuja barba atinge o peito, olha para a criança e apenas lamenta pela decisão de ter trocado o interior pela cidade grande na falsa esperança de uma vida melhor. Consegue reunir algumas poucas madeiras, de galhos envelhecidos, e taca-lhes fogo, na tentativa de se aquecerem. Outro filho, um garoto raquítico, de uns quatro anos, dorme sobre as malas. Seus lábios estão roxos e ressecados.
Por eles passa a bela limusine cinza. Nela está Ricardo, com o celular em mãos; aparenta estar feliz! Talvez esteja, carrega nas veias a seiva da adolescência - o combustível essencial à explosão da libido.
O carro estaciona em frente ao Salão da Proeza. Ricardo desce, olha para todos os lados e suspira. Está diante do palco da elite paulistana. Ao ensaiar subir a escadaria, ouve alguém lhe chamar. Ao virar-se, é agarrado com força por uma linda garota, de uns 18 anos, que o beija com uma vulgaridade voraz. Ele não mede esforços para retribuir o carinho, ainda que o fato constranja alguns dos convidados.
A festa, em homenagem aos 22 anos da filha de um dos maiores empresários da siderurgia nacional, corre solta. Vestidos todos a rigor.
Ricardo dança o tempo todo, bebe o que pode, extravasa suas emoções e, lá mesmo, em meio aos outros pares, faz amor com a jovem, sem se preocupar com julgamentos. Aliás, pouco se importa com o nome de sua família, o que mesmo deseja é satisfazer-se, curtir intensamente cada minuto de sua vida. Os organizadores até pensam expulsá-lo, mas são advertidos pelo assessor de imprensa da festa, pois o fato, além de se transformar em um grande escândalo e render meses de fofocas às colunas sociais - uma vez que o pai de Ricardo é um grande industrial da cidade, ainda imporia muitos embaraços jurídicos e transtornos “financeiros” irremediáveis à empresa responsável pelo evento. A opção plausível, apesar dos protestos dos convidados, é aceitá-lo, ignorando suas investidas. E assim acontece...
Ricardo é o centro da festa, ofusca até mesmo a aniversariante. E para atiçar ainda mais a ira dos organizadores, faz questão de beijar, de modo intenso, a jovem garota, que fora de si - talvez pelo uso de algum entorpecente, retribui-lhe da mesma maneira. Aos poucos, tornam-se os únicos donos da pista, para a indignação da família Marcondes, a detentora dos direitos da festa.
As horas avançam...
Já não suportando as pernas, a moça, de nome Marymel, pede para descansar um pouco. Suada, recolhe-se ao toalete. Em sua ausência, Ricardo canta outra convidada, prometendo-lhe amor eterno! Como senhor absoluto do prazer, consegue convencê-la a transar num pequeno corredor lateral, que dá acesso aos fundos. Está louco para consumir mais um corpo; sem qualquer tipo de remorso, sorve-lhe toda a essência, despreocupado com o possível flagrante.
Desnorteada, Marymel procura o rapaz; como se encontra esgotada, pede ao seu motorista que a leve para casa.
Satisfeito, o rapaz se levanta, arruma as calças, ignora a mulher, pega um cálice de vinho e corre pelo salão; está irradiante! Duas lindas mulheres foram suas; uma delas, além do prazer de beijar, teve o gosto de desvirginar...
Cambaleando, atravessa o salão, cumprimentando, com sarcasmo, todos os olhares de cólera que o fitam. Desce a escadaria que dá acesso à limusine com a ajuda dos seguranças...
Do salão à sua casa, em Alphaville, são duas horas de viagem. O relógio de pulso de Ricardo anuncia ser duas horas e doze minutos da madrugada. Durante o percurso, vangloria-se das conquistas, gargalhando em demasia, até causar incômodo ao empregado...
A limusine chega à mansão. Ricardo sai do carro, caminha até o hall de entrada, passa pelo living e, ao se aproximar da escadaria que dá acesso aos aposentos, sente náuseas. Leva uma das mãos à boca enquanto a outra, apoiada à parede, o mantém em pé. Dá mais dois passos e inicia o doloroso trajeto até seu quarto. No último degrau está seu pai - um senhor de cinqüenta e cinco anos, pela aparência, atribui-se apenas uns quarenta. Cabisbaixo, observa sem expressar uma palavra, o filho, ao tentar subir os mais de 30 degraus que os separam. Comovido, resolve auxiliá-lo...
O rapaz é carregado até o quarto. Antes de se retirar, o senhor lhe recorda:
_Hoje há exame na faculdade, lembra-se? Se não o fizer, será reprovado...Perderá todo um semestre de estudo! Espero encontrá-lo disposto e preparado de manhã, senão irá trabalhar na fábrica, como operário; assim dará valor ao dinheiro que lhe dou e que você só utiliza para se embriagar junto a estas garotas de programa...
A muito custo, Ricardo se levanta, roga duas ou três pragas ao pai que lhe fecha a porta, arrasta-se até o toalete, lava o rosto, olha-se no espelho: está acabado! Pudera, deu conta de duas em uma só noite... Que maravilha! Olha para a calça, suja do sangue daquela virgem...Sorri! Foi o primeiro homem daquela, agora, flor consumida!... O estômago está embrulhado. Tenta apalpá-lo com cuidado, até que arrota! Vendo-se novamente no espelho, penteia os longos cabelos lisos e negros. Os olhos azuis estão efervescentes, a bebida lhes realça o tamanho e o brilho.
Mesmo não se agüentando em pé, arroja-se até o escritório - uma pequena repartição do quarto, e liga o computador... Tudo é feito de maneira lenta e descompromissada! Quando os programas são iniciados, ele se conecta à Internet. Precisa terminar de ler os artigos que tratam do comércio bilateral. Por incrível que pareça, este “senhor das noites” almeja ser um mega empresário. Tudo é possível àquele que crê e vive por um objetivo, o que não é o seu caso.
Desde a morte de sua mãe, naquele trágico acidente na Castelo Branco, Ricardo jamais se importou com algo. Sua vida sempre foi regada a gastos desnecessários e a prazeres efêmeros. O pai, ausente, preocupa-se apenas com os negócios, na tentativa de esquecer a mulher que tanto amara e que ainda insiste lhe ressurgir diante dos olhos quando as lembranças se tornam insuportáveis...A Ricardo só restou a tia, que, mesmo distante, tenta acompanhá-lo, orientá-lo, estimulá-lo na busca por aquilo que deixou de acreditar. Foi por ela que resolvera prestar o vestibular, concorrer a uma das poucas vagas para o curso de Economia -carreira que fizera de sua mãe uma das mais prestigiadas diretoras de banco da Grande São Paulo-, de uma renomada universidade da capital e se classificar entre os trinta primeiros aprovados. Atualmente está no 5º semestre e corre sério risco de ficar em dependência na disciplina que rege o comércio exterior. A única chance de ser promovido para o estágio seguinte, é obter nota oito no exame que acontecerá logo ao amanhecer.
E foi, novamente por Márcia, que ele ligou o computador, conectou-se à Internet, na busca por textos que lhe possibilitassem construir alguma crítica realista sobre a bilateralidade comercial.
Enquanto pesquisava, resolve acessar uma nova página, de um bate-papo. Seu nick: “Gostoso e Eterno”.
A sala está cheia. Trinta e cinco internautas teclam acerca do que lhes interessa. Joana, a perseguida, flerta com Gláucio, o pegajoso; Mari grita com Lucas lambe-lambe; Eu concorda com Sozinho; Stella suspira por Raquel... Enfim, assuntos nem sempre aproveitáveis!
Ricardo deixa um pouco o Chat e retorna ao site de busca. O tema demasiado cansativo, o transporta, em definitivo, à sala de bate-papo - muito mais atraente que as teses defendidas pelos economistas neoliberais, adoradores insanos do Consenso de Washington.
Ao retornar, nota a presença de um novo internauta, desta vez, com um nick curioso: “O Desbravador de Identidades”. Intrigado, lê, com desvelo, as duas primeiras mensagens deste misterioso visitante.
_Há nesta sala alguém inteligente e arrojado para uma conversa, de bom nível? - questiona o Desbravador.
Alguns jovens tentam manter contato com o estranho rapaz que, por sua vez, os repele, um a um, com a deselegante frase “Você não serve...”. Toda a conversa transcorre livremente...
Não suportando a curiosidade, Ricardo arrisca:
_ Quem você pensa que é para ser tão seletivo?
_Hum! Parece-me mais afoito e cativante que os demais...Isso é muito bom! Então está pronto para ser desbravado, conhecer novos mundos, ser dono do céu e da terra, do pecado e da virtude, senhor Gostoso e Eterno?
__Está louco? Com quem pensa estar falando, seu idiota? Vá desbravar sua mãe, talvez ela esteja precisando... Acha que sou tolo em cair numa conversa insana como esta? Deve ser um desclassificado!
_ Não, sou apenas letras...Consoantes e vogais que se desprenderam de um corpo físico, na tentativa irrefreável de encontrar alguma essência que os alimente eternamente...E como são aprazíveis os vis contornos da eternidade, proponho-lhe pacto de amor obsessivo e fidelidade perversa... Se aceitar, estará recebendo as chaves do inferno, um local instigante, desafiador, em que o sexo e o prazer são as moedas de maior valia!Nunca mais será o mesmo, desejará sempre beber das águas da luxúria e da amoralidade - rios que dividem o vale da tentação...
_ Desgraçado, você é um homossexual!- grita, com ódio, o rapaz.
_ NÃO!- diz, de forma taxativa, o estranho. Estou apenas querendo sentir novos prazeres, fugir um pouco do cotidiano. Acredito que o homem é capaz de sentir os mesmos deleites, ou talvez maiores, se mantiver relações com parceiros do mesmo sexo! Na verdade, isso é resultado de uma tese que li recentemente, cujas linhas afirmam, que para o homem, pouco importa o parceiro; de fato, o que se está em xeque, é o alcance do orgasmo e a satisfação do corpo. Estatísticas, de conceituadas universidades internacionais, corroboram: a maioria dos homens sente tesão aloucado e aprazer descomedido quando pratica sexo com rapazes, por inserir neste contexto, além do anseio, os riscos de ver sua sexualidade revelada à sociedade. Transar com mulheres é como comer arroz com feijão: todo dia se tem! Então, o que acha de pormos à prova esta tese?
_ESTÁ LOUCO? SOU HOMEM! MUITO HOMEM!...- diz, Ricardo, apossado por uma raiva descomunal. MUITÍSSIMO HOMEM! TENHO NOJO SÓ EM PENSAR...
__ Por que grita? Em algum momento eu o ofendi ou disse algo contrário a esta afirmação?
_ Então por que me convida para tal disparate? O que pensa estar fazendo?- exige o rapaz.
_Acalme-se! Por que toda esta exaltação? Sei que teve um dia difícil e quero apenas ajudá-lo...Será que posso?
_Dia difícil? Que conversa é essa?
Exasperado, Ricardo desconecta-se da sala e, aos berros, profere blasfêmias àquele que se intitula o maioral da obscuridade. Anda, em círculos, pelo quarto, não acreditando ter participado de uma conversa tão abjeta. Acha? Ele, um dos senhores da noite paulistana, desejado pelas mais belas da metrópole, caído aos pés de um homem, talvez um reles plebeu, na condição de um fajuto investigador das práticas surreais de teses despropositadas? Logo ele, príncipe viril dos mais irrequietos caprichos da alma feminina. Que lástima!
Foi à sacada. Apoiado a amurada, testemunha a fumaça das chaminés deixar o céu numa tonalidade ainda mais lúgubre, de causar arrepio.
Enquanto seus olhos se perdem no horizonte, sua mente é invadida por pensamentos perigosos. Quem estará por trás daquelas palavras? Será alguém que conhece, zombando de sua ingenuidade? A curiosidade, tão viciante e letal quanto ao ópio, lhe encoraja a prosseguir a conversa, na intenção de desvendar a identidade do desequilibrado e lhe dar uma surra. Afinal, não pode se dar ao luxo de permitir que um demente zombe de sua sexualidade apenas por um mero capricho particular.
_ Estava lhe esperando...- confidencia-lhe o tal Desbravador de Identidades, ao vê-lo retornar ao diálogo.
_ Voltei para dizer que...
_ ... Que aceita minha proposta?- completa o estranho, entrecortando-lhe a fala.
_ NÃO!- admoestou Ricardo, assombrado com a persuasão do estranho. Voltei para...para desmascará-lo e descobrir por que promove este jogo cretino...
_Porque quero sexo, prazer...Algo que sei que é capaz de me oferecer! Pensei ter sido claro! Vamos marcar um encontro, provar o gosto de nossos corpos, deliciar-nos numa cama, fazer verdadeiras loucuras... Verá como é bom ser possuído por outro homem!
Um arrepio, com a mesma velocidade de uma facada, desce a coluna de Ricardo, que, consternado, olha para os lados, respira um pouco e se apóia sob o teclado, como se não tivesse acreditado estar teclando com um possível psicopata.
__Quanta pretensão! – repudia o estudante. Louco!
_ Louco por você! Por seu corpo, sua alma, seu cheiro... Deixe-me fazê-lo feliz! Topa estar comigo? Passaremos horas nos acariciando... Será um relax de dar inveja a qualquer sauna gay.
Ricardo pensa desistir de seu objetivo, desconectar-se e esquecer tudo; todavia, a arrogância – este verme que se hospeda em corações adeptos ao poder, o faz voltar atrás e mudar toda a estratégia. De presa, passa a caçador, num jogo, em que o prêmio pode ser o próprio surto. Astuto, revê os diálogos, altera a postura, baixa a resistência e dispara o golpe de misericórdia.
_ Como você é?
_Hum! Vejo que está mudando de opinião...Isso me excita!
_Quando não se pode vencer; junte-se ao inimigo!- ironiza o rapaz. Vamos ao que interessa: VOCÊ! Fale, como é...
_Uau! Adoro homens sarcásticos e dominadores, principalmente adolescentes que se completam na figura exuberante daquilo que interpretam ser...
_Não me considero adolescente, tenho 21 anos, portanto, deixe de escapismo e descreva-se logo!- ordena Ricardo, não disfarçando a irritação.
_ Desculpe-me, adolescente de 21 anos, não foi minha intenção encolerizá-lo. Bem, sou louro, olhos verdes, 1,77 m, 72 kg, carinhoso, apaixonante! Aquele que agora ousa me completar será feliz pela eternidade, ainda que a perda de um dos pais lhe cause dor por toda uma vida...
_ COMO SABE QUE PERDI MINHA MÃE? FALE!- exige, Ricardo.
_ Nenhum feiticeiro revela sua magia...
_ PARE COM ISSO! EU ORDENO! COMO SABE DISSO? NÃO TOCO NESTE ASSUNTO HÁ ANOS...- confessa o rapaz, num misto de medo e surpresa.
_ Bebeu muito hoje?
_ Bem...- levado pelo desconhecido a mergulhar no poço das lembranças doloridas, Ricardo mal percebe ter deixado o papel de protagonista - se é que o foi em algum momento - e assumido a função de coadjuvante, num jogo considerado perigoso, cujo final poderá ser diabólico.
_Não precisa me dizer mais nada... Está perdido em sua própria vida! Seu pai lhe persegue, suas namoradas duram alguns segundos e se esvaem no tempo...Precisa de um amigo de verdade, a quem possa confidenciar seus mais íntimos devaneios, suas verdades que são versões mal acabadas de uma realidade fugaz e dolente...- persuadi-lhe o Desbravador, transvestindo-se de anjo.
Com uma mão apoiando a cabeça e a outra no teclado, ele escreve:
_ Pare, por favor! Eu lhe suplico! Você está me assustando...
Hipnotizado pela dor, Ricardo verte-se em lágrimas. Arrasado, levanta-se da cadeira, abre uma das gavetas da cômoda, de onde retira uma fotografia da mãe que tanta falta lhe causa. Olhando-a, com ternura, sente vontade de gritar, tão grande lhe é a perda; não o faz por medo de que as feridas do coração possam, anos depois, desabrochar e lhe entorpecer com seu aroma deleitante e mortiço. E a camisa, embebida pela transpiração, é o aviso de que estas mesmas feridas estão por irromper a qualquer instante...
A muito custo, retorna ao bate-papo. Espreitando, com afinco, o nick de seu possível carrasco, pergunta:
_ Por que desbravar minha identidade? O que, de fato, quer? Só sexo mesmo? Como descobriu tanta coisa sobre mim?
Antes que Ricardo conclua a frase, o misterioso desbravador se desconecta, deixando-o, aparentemente, desolado.
Os primeiros raios de sol cruzam o horizonte...
Após desligar o computador, o inocente rapaz cai no sofá, chora um pouco e acaba deixando se transportar para uma terra distante, onde a realidade é refém da fantasia. Os pássaros tomam o céu, as crianças brincam, o rio, límpido, corre com calma... Tal é a tranqüilidade que ele, deitado no colo da mãe, observa, com gosto, a figura de um rapaz, do outro lado da margem - em cuja distância se torna difícil ver a face, que lhe assovia.
Movido pela magia do primeiro encantamento, levanta-se, aproxima-se do rio e, aos gritos, pede para que o moço venha sentar-se ao seu lado. Precisa vê-lo de perto, passar a mão em sua face, senti-lo em seus braços, tomá-lo pelo espírito, sonhar um pouco... Almeja que ele seja o altivo Desbravador, aquele que lhe ousou estraçalhar, impiedosamente, o coração.
O Ricardo de há pouco, que tantos preconceitos alimentava, havia, por algum motivo, esfacelado. Em seu lugar nascera outro, de um encorajamento de causar surpresa. Uma obra perfeita do senhor da obscuridade, que montado num cavalo branco, correra lhe realçar a verdadeira identidade, guardada a sete chaves nas valas horripilantes de sua alma.
Aura aprazível corta o local. O moço atravessa o rio a nado, também está ansioso, quer logo chegar à margem, fixar-se aos olhos de seu possível novo amado e beijá-lo intensamente, até que a ausência de fôlego os separe. Ricardo o aguarda em pé, com a felicidade a lhe invadir... E o que parecia impossível, acontece. O desconhecido pula da água, pega-lhe entre os braços e lhe devora pelos lábios...Ouve-se um relâmpago. A realidade liberta-se do cárcere, e cai, como bomba, na cabeça do ingênuo estudante.
De um pulo, Ricardo se levanta, corre ao toalete, olha-se no espelho e pergunta:
_O que está acontecendo, meu Deus?- morde os lábios para que o choro não se apresente e faça morada. Estou desvairado como aquele internauta... Como posso estar imaginando ter algo com alguém do mesmo sexo? E desde quando sou homossexual? Minha vontade sempre foi desbravar as virtudes das ninfetas de Alphaville e não me prostrar aos pés de um...homem! Algo está errado comigo! Preciso de um médico! Aquele cara me deixou perturbado com sua conversa desatinada!
Descontrolado, pega um frasco de perfume e o atira contra o espelho...
III
O dia clareia...
O canto dos galos é substituído pelas buzinas dos caminhões, pelas sirenes das ambulâncias, pela correria desatinada dos ônibus... A São Paulo de todos os santos está acordando, novos momentos de glória e tragédia estão prestes a ser gravados com sangue, suor ou alegria, nas páginas do grande livro de sua história...
O entregador de jornal, montado em uma velha moto, atravessa, com a mesma velocidade de um raio, as avenidas monumentais de Alphaville. Tem pouco tempo para fazer a entrega dos mais de 1000 exemplares contratados à região. Na entrada de uma das casas está Marcos, o motorista, aguardando a chegada do periódico, a pedido de seu patrão, o pai de Ricardo.
Por falar em Ricardo, lá está ele, entregue ao travesseiro.
_Ricardo ainda não acordou?- pergunta, com cara de poucos amigos, o patrão à empregada, enquanto degusta uma fatia do legítimo queijo mineiro.
_Não senhor! Já lhe chamei por várias vezes...
_Como pode isso? Ele tem uma prova para fazer daqui a pouco! Como pode ser tão irresponsável, Maria?
_Tenha calma! O senhor sabe como o Ricardo é...
_Vou acabar com essa mordomia agora!- diz o doutor, ao levantar-se da mesa e jogar o guardanapo sobre a cadeira.
Em seguida, dirige-se ao quarto do filho enquanto Marcos chega à sala de jantar, com o jornal debaixo do braço. Vendo apenas Maria, que tirava a louça suja, pergunta:
_Onde está o doutor Rubens?
_Foi acordar o Ricardo... É, hoje teremos mais um daqueles longos dias, Marcos. - lamenta-se a emprega.
Rubens entra no quarto, abre todas as janelas e se volta para o filho aos berros:
_Ricardo! Acorde! Vamos...
Irritado, cobra-o, quer que ele faça uma bela prova e não perca, de todo, o semestre que se foi...Mal sabe que o garoto não estudou, preferiu prosear com um desconhecido, que acabou por aterrorizá-lo com sua maneira exuberante de teclar.
A muito custo o jovem se levanta, e ao olhar o relógio, apavora-se, está quinze minutos atrasado. Ao entrar no toalete é abalado pelo susto: os cacos do espelho - quebrado na noite passada após um momento de desequilíbrio - estão por toda parte. O suor, em demasia, toma-lhe a face, enquanto a mente, acelerada, arquiteta uma forma de evitar que seu pai flagre o local daquele jeito, o que poderia lhe render uma discussão interminável.
Amedrontado, fecha a porta e tenta manter a calma. Após uma boa inspirada, resolve recolher os cacos, aproveitando que seu pai está entretido com a separação de sua roupa.
Minutos se passam... O silêncio é predominante. Os últimos cacos já estão em sua mão para serem jogados no lixo. Espreitando pelo buraco da fechadura, nota que o quarto está vazio, por este motivo, abre a porta, dá outra conferida, para só depois se retirar.
Sentando-se na cama, segura a cabeça com as mãos, enquanto respira aliviado. Levantando os olhos, encontra estendidos no sofá, a alguns metros, uma calça de linho marrom e uma camisa branca.
Decide levantar-se para ir buscá-los. Ao passar pelo micro, vê a história da noite passada lhe ressurgir diante dos olhos, o que acaba por lhe causar certo desconforto. Um desejo curioso e atrevido lhe sussurra aos ouvidos para que o computador seja ligado, conectado à Internet e aquela estranha criatura, localizada.
Como se estivesse inconsciente, Ricardo dá dois passos em direção ao micro, quando cai em si e percebe estar sendo atraído por aquilo que há pouco lhe causara tanto medo.
Confuso, resiste à idéia, veste-se, abre a porta do quarto e sai. Desce as escadarias sem olhar para trás, na esperança de que seus problemas, suas angústias e devaneios tenham ficado presos dentro do aposento, deixando-os de atormentá-lo para sempre, ou, na pior das hipóteses, por um longo espaço de tempo...
Toma o café na sala de jantar, depois solicita à empregada que lhe faça um prato exótico para o almoço. Terminada a refeição, pega uma pasta quase vazia, que se encontra no final da mesa, beija Maria com carinho e parte.
Caminha silenciosamente pelo jardim. Seus olhos, perdidos no horizonte urbano, emitem sinal de que não está presente neste mundo, mas em algum lugar distante, onde a possibilidade de ser feliz ignora o preconceito - a seiva do mal que alimenta o ego humano. Retorna-se a si ao ouvir o chamado do chofer. Marcos o aguarda, a alguns passos, com a porta da limusine aberta. Irrigando os pulmões, segura a pasta contra o peito e segue ao encontro do veículo.
Os corredores paulistanos, como é de praxe, vivem mais um dia de tráfego intenso. A fumaça negra escapa pelos escapamentos dos coletivos envelhecidos que, na forma de paus-de-arara da modernidade, levam a plebe aos mais distantes pontos da cidade... Não há tempo para nada, muito menos para sorrir. O esgotamento físico, parente mais próximo da depressão, é visível na face da população. A limusine corre... Shoppings, praças com crianças nadando em fontes, edifícios gigantescos e a imagem horripilante do Tietê, uma versão maculada do saudável Tamisa, correm-lhe pelo vidro e se perdem nas lembranças de uma terra voraz por desenvolvimento...
Ricardo chega à faculdade. Pede ao motorista que o busque às 12h00. Entra cabisbaixo. Sabe, no íntimo, que nova bomba estará para explodir, quando mais esta nota chegar às mãos de seu pai. Os portões se fecham. O exame se inicia. Os fiscais não deixam nada sem revistar.
Sentado na primeira fila, na última carteira, o rapaz só tem cabeça para aquele que ousou desafiar sua existência viril, pondo em dúvida, sua própria condição como homem.
A prova lhe chega. Há muitas questões sobre o comércio bilateral. Lê a primeira pergunta. Não sabe! Lê a segunda, a terceira, por vez, a última. Nenhuma delas abrange o conteúdo de seu conhecimento.
Estupefato, altissona, na esperança de que algum milagre aconteça e o salve da “bancarrota estudantil”. Apela a todos os santos, aguardando, com ansiedade, que algum deles se compadeça e resolva ajudá-lo...
Aos poucos, o nervosismo cede e, no lugar do desespero por descobrir-se incapaz de resolver as questões do exame, perde-se nas lembranças da noite passada...
Pôr à prova a tese ignomínia de um tresloucado, que afirma, com ilação embasada em experimentos científicos de origem duvidosa, que o homem, posto diante da incitação da libido, é capaz de praticar o ato, ignorando a condição sexual do próprio parceiro, desperta-lhe coisas dentro de si... Será que ele, um rapaz atraente, desejado por parte da socialite, seria capaz de transar com outro homem, só pelo fato de estar excitado? Quanta loucura!
O sino toca. São 12h00. Ricardo olha espantado para a prova, todas as questões estão sem respostas. Atordoado, assinala a opção “a” de todas as perguntas. Pelo menos evitaria o zero.
O fiscal toma-lhe a prova e solicita sua retirada. No corredor, sem que pudesse imaginar, encontra a garota que desvirginou na festa da noite passada. Ela está irradiante, afinal, mantivera contato sexual com um dos garotos mais desejados da sociedade paulistana. Pede-lhe um beijo, mas o rapaz, frio como um defunto, afasta-se, sem se deixar contagiar pelos olhos luzentes da garota, que agora se intitula uma completa mulher.
Ela o segura pelo braço, tenta roubar-lhe um selinho; reticente, ele prefere ignorá-la e partir. Sua desvirginação perdera a graça diante das investidas infames, porém curiosas, do senhor dos enigmas. Chateada, a jovem se afasta com os olhos intumescidos e os lábios trêmulos.
Ricardo se vai, levando dentro de si uma cadeia de reações, que, forjadas pelo sátrapa dos mistérios, desabrocha em seu âmago, fomentando transformações psíquicas e comportamentais.
As horas voam...
Depois do jantar, o agora pensativo rapaz tranca-se no quarto, liga o micro, na esperança de reencontrar o estranho que tantas sensações lhe despertara. Por incrível que possa parecer, lá está o desbravador, no mesmo Chat, esperando-o.
_ Pensou em mim hoje?- inquire o desbravador, com certa prepotência.
Ricardo titubeia em responder.
_ Pensou em mim hoje?- insiste o desconhecido. Pois eu pensei muito em você... Acho que estou me apaixonando... Logo eu, a quem o mundo dotou de razão e não de sentimentalismo...
_ E por que pensaria? Por acaso é alguma Vera Fischer para que eu possa dedicar alguns minutos tão importantes de minha vida a você? - responde o rapaz, ainda que contrariando as reais intenções de seu âmago.
_Estou estupefato! Que prazer descomunal!- gargalha o invasor de personalidades.
_E por quê?- questiona, o ingênuo rapaz.
_Por ter pensado em mim durante o dia todo! Isso muito me alegra! Sinto-me como se não estivesse mais neste mundo, como se fizesse parte de um novo lugar, regado a vinho e muita esbórnia, cuja senha de entrada, seria um beijo seu...
_ Você...você...eu...
_ O prazer advém da possibilidade real de que logo o conhecerei e o terei em meus braços.- completa o desbravador, interrompendo-o.
_ Como pode ter tanta certeza?- exige, assombrado, o rapaz.
_ Só por estar aqui, já é um sinal de que também me quer!
Ricardo engole a saliva a seco. Empalidecido e sem condições de continuar o diálogo, pelo menos sóbrio como estava, solicita à empregada uma garrafa do mais fino vinho do Porto.
Maria lhe entrega a bebida e a taça numa pequena bandeja. Após encher a taça, ele a bebe de uma só vez, esquecendo-se dos bons modos, tão essenciais à conduta de um homem íntegro e dotado dos mais relevantes princípios, como gostava de dizer sua falecida mãe.
Sob o efeito do álcool, volta à sala de bate-papo. Agora, sem o controle da consciência, o sensor natural, passa a exaltar a figura do desconhecido, como se também quisesse tê-lo ao seu lado.
_ Quantos anos você tem?- pergunta Ricardo. Pela maneira com que escreve, deve ser mais maduro do que eu...
_ Está me chamando de velho?
_ Longe disso! Acho-o envolvente, caliente com as letras, exuberante com os sentimentos, algo que um jovem como eu seria incapaz de lidar...- revela o rapaz, após degustar a terceira taça de vinho.
_ Estou começando a achar isso mesmo... Ontem me disse que era o senhor dos saraus paulistanos, o queridinho das virgens e que, na condição de macho, jamais se prostraria aos pés de um ser da mesma espécie...O que acontece agora é uma inversão desses mesmos fatos ou o desmascaramento de uma fantasia que nunca deixou de ser realidade?
Desconcertado pela pergunta, Ricardo toma outra dose e arrisca:
_ Quer me deixar perdido?
_ Sou o maioral dos enigmas, o desbravador de identidades e, pelo que vejo, a sua está ruindo e logo cairá por terra...
_ ESTÁ LOUCO!- grita o rapaz! CONTINUO SENDO O MESMO...
_ Tem certeza, majestade?- ironiza o desconhecido. Leia o histórico de nossa conversa e perceba o quanto mudou desde a nossa última prosa... Você já é meu! Invadi seu corpo, e como um espírito imundo, desbravo, sem piedade, cada canto de sua essência, fazendo de seu coração a minha morada...- sentencia o déspota virtual.
_Pare! Pare...- suplica-lhe o jovem.Você está me confundindo, eu...eu...
_ Quer me conhecer?- verte-se de pretensão o desconhecido. Venha para meus braços, vou ajudá-lo a desvendar aquela que sempre foi a sua verdadeira identidade! Venha, estou louco por ti...Tão louco quanto o lobo por carne de cordeiro...
_ Serei seu cordeiro?- balbucia Ricardo.
_ Se quiser... – responde-lhe o enigmático sedutor.
_ Sabe, estou louco por você...- confidencia-lhe Ricardo, com a moleza da bebida recaindo-lhe sobre o corpo.
_ Que espanto! Que avanço!- gargalha o desbravador. Prova de que a tese estava certa...
_ Talvez! Vamos ver isso na hora certa!- contra-ataca Ricardo, como se a bebida o tivesse libertado de todas as correntes sociais que o impediam de voar, conhecer novos mundos e prazeres considerados profanos; ou, como dizia o desconhecido, o verdadeiro Ricardo agora estava à sua frente, sem qualquer maquilagem, porque o outro Ricardo, o que a sociedade se acostumara a assistir, poderia ser uma máscara, criada para manter em sigilo uma outra criatura, repelida pelo seu próprio criador.
_ Onde quer me encontrar?- pergunta, sinistra e contundente, o desbravador de identidades...
_ Quer que eu vá buscá-lo?- inquire, o agora descaracterizado garanhão da sociedade paulistana.
_ Nossa! Quanta gentileza!- vibra o desbravador.
E ali ficam os dois a tramar o caso. O incrível de tudo isso é ver o rapaz se entregar à persuasão de um estranho, sem se atentar para os perigos que poderia estar correndo. Mergulhado numa sensação letárgica de prazer - algo que só o vinho poderia lhe proporcionar – ele não percebe o abismo que há entre a realidade e a ficção.
Tal é o desatino que não se importa com a situação homossexual desenhada entre eles, pelo contrário, diverte-se com a possibilidade de estar adentrando a um novo mundo, regado a belas descobertas e carinhos exacerbados. E a ira por ter sido cativado por alguém do mesmo sexo parece, ainda que contrariando todas as expectativas, enterrada a sete palmos abaixo da terra.
Terminado o papo, Ricardo corre para o chuveiro. Às 2h00 encontrará, no Anhembi, aquele que se intitula o senhor dos enigmas, o explorador de personalidades. Terá uma noite de puro êxtase!
Os minutos correm...Já passam das 00h30min...
O rapaz desce às escadarias que dão acesso ao rol de entrada. Ao abrir a porta, ouve seu pai lhe advertir, numa voz rouca e pouco amigável, como já é de hábito:
_ Não sabe que é perigoso sair a esta hora, Ricardo?
_ Não se preocupe, volto logo!
_ Posso saber aonde irá?
_ Eu...- diz, com a voz dominada por uma ansiedade indisfarçável. Eu...irei até a casa de um amigo...
_ E que amigo é esse que aceita visitas de madrugada?
_ Bem...é...é...um amigo da faculdade! Ficamos de fazer um trabalho para entregar amanhã cedo...
_ Que eu saiba, sua faculdade terminou manhã de ontem, quando fez o exame... Aliás, como foi?
_ EU? Bem...fui razoável! É...
_ Espero estar sendo sincero, afinal, a verdade não é uma de suas melhores virtudes.
_ Bem...depois nos falamos, preciso ir...
_ Pois não! Dê lembranças a este, digamos, “amigo liberal”, certo?
_ Sim! Pode deixar... Um beijo, pai!
_ Outro, menino!
Ao sair, Ricardo limpa o rosto, estava todo marcado pelo suor. Corre até a garagem, pega um dos vários carros de passeios da família e invade as ruas da grande São Paulo, cantando os pneus.
Recolhendo-se aos aposentos, o pai, nitidamente angustiado, confidencia-se a si mesmo:
_ Como mente bem! Não sei mais o que fazer... Quanta falta Natália me faz!
Adormece, sentado em uma das poltronas da alcova, ao som de Chopin.
Neste instante, Ricardo está tenso, acima da velocidade permitida, mas feliz por saber que logo estará no colo daquele que ousara desbravar sua alma... Alguém que só conhece através das letras, mas que, surpreendentemente, admira, tanto que por ele fora capaz de mentir e invadir a madrugada, ignorando todos os perigos que uma metrópole como São Paulo poderia lhe reservar...
Chega ao Anhembi às 01h56min. A avenida está deserta, a escuridão é assustadora...
Estaciona em frente à entrada que dá acesso ao Sambódromo. Ricardo não se dá conta dos perigos que está correndo por estar numa zona dominada por andarilhos, viciados em droga, prostitutas e garotos de programa. Olha para o relógio, já passam das 02h10. O combinado era às 02h00. Poderia ter se atrasado - pensa o inocente rapaz.
Passam por ele dois homossexuais, que não deixam de provocá-lo, na expectativa de que pudesse ser mais um dos inúmeros clientes que teriam nessa fria noite de inverno. Como não houve reação à provocação, passam a ofendê-lo e a chutar o automóvel! São contidos pela aproximação de uma viatura policial.
_ Algum problema, rapaz?- pergunta o policial a Ricardo, parando o carro ao lado do dele.
_ Bem...- balbucia o jovem, tentando conter a adrenalina que lhe invadia o corpo por estar entrando em desespero...
_ Este lugar é muito perigoso! O que faz aqui?
Para não dizer a verdade, Ricardo alega não estar se sentindo bem, por isso havia parado, aguardando que a momentânea dor de cabeça passasse, para que pudesse prosseguir em sua viagem.
_ Precisa de ajuda? Quer que o escoltemos até sua residência? Tem telefone? Podemos entrar em contato com seus familiares, caso precise...
_ Não, seu guarda! Não! Já estou quase bom! Sério! Dentro de alguns minutos estarei restabelecido e pronto para partir, juro!
Após as explicações, os guardas partem. Ricardo continua trêmulo, amedrontado; olha para todos os cantos como se de algum lugar fosse surgir, como por milagre, a figura desafiadora da Internet, alguém que gostaria de ver, ouvir, bater um papo, tomar algumas doses de vinho, trocar carícias, fazer sexo de uma forma inusitada, diferente, gostosa, inesquecível...
Passa a contar os minutos, até que não suporta mais o cansaço e cai no sono. São quase 4 horas da madrugada. Um tiro é disparado...
O pai de Ricardo acorda aos gritos, só pensa no filho que outrora partira. Calçando as chinelas, corre até o quarto do rapaz. Está intocável, vazio...Ricardo ainda não havia retornado da casa do suposto amigo... Um pouco desnorteado pelo sono, grita pelos empregados. Sente, com a certeza que só o amor entre pai e filho pode proporcionar, que algo de mal está acontecendo ao primogênito. Marcos prontifica –se a procurar o rapaz. Pega um dos veículos e sai disparado à caça de Ricardo, como se fosse fácil encontrá-lo nesta que é a quarta maior metrópole do mundo.
Impaciente pela ausência de notícia, Rubens liga para a delegacia do bairro e solicita ajuda. O delegado, doutor Mário Fronteira, informa que nada poderá ser feito no momento porque suas viaturas estão em diligência; assim que retornarem, entrará novamente em contato, para que as descrições visuais do rapaz possam ser colhidas e, após a confecção do retrato-falado, providenciar diligência em sua procura. Por hora, pede calma ao aflito pai.
Longe dali, Ricardo se vê entre a vida e a morte. A polícia troca tiros com uma quadrilha de gatunos que pretendia assaltar uma das joalherias mais tradicionais da região. As balas voam por todos os lados. Os assaltantes, de metralhadora, quase engolem os disparos das pistolas 38 dos defensores da lei. Descontrolado, Ricardo se agacha, na intenção de não ser descoberto pelos presentes.
Um dos ladrões passa correndo por seu veículo, disparando contra um dos policiais, que se esconde atrás de um dos postes que fica rente ao portão de entrada do sambódromo. A gritaria é geral. A vizinhança, apavorada, foge das balas perdidas, escondendo-se debaixo das camas e atrás das portas.
Depois de alguns minutos tensos, a calmaria ressurge! A polícia prende toda a quadrilha.
Já passam das 5h00. Percebendo o clima de paz, o jovem se levanta, olha para os lados, e, antes de partir, belisca o braço direito para ter a certeza de que ainda continua vivo; após a conferência, liga o carro e desaparece dali... Durante a viagem, agradece a Deus por estar inteiro e a salvo.
IV
Sonolento, o sol resiste surgir no horizonte...
Ainda atordoado, Ricardo busca dentro de si a força capaz de mantê-lo concentrado na direção do automóvel, que deixa a rodovia Castelo Branco e adentra a luxuosa Alphaville.
Enquanto conduz o veículo, limpa o rosto por diversas vezes, na tentativa de conter o suor. Ao cruzar a rotatória que termina em frente à sua casa, percebe que os portões da mansão estão escancarados, algo incomum a esta hora da noite, o que reforça sua inquietação.
Estaciona o carro a alguns metros da entrada, abre a porta, olha para todos os lados com atenção redobrada. Como não há ninguém nas redondezas, fecha a porta e caminha devagar até o portão. Suspeita que o local também esteja sendo assaltado. Ao entrar no casarão, sente o corpo gemicar; o coração, disparado, acelera a respiração, fazendo-o transpirar até umeceder a camisa, que está semi-aberta.
Opta por não seguir pela estrada principal, mas pelo corredor lateral do jardim, que desemboca diante da porta de entrada da casa. Antes mesmo de findar o trajeto, nota a presença de uma ambulância, estacionada ao lado da garagem, com as portas escancaradas e o motorista ao volante. Sobressaltado, Ricardo corre, imaginando que seu pai estivesse baleado, vítima de um desses loucos da vida, amantes do dinheiro e do crime.
Invadindo a sala de estar, encontra o pai deitado, com as camisas abertas, sendo atendido por um paramédico e dois auxiliares. Rubens havia enfartado; só não veio a óbito porque a empregada da casa o socorreu logo que os primeiros sintomas o derrubaram, acionando a equipe médica de emergência, que chegara em poucos minutos.
Ao ver o rapaz, D. Maria confidencia, aliviada:
_ Você voltou, menino, graças a Deus! Seu pai não suportaria perdê-lo também!
Com os olhos marejados, o rapaz nada expressa. Antes mesmo que pretendesse se aproximar de seu pai, um dos auxiliares o adverte. Evitar emoções nesses momentos é fundamental! Diante da maré negativa que o abatera, só lhe resta apoiar-se à parede, enquanto os paramédicos terminam o atendimento. O choro ameaça-lhe tomar a face, mas resistente, trata de evitá-lo; afinal, em que as lágrimas ajudar-lhe-iam? Só trariam mais desconforto ao tenso presente, o que poderia alimentar a angústia de doutor Rubens e levá-lo à morte.
Enquanto a equipe realizava o trabalho, Ricardo, com o corpo possuído pela inconstância sentimental, deixa-se ser atraído para o poço das lembranças mortais, no centro de sua alma, um lugar denominado Vale das Sombras...
O livro de sua vida reabre-se, as páginas de sua história correm-lhe diante dos olhos, os ponteiros do relógio do tempo giram para lá e para cá, como se estivessem endoidecidos...E lá, em meio a um lodaçal de pensamentos macabros, estava sua mãe, a vestir-se com um lindo penhoar vermelho; gotículas de um fino perfume francês lhe caem sobre o corpo. Preparava-se para receber o esposo, o ilustre senhor Rubens, a quem amava em demasia...
A tosse do pequeno Ricardo, que está no quarto ao lado, a faz desistir dos preparativos para dar atenção ao filho. Ao entrar no aposento, nota que a aura fria da noite invade o quarto pela janela, atingindo o garoto, que está descoberto. Pensa acender o abajur, mas desiste da idéia por receio de que ele acorde; prefere fechar as janelas no escuro.
Raios iluminam o céu, trovões são ouvidos à distância; choverá logo!
Nathália observa a mudança de tempo e clima, arfa como se tivesse pensando em algo como “teremos uma noite difícil”, depois cerra as venezianas e beija Ricardo no rosto.
Virando-se para a porta, percebe uma figura sinistra, que está com um punhal na mão direita. Sua face está oculta por uma máscara negra assim como se encontrava o céu naquele momento.
A chuva cai... Os pedaços de granizo, atirados do céu, abafam os gritos da mulher, permitindo que o selvagem a segure pela garganta e a encoste contra a parede. Com o punhal, rasga-lhe o penhoar e se atira ao seu pescoço com a mesma violência de um vampiro a procura de sangue. Dominada, ela apenas chora, enquanto assiste ao estranho regozijar-se de seu corpo.
O rapaz prende a mulher entre os fortes braços e realiza o estupro. Nathália geme de dor, o sangue de seu ventre desce pelo corpo do rapaz e mancha o carpete. Chove cada vez mais, como se as gotículas da chuva fossem as lágrimas dos anjos que se vêem acanhados diante do horrendo crime.
Ao perceber que a criança acordara, o criminoso joga a mulher contra uma poltrona, e parte direção ao pequeno, decidido a não deixar testemunha. Quase sem forças, Nathália se levanta e pula no pescoço do homem, que lhe revida a agressão com uma punhalada no peito. O menino continua inerte, na condição de espectador daquela selvageria.
O desconhecido almeja terminar o que já deveria ter iniciado. Ao levantar o punhal para desferir o golpe que poria fim a vida do pequeno, Nathália o surpreende, golpeando-o nas costas com uma pequena tesoura, retirada de uma das gavetas da cômoda. Irado, o homem afasta-se do berço e concentra-se na mulher, que recebe outra punhalada, dessa vez, no estômago. Quando iria dar o golpe de misericórdia, a porta se abre...
_ Ricardo! Ricardo!- grita Maria, vendo que ele se encontrava mergulhado em um mundo distante.
_ MÃE? É VOCÊ?- grita o rapaz. É VOCÊ?
_ Ricardo! Sou eu, Maria! Dona Maria!- Insiste a mulher, amedrontada por vê-lo naquele tipo de transe.
_ DON...DONA MA-RIA! É... É MESMO A SENHORA??? – diz o rapaz, com a respiração descompassada e os olhos salientes, como se quisessem saltar da face.
_ Sim! Estou aqui, meu menino! O que houve com você?- pergunta comovida.
_ ONDE ESTÁ MEU PAI? ELE MORREU? ELE MORREU?
_ Não, meu amor, ele está bem!
_ E onde ele está?
_ No jardim...
_ Vou vê-lo...- diz Ricardo, agora mais calmo.
Abrindo a porta, vê os enfermeiros levantarem a maca e a colocarem na ambulância.
Quando ia sair, dona Maria o segura pelo braço e diz:
_ Você não pode vê-lo desse jeito, ele ficará mais nervoso e poderá ter uma recaída... Deixe para depois!
_ Mas...mas... o que ele tem?
_ Sentiu sua falta!
_ Eu quase o matei também?- pergunta, cobrindo o rosto com as mãos. Já não bastava minha mãe?
_ Você não matou sua mãe! Pare com isso! Por favor!
_ Quem nos acompanhará até ao hospital?- questiona o paramédico.
_ Vá, Dona Maria! Eu não estou em condições mesmo...se for junto, poderei deixá-lo agoniado, como a senhora mesmo disse...
A boa mulher atende ao pedido do garoto, pega uma manta, joga-a contra o corpo, entra na ambulância e parte para um dos hospitais da região. O veículo é acompanhado até o portão de saída do casarão pelos olhos irrequietos de Ricardo, que só agora percebe o quanto fora tolo em acreditar na fala de um sinistro desconhecido; por pouco não perde o pai e a própria vida.
Como que carregado pelos braços da morte, entra novamente na casa. Sobe as escadarias, cujos degraus parecem multiplicados. Acende as luminárias do aposento, olha para o computador e corre em sua direção, na intenção de destruí-lo, pois fora ele o instrumento de sua hipnose.
Com o monitor nas mãos, olha para todos os cantos do quarto, quer escolher o melhor lugar para jogá-lo; sonha vê-lo em pedaços, como agora se encontra sua vida. Mas, incapaz de qualquer ação, senta-se na cama atordoado.
Mais uma vez, por estupidez, quase pôs fim à vida de um de seus pais. Já não bastava ter sido o precursor do acidente que cessara a jovialidade invejável de sua mãe? Meu Deus, quantas desgraças lhe pairam sobre a mente... E tudo isso, por causa de um desejo que lhe correu nas veias, deixando-o cego por alguém que ousou manipular suas fantasias, descontrolar sua libido...
Como poderia se redimir de tal “crime”? Como? Apenas um pedido de perdão poderia apagar os momentos tensos vividos há pouco pelo pai que há anos não consegue enxergar nos olhos por lhe ter tirado a mulher que tanto amava? Como? Um grito de dor ecoa pela casa...
Entrando na mansão, após 4 horas de buscas sem sucesso, Marcos assusta-se com o grito, deixa o carro ali mesmo no pátio e invade a casa na condição de um amigo. Seguindo os soluços, encontra o quarto de Ricardo e nele o rapaz, entregue ao chão, chorando como uma criança!
Vendo-o, pergunta o motorista, num misto de comoção e surpresa:
_ Seu Ricardo? Misericórdia! Ainda bem que nada lhe aconteceu...
Ao ouvir a voz do chofer, Ricardo se levanta e o abraça, dizendo, em meio às lágrimas que lhe marcavam a face:
_ Marcos, meu amigo! Ainda bem que chegou...
Algumas horas depois...
O sol já está quase no centro de suas atividades quando o rapaz chega à clinica médica onde está hospitalizado o doutor Rubens. Informa-se na recepção do número do leito, entra no elevador e aperta a tecla de número oito. Apoiado às paredes de aço, segue o trajeto na companhia de uma jovem enfermeira e de uma senhora idosa, que se encontra numa cadeira de rodas.
Ao tentar visualizá-lo com os grandes óculos, a senhora, balbuciando, pergunta:
_ Você está triste, menino?
Voltando-se para a mulher, Ricardo se perde na fria coloração de seus olhos, a ponto de não conseguir formar uma só sílaba.
_Você está triste, menino? –insiste a mulher.
_ Sim! Muito triste...
_ Não fique assim... Seja forte, porque o mundo só respeita aqueles que o dominam; criaturas insignificantes e dignas de pena, como meu filho, são dominadas e esquecidas pelo tempo...
_Como assim? O que quer dizer?
_Eu acabei de perder um filho em um acidente de carro! Morreu porque era fraco...
_ Não diga isso, dona Esmeralda!- adverte a enfermeira. Geraldo morreu porque seu tempo na terra já havia expirado...
_ Fraco? De que modo? - questiona Ricardo.
_ Ele não era homem suficiente para assumir suas convicções... Era fraco, uma prole sem identidade, alienada de sua origem, um erro da natureza...- confidencia-lhe a mulher, numa voz rouca, quase inaudível, alimentada por um ódio descomunal.
_ Eu não a compreendo, senhora! – afirma, Ricardo, estarrecido pela ira da anciã, mas tentado pela curiosidade.
_ Imagine você...- a mulher interrompe o diálogo para tossir – Eu, uma professora universitária, reconhecida pela elite intelectual do país, mãe de uma aberração da natureza... Como aceitar que um belo rapaz rejeite um corpo feminino para se deleitar das ondas sinuosas de uma espécie do mesmo sexo? O que ele esperava quando me contou? Apoio e compreensão? Como compreender uma anomalia da natureza? E ele, fraco como era, ao invés de gritar, desafiar-me, pegou o carro e se enfiou debaixo de um caminhão... Quanta cretinice!
Horrorizado com a frieza da mulher, Ricardo não diz nada, espera apenas que a porta do elevador se abra...
O jovem afasta-se devagar, não acreditando nas coisas que ouviu naqueles poucos minutos. Parecia que o destino queria lhe pregar uma peça, açoitar-lhe com uma luva de pelica, atormentá-lo ou mesmo queimá-lo na fogueira do tempo...
Conturbado, não consegue ouvir D. Maria chamá-lo. Só atende aos apelos da letargia, que o sufoca com suas garras. Ao sentir a mão da empregada lhe cair sobre os ombros, retorna a si.
_ Ricardo... Ricardo, você está bem? Como está pálido
_ Abrace-me, por favor!
A mulher o recebe nos braços e também se emociona.
_ EU SOU O CULPADO DE TUDO ISSO!- sentencia-se, ao verificar que a porta do elevador havia se fechado e carregado para bem longe aquela sinistra figura.
_ Nada acontece por acaso...Tudo tem uma explicação!- conforta a empregada.
O diálogo é interrompido pela chegada do cardiologista.
_ Como está meu pai? Conseguirá escapar dessa?
_ Dessa e de muitas outras...- responde o médico de meia idade.
_ Graças a Deus!- comemora Maria.
_ O que ele teve doutor? – pergunta Ricardo.
_ Ele enfartou; mas graças a esta senhora, a quem deve dar os parabéns, ele foi socorrido a tempo e não corre mais risco de morte. É um homem muito forte, resistira com bravura, talvez por amar demais sua família...
Ricardo não suporta o remorso e verte-se em lágrimas.
- Acalme-se, garoto, não há mais motivo para chorar; pelo contrário, sorria! Logo terá seu pai de volta. Não é isso que quer?
A tristeza é tamanha que ele não consegue responder.
_Deixe-o, doutor, o senhor Ricardo está muito abalado!
_Compreendo! Só tenho um pedido a lhes fazer.
_Pois não!
_Peço que o poupem de emoções pelos próximos 15 dias. Assim ele se recuperará rapidamente.
_ Sim senhor! Agradecido doutor!- diz a empregada, por repetidas vezes.
_ Sim! Mas não o acordem em hipótese alguma...O repouso é fundamental nesses casos!
_ Não nos esqueceremos disso, doutor! E obrigado mais uma vez!
Entrando no quarto, Ricardo sente um aperto no coração ao ver o pai monitorado por diversos equipamentos. Quer se aproximar, mas as pernas o proíbem. Com as mãos, tapa a boca, para que o soluço não venha a perturbar a convalescença daquele que tanto o ama.
_ Tenha calma! O pior já passou! – sussurra Maria, limpando-lhe as lágrimas.
_ Será que ele um dia me perdoará D. Maria?
V
O telefone toca na mansão...
D. Maria levanta-se de uma cadeira que está entre a cozinha e o corredor e dirige-se à sala de estar na intenção de atendê-lo, quando é advertida pelos olhos de Rubens, que resolve receber a ligação, na esperança de que seja algum funcionário da delegacia do bairro com informações sobre o paradeiro de Ricardo.
_ Pois não...- pergunta o homem, com os lábios trêmulos pela tensão. Aqui é o doutor Rubens, com quem quer falar?
Parada diante do patrão, a empregada rói as unhas, não suporta mais tanta inquietação, almeja que as coisas retornem à calmaria de sempre, por esse motivo, apela aos santos para que auxiliem os policiais na busca pelo jovem que tem como filho. Espera que a ligação seja o sinal de que o céu ouvira os seus apelos e que Ricardo, tão logo esteja de volta, exiba aquele sorriso angelical que ela mesma, ao passar dos anos, jamais deixou de admirar. Perdê-lo seria como se perdesse uma parte de si, tal é o amor que nutre pela criança que hoje é um homem, mas que ainda não deixou de encontrar em seus braços o carinho de mãe, que tão bem o alimentara depois da perda irreparável de Nathália.
_Quem está falando?- exige o doutor, em vias de perder o equilíbrio. Eu não estou entendendo nada...Por favor! Quem está falando? Quem é você? Fale criatura!
_Você não se lembra de mim, Rubens? Como pode ter esquecido aquele que o fez feliz, ao aquecê-lo com seu corpo por noites e noites, naquele quarto...
Ao identificar o dono daquela voz um tanto fanhosa, um arrepio percorre a espinha do patriarca da família Médici, que apavorado, procura refúgio nos cantos da sala, quer que sua prosa seja mantida no mais absoluto segredo, o que desperta a atenção de Maria, que vê naquele gesto uma possibilidade, agora não mais tão remota, de que Ricardo esteja mesmo morto e o seu corpo estirado em algum beco da cidade. Com o terço em mãos, a mulher dobra as orações, apesar de já não mais acreditar reencontrar o garoto com vida.
_O que você quer?- indaga o doutor, numa voz quase inaudível.
_ Nossa, quase não ouço sua voz...Parece que o medo apossou-se de sua coragem de outrora, fazendo-a refém de uma história pérfida, que para o bem da humanidade, só eu tenho acesso. O passado, aquele que esconde as incertezas de um homem moldado pelo mais abominável dos prazeres, é o reflexo do ser cruel que habita o submundo de sua alma!
_O que você quer? Fale... É dinheiro? Se for, dê o seu preço...
_...pelo meu silêncio? Olha que é caro, muito caro!.. – gargalha o estranho.
_Diga que eu pago!- ordena o doutor, deixando o desconhecido perceber sua inquietação.
_É impressão minha ou você está com medo de mim? Onde está aquele homem que dizia estar acima do bem e do mal; não pedia, mandava? Dá-me vontade de gargalhar só em pensar como devem estar esses seus belos olhos castanhos, diante de um sentimento tão excitante quanto o MEDO!
_Como descobriu meu telefone? Como me encontrou? Fale...
Respostas não são obtidas às perguntas, causando mais desconforto ao homem, que, intolerando a tensão, leva a mão ao coração na expectativa de que a dor que lhe corre o corpo seja contida.
_Fale! – insta, mais uma vez, o doutor, que num gesto de desespero, desabotoa alguns botões do pijama para que o ar invada os pulmões com mais facilidade.
O que se ouve como resposta é uma gargalhada macabra.
_Ó Rubens, tu continuas o mesmo tolo de sempre, como gostava de dizer Nathália, a mãe de seu filho, que você tratou de eliminar naquele acidente encomendado...
_ O...o que você está dizendo? Eu-eu não estou entendendo! – suplica o doutor, cujo corpo alquebrado, era sinal de que estava diante do abismo da sorte.
_EU SEI DE TUDO MEU AMOR! TUDO!- profere a sinistra criatura, numa voz impostada, estridente e assustadora.
_Você...pare com isso!- implora Rubens, apoiando-se à parede, na tentativa de manter-se em pé. Sei que você quer dinheiro, basta dizer o valor, que em poucos minutos estará em sua conta...
_Você sabe que não me interesso por seu dinheiro; quero apenas vingança! Meu nome fora maculado por sua fraqueza e a forma de reparar todo o dano que me causara é levando à morte a única cria que a pobre Nathália lhe presenteara...
_COMO? DO QUE VOCÊ ESTÁ FALANDO? CRIA? QUE CRIA? AH NÃO, VOCÊ ESTÁ SE REFERINDO AO MEU FILHO RICARDO? O QUE FEZ COM ELE? FAAAAAAAALE! FAAAAAALE CRETINO!!!!!!!!- brada o doutor, abandonando de vez a discrição.
Maria, que à distância o assistia, entrega-se às lágrimas.
_Este é o Rubens que conheço! Finalmente a máscara de bom moço cai!
_FAAAAAAAAAALE!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! O QUE FEZ COM MEU FILHO??? – reclama o homem, em prantos.
_SEU FILHO CARREGA NAS VEIAS O MESMO VÍRUS QUE LHE ATORMENTA HÁ DÉCADAS, PORTANTO, NÃO SERÁ NADA DIFÍCIL CONDUZI-LO À MORTE! –escarnece o desconhecido.
_Vo-você está men-mentindo... Meu fi-filho não leva este mal no san-sangue... Por favor, pare... deixe-o em pa-paz...o seu pro-problema é co-comigo...
_ELE SERÁ O CORDEIRO, CUJO SANGUE PURIFICARÁ MEU ESPÍRITO, DEVOLVENDO-LHE O BRILHO E A BELEZA, QUE VOCÊ TRATOU DE SACRIFICAR!!!!!!!!!!!
_NÃÃÃOOOOOOOOOO!!!!!!!!
VI
As lembranças são tão cruéis que Rubens não resiste. O equipamento que o monitora apita, indicando o agravamento de seu estado. Ao ouvir o barulho, Maria grita por socorro e um batalhão de médicos e enfermeiros atendem ao pedido e ali mesmo no quarto, tentam reanimá-lo.
Desnorteada, Maria desce à recepção e solicita que Ricardo seja avisado do estado em que seu pai se encontra. Após inúmeras tentativas, a telefonista desiste, o celular de Ricardo encontra-se desligado e na mansão, segundo palavras do jardineiro, ele ainda não havia chegado.
Maria agradece, afasta-se até a um sofá e chora. Não agüenta ver a família que tanto preza viver tantas desgraças.
A limusine, que o conduz, percorre a Castelo Branco.
Ricardo acompanha a paisagem com pouco interesse.
_Marcos, pare um pouco, não estou bem...- solicita o rapaz, com a mão a apalpar o estômago, como se estivesse sentindo dor.
_O que o senhor tem? Quer que eu o leve até a um hospital?
_Nada de hospital! E não me pronuncie mais essa palavra, ouviu? Só quero parar um pouco, não estou me sentindo muito bem. Toda essa situação acabará por me surtar...
_Mas...mas senhor...estamos em plena Castelo Branco, aqui é difícil parar, o trânsito é intenso...
_Pare Marcos! – ordena o jovem.
_Sim senhor! – responde, contrariado, o empregado.
Ricardo não espera Marcos abrir sua porta; ele mesmo o faz. Caminha uns três metros, pára, olha para os lados como se estivesse à procura de algo, depois aperta o estômago e vomita na roupa todo o café tomado no hospital.
_Marcos, dê-me sua camisa!- exige Ricardo, jogando fora sua camiseta.
O serviçal, ainda que reticente, atende ao pedido.
_Quer que eu chame um médico?
_Não...eu estou bem...
Assim que a náusea cessa, Ricardo é conduzido por Marcos até o veículo.
Ao entrar, agradece ao motorista, que lhe fecha a porta e se afasta. Mesmo indisposto, não pode deixar de notar algumas cicatrizes nas costas do empregado. Acomoda-se no banco e trata de adormecer, não dando importância ao caso.
O relógio da sala de estar da mansão anuncia ser 17h00...
Aparentemente livre da indisposição, Ricardo, ao retirar-se do automóvel, devolve a camisa. Com a peça entre as mãos, o motorista apenas sorri, abre a porta do veículo, vira-se de costas para o rapaz - que revê as estranhas cicatrizes, liga o carro e o conduz à garagem.
Entrando na casa, Ricardo resolve primeiro ir à cozinha antes de subir para o quarto, precisa comer algo, está faminto. Para chegar à cozinha é preciso passar pela sala de estar e pelo salão de música. Cabisbaixo, atravessa o grande corredor que separa o rol de entrada da sala de estar. Diante da porta que dá acesso ao cômodo em que Rubens infartara, ele pára...Uma estranha sensação o invade... Parece ver e ouvir o pai gritá-lo por socorro! Tudo é tão real que até mesmo os pêlos de seus braços se arrepiam. Coça a cabeça como se não soubesse o que fazer para que aquelas imagens pudessem ser enterradas de vez no baú no tempo, de onde jamais deveriam ter saltado.
Fechando os olhos enquanto as mãos são contraídas até ficarem marcadas pela cor do sangue, pede a si mesmo que se acalme, tudo aquilo não é mais real; deixara de ser há algumas horas e não mais voltariam à vida, se dependesse dele...
Na garagem, Marcos analisa o furo de uma bala na lataria do carro usado pelo rapaz na noite passada. Tudo leva a crer que só não morreu por sorte. O buraco estava próximo à porta do motorista; alguns palmos à frente, teria sido fatal.
_ Meu deus, o que terá seu Ricardo aprontado para receber um presente como esse?- indaga ao vento, horrorizado.
Dirige-se ao casarão depois de fechar a garagem. Neste exato momento, Ricardo rompe as amarras da agonia que o haviam tentado a desistir da empreitada e entra na sala.
_Então chegou? – pergunta uma voz fina e contida de um ódio letal ao ver o rapaz.
_Marymel?! O que faz aqui?- pergunta, surpreso, voltando-se para a garota, que está entre o sofá e uma mesa de canto, no lado oposto à entrada.
Com um cigarro entre os dedos e olhos contornados de um negro que destacava o verde da íris, Marymel, visivelmente alterada, dá alguns passos em direção ao rapaz e pára diante de uma tela do mago espanhol da pintura cerâmica, Manolo Safont.
Enquanto corre os olhos pela “Nebulosa” de Safont – um provável buraco cósmico, de um vermelho que se mescla a um marrom quase cinza, assim como o fosso que sugará toda a essência maligna de uma geração - intima:
_Por que fez isso comigo? Sempre fui sua criada sexual e jamais me neguei a um capricho seu...Bastava estalar os dedos para que eu, feito uma cachorrinha vira-lata, corresse para seus braços e lhe entregasse todos os meus segredos e devaneios...Mas, você nunca me valorizou, não é? Por isso resolveu brincar com minha imagem, vendendo-a como se fosse a de uma meretriz...Se você gosta mesmo de homens, o problema é seu...
_Do que você está falando? Que história é essa de que eu gosto de homens?- interrompe, aterrorizado, o rapaz, aproximando-se da moça.
_...mas dizer que a minha carne é insossa, apesar de estar acessível a qualquer bolso com um mínimo de grana, é demais! – continua Marymel, como se não tivesse ouvido o questionamento de Ricardo.
_ Que história é essa de que eu gosto de homens? Que barbárie é essa que me joga à face? Por acaso bebeu, sua ordinária? – brada o garoto, pegando-a pelo braço, num descontrole que emerge de dentro da alma e se apresenta por meio dos nervos que estão à beira de uma explosão.
_Você não sabe mesmo, senhor Ricardo Médici? – desafia a mulher, soltando-se das garras do novo inimigo.
_Não, eu não sei! Pois fale, o que você quer dizer com esse papo sem pé nem cabeça?
De costas para ele, a garota emudece.
_FALE..! EU EXIJO...
_VOCE EXIGE O QUÊ? – berra a garota, virando para ele. QUEM É VOCÊ PARA EXIGIR ALGUMA COISA? DEPOIS DO QUE ME FEZ AINDA É CAPAZ DE SE MANTER NESTA ARROGÂNCIA, COMO SE FOSSE O DONO DO MUNDO? VOCÊ NÃO PASSA DE UM NADA, RICARDO! DE UM NADA!
_Quem você pensa que é para falar assim comigo? Sua...
_SUA...SUA...O QUÊ? Veado de uma figa!
_EU NÃO SOU VEADO! NÃO SOU! – grita o garoto, agarrando-a pelo pescoço e prensando-a contra a parede. EU NÃO SOU VEADO! NÃO SOU!..
A fúria de Ricardo é alimentada pelas palavras selvagens daquela anciã, cujo filho, homossexual, era visto como uma aberração da natureza. Por instantes, é como se ele fosse o filho morto e Marymel a velha, numa troca de papéis fantástica, engendrada pelo fato de ter sua identidade vasculhada, seus mistérios arrotados e suas fraquezas, ainda que não totalmente confirmadas , manipuladas pelas línguas maldosas da sociedade.
_Meu Deus, o que está acontecendo aqui, seu Ricardo?- reclama, horrorizado o motorista, ao ser atraído à sala pela gritaria. Solte-a senão o senhor vai matá-la...
Percebendo que o rapaz não a libertaria, Marcos tenta puxá-lo pelos braços, o problema é que Ricardo é bem mais alto que ele e muito mais forte.
_Solte-a, seu Ricardo, pelo amor de Deus!- roga o empregado, tentando afastá-lo da moça, cujo rosto está roxeado.
Lutando para continuar viva, Marymel se contorce, enquanto seus olhos lacrimejam. Numa última tentativa para poder se libertar, a garota dá um soco no estômago de Ricardo, que ao senti-lo, acaba por soltá-la.
_Vá daqui, dona! – pede, todo molhado pelo suor, o serviçal.
_NÃO SE META! POBRE COMO VOCÊ EU TENHO NOJO! – adverte a ensandecida garota, enquanto acaricia o pescoço, tentando conter a dor. E QUANTO A VOCÊ, RICARDO, NUNCA MAIS ESCARNEÇA DE MEU NOME, NUNCA MAIS DEBOCHE DE MINHA INGENUIDADE, NUNCA MAIS ZOMBE DE MINHA CARNE, NUNCA MAIS SE DIRIJA A MIM, NUNCA MAIS CRUZE O MEU CAMINHO, PORQUE SE O FIZER, JURO POR TUDO O QUANTO É MAIS SAGRADO, QUE O MATO!
_Pare, moça! Vá daqui antes que ele...
_ANTES QUE O QUÊ, SEU PARALÍTICO? – debocha, a mulher, após um passeio visual pelas pernas do rapaz.
_A senhora é louca!- sentencia Marcos.
_Louco é o senhor de andar com esse sujeito, se ele resolve atacá-lo com seus beijos estonteantes e sua prosa de deixar mole qualquer corpo, coitado!...Aliás – volta-se para o rapaz – Ricardo, qual sua preferência: você é ativo ou passivo? – zomba a garota para surpresa do empregado, que não se contendo, olha para o patrão com certo repúdio e descrença.
Ricardo mantém-na sob a mira dos olhos que se encontram injetados de cólera, mesmo sem ter o fôlego regressado à normalidade. Está fora de si e é bem capaz de matar .
_Vá daqui moça! - implora o serviçal.
_Eu irei, mas antes, vou reavivar a memória desse gay enrustido...
Ao ouvir a ofensa, Ricardo parte para estrangulá-la, sendo impedido pelo motorista, que se põe entre os dois.
_SE DISSER MAIS UMA VEZ QUE SOU VEADO, EU ACABO COM SUA VIDA, OUVIU? – decreta o rapaz, com a saliva lhe descendo pelo pescoço.
_ E não é...? – ironiza a garota, jogando-lhe algumas folhas, que agarradas no ar, acabam por atrair a atenção do rapaz, derrubando-o, psicologicamente.. Veja, você mesmo, o que foi capaz de fazer para arruinar a minha vida! Isso não irá ficar assim, Ricardo! Logo ouvirá novamente meu nome nem que seja momentos antes de se despedir desse mundo... – profere a garota, agora em prantos, enquanto é despejada da casa pelo serviçal, que vê no momento, uma rara oportunidade de se livrar dos tentáculos corrosivos de Marymel.
O estopim de toda essa violência, as tais folhas, era uma sinopse bem elaborada de como o rapaz amava a garota – fotos coloridas de ambos praticando o sexo, inclusive em posições inusitadas, ilustravam o documento - e procurava a companhia de homossexuais altas horas da noite, horário em que saía do armário e transformava-se num Ricardo desconhecido pela sociedade paulistana, acostumada a tratá-lo como o “terror das ninfetas de Alphaville”.
Uma segunda página trazia a foto ampliada do rapaz em frente ao Anhembi, acompanhado de dois homossexuais, na noite em que marcara de se encontrar com o Desbravador.
Na página seguinte, o tiro de misericórdia:
“Sou rico, onipotente, dono do Céu e da Terra,
do pecado e da virtude, do prazer e do ópio...
Tenho a mulher que quero, toda virgem ou
consumida que o dinheiro pode me dar...
Tenho Marymel, a infeliz que toda São Paulo deseja
mas que pouquíssimos bolsos podem bancar...
Uma mulher, apesar de bonita, insossa; e transar com ela é como vasculhar as entranhas de um cadáver; talvez por eu ser bicha, gostar de garotos e por eles fazer qualquer loucura, inclusive correr todos os perigos da noite para agarrar o primeiro que passar por mim e me fazer alucinado até gozar...
Duas faces de um Ricardo que a socialite paulistana imagina ser o terror das garotas, quando, no entanto, não passa de um cobiçado prato da desvairada paulicéia gay...”
Ricardo Médici
Para finalizar, uma quarta página trazia os endereços dos e-mails que o haviam recebido: passavam dos milhares...
Furioso, passa a rasgar as folhas, enquanto denuncia aos quatro ventos:
_Foi ele...O Desbravador de Identidades!!! Eu tenho certeza... foi ele... aquele desgraçado me paga! Juro, vou caçá-lo até o fim de meus dias!!!
_Seu Ricardo: gay?! Quem diria, mais um nesta família! Ninguém vai acreditar quando eu contar!..- comenta consigo mesmo o serviçal, ao ver o carro da garota cruzar o portão de saída, enquanto caminha para atender ao telefone, que toca em desespero...
VII
A mão direita está estirada sobre a mesa do computador enquanto a esquerda segura um copo de cristal com whyski. Os poucos cabelos esvoaçam com o vento que vem das brechas da janela. A iluminação é precária, mantida pela tela do computador, que pisca, volta ou outra, prestes a queimar. Os móveis aparentam passar de anos, tanto que a cama é apoiada sobre tijolos. O local parece sujo, o chão de um verniz gasto, as paredes rabiscadas com nomes, muitos nomes, todos com cores distintas, como se cada cor atribuída contivesse a essência e a história de seus respectivos donos. Recortes de jornais estavam por todos os cantos; alguns datavam de 1989, ano em que Lula enfrentara Collor, o dito rei dos marajás, nas urnas de todo o país. Era a primeira eleição democrática após 20 anos de ditadura.
Em uma das fotos era possível identificar o doutor Rubens Médici na companhia das maiores personalidades da década de 80. Na euforia da era colorida, ele era flagrado fazendo campanha gratuita a um dos presidenciáveis. Numa outra, já com texto menor e fotografia em preto e branco, encontrava-se Nathália e Ricardo. Estavam num parque de diversões, de mãos dadas, sorrindo, como se o fôlego da vida nunca lhes fosse faltar; a celestialidade daquela imagem impressionava! A jovem senhora Médici, por obra do destino, estaria morta dias depois, vitimada por um acidente, até hoje, inexplicável.
No velório, o “bondoso” marido, debruçado sobre o caixão, protagonizava uma gigantesca reportagem, que pregada acima da cama, era motivo de adoração. Mas a bizarrice não pára por aí, sob a imagem de um Rubens abatido, conduzido às lágrimas de mártir, havia o desenho de um chifre. E naquela fotografia o tal sujeito se perdia enquanto bebericava o whisky. Seus olhos, de um negrume de recear, pareciam dizer “Venha a mim, meu senhor!”.
O silêncio era macabro, estava-se diante de uma cova aberta, com os corpos expostos às lembranças – os urubus da eternidade. O relógio, no canto da cama, apita. São 18h00, hora em que as almas levantam de seus becos e saem à procura de corpos para se alojarem; hora em que figuras sinistras - como aquele sujeito - acordam para a maldade e fazem da própria existência uma ponte ao inferno. Encontrando a figura de Ricardo, com a idade atual, agarrada ao corpo de Marymel, numa das recordações da festa dedicada aos 22 anos de uma das herdeiras da família Marcondes, o sujeito gargalha. O deboche só é cessado quando a imagem de Nathália e o garoto é reencontrada.
Levantando-se da cadeira com o apoio de uma muleta, aproxima-se da fotografia. Perto, e com os olhos injetados de cólera, solta ao vento:
_ Eu sempre te odiei! Sempre!
A porta do quarto se abre, a luz dizima a escuridão, os anjos correm pelo mausoléu, os demônios desaparecem, sobrando apenas o estranho, que chora, agarrado ao recorte. Vendo-o, naquele estado, uma jovem senhora, de cabelos brancos, lisos e amarrados com uma tira de chita, suplica:
_ O que há, filho? Mamãe está aqui...
_SAIA DAQUI, VELHA! – grita o rapaz, prensando a fotografia entre os dedos, rasgando-a em pedacinhos. SAIA DAQUI! VAAAAMOSSS!
_Filho...você precisa de remédios, vim trazer... Por favor! O que há? Quer que eu chame uma ambulância? Não está se sentindo bem?
_EU JÁ LHE DISSE, VELHA MALDITA, SAIA DAQUI ! ANTES QUE EU RESOLVA BEBER O SEU SANGUE E COMER SUA CARNE, ASSIM COMO FAÇO COM OS PEDAÇOS DESTE JORNAL... – fora de si, mastiga cada pedaço do recorte com o mesmo prazer de estar degustando uma boa carne.
Assustada, a mulher se retira.
Novamente só, ele cospe os papéis. Não acredita ter chegado tão perto e ainda não ter cumprido sua vingança. Sua vida está por um triz, tem pouco tempo até que o último grão se esvaia da ampulheta e lhe faça figura deletada deste planeta. Precisa ser mais rápido, exterminar de vez a família que o conduziu a esta existência inútil.
Pretendia ir ao toalete, quando ouve o sinal de que um de seus contatos está on-line. De um salto, volta-se para o micro, é quando percebe que o dono do nick “Gostoso e Eterno” está à sua procura. Possuído por uma força monstruosa - advinda de algum beco de seu âmago - ele assume uma personalidade poderosa, onipotente, suprema no tocante aos sentimentos; aquela figura apática, fragilizada pela doença, incapaz de amar e de ser amado, foi deixada para trás.
A força lhe toma os músculos, os olhos brilham, a boca deixa de salivar, o cansaço vira pó. Um novo ser está diante da tela, pronto para hipnotizar e fazer-se hipnotizado, dominar e ser dominado...A figura onírica e absoluta do “DESBRAVADOR DE IDENTIDADES”, assim como Zeus, o deus grego, brilha no topo do mundo...
_VOCÊ DESTRUIU MINHA VIDA...POR QUE FEZ ISSO? DESGRAÇADO! – berra Ricardo, transtornado.
_Eu? Do que está falando, caro amigo? Jamais faria isso com uma pessoa que tanto estimo...
_Pare com isso! Você é um monstro! Por que distribuiu fotos minhas com Marymel e com aqueles homossexuais? O que está ganhando com isso, seu infeliz? O quê? Você quer dinheiro? Se for, fale, quanto... qual é o seu preço? Fale! FALLLLLLLEEEEEEE!
_ Eu não tenho preço! – gargalha o Desbravador.
_Você é doente! Juro, se o encontrar, é um homem morto.
_Morrer, EU? Eu já sou morto! – satiriza o maldoso senhor dos enigmas.
_COMO?- pergunta, perplexo, o rapaz. O que diz?
_ O único que morrerá aqui será você e com um belo tiro na nuca, tudo transmitido ao vivo, para mais de 12 milhões de pessoas...Será um Big Brother no estilo trash...Eheheheheh!
“Santo Deus!” – exclama o garoto com os olhos atordoados. Com quem fui me meter? Com quem?- Cabisbaixo, a face é banhada pelas lágrimas.
_Como foi sua noite, querido amigo? Teve muito medo dos gays? Eles não mordem, aliás, só se forem pagos e dinheiro, pelo que eu saiba, não lhe falta...- debocha o intruso de personalidades.
_ Você estava lá...eu sabia...aquelas fotos não foram tiradas por acaso; era você...mas por quê? Por que fazer isso se o objetivo era nos conhecer, talvez passar a noite juntos, curtir um ao outro, ser feliz, se é que existe mesmo a felicidade entre seres do mesmo sexo? Por que transformou fantasia em pesadelo? Por que transformou a vida de um jovem em chacota na boca do povo? O que ganhou com isso? O quê? Só conseguiu trazer tristeza e desespero à vida de uma família que jamais lhe fizera mal...Nunca!
Em prantos, Ricardo se afasta, e manipulado por uma dessas crises emocionais que transformam o ser humano num animal não-domesticável, ele quebra a golpes a mesa do computador, desconectando a cpu do monitor, que entra em curto ao encontrar o chão.
O Desbravador, desesperado, grita, procurando a figura de Ricardo, que não mais se encontra ali. Corre por outras salas e observa cada novo visitante na expectativa de poder rever seu eterno e gostoso garoto. Trêmulo, bebe o último gole de whisky, enquanto esmurra a própria palma da mão.
_Cadê ele? Cadê? Ele não pode me deixar aqui sozinho...Não pode! Preciso dele...preciso...PRECISO DELE!
A máscara caíra de novo, o Desbravador de Identidades já não mais existia; o que estava à frente eram os restos de um ser que ousou ser o que jamais fora: ONIPOTENTE!
A camisa, encharcada, evidencia a anormalidade com que trabalha seu corpo. A respiração, dificultada por uma tosse surgida de ímpeto, joga-o contra o chão. Precisa de remédio, seus últimos grãos estão passando pela ampulheta... Bate o pé contra a parede, na esperança de que sua mãe o ouvisse e pudesse socorrê-lo, tirando-o daquela angústia, se é que era possível!
A porta se abre... Caído ao lado da cama, com a face avermelhada e os olhos salientes, estava aquele que se dizia o senhor dos tempos, o deus dos enigmas, o desbravador das personalidades mais íntimas... Pobre criatura!
Um grito é ecoado para além dos prédios vizinhos...
VIII
Os últimos raios de sol são afugentados pelas garras da noite... A cidade está enlouquecida, o trânsito caótico, a população aglomerada nos pontos de ônibus; o moto-táxi brinca com os veículos e, num zigue-zague de causar enjôo, cruza o infinito. Painéis com promoções de grandes magazines reluzem...
A São Paulo do dia adormece com os derradeiros raios solares e uma outra, exuberante, de uma essência que vicia, de um brilho que hipnotiza, resplandece no horizonte, e como deusa, desfila pela imaginação capitalista, fazendo morada nas almas mais ingênuas...
O vento gelado desce do céu e corre a Castelo Branco, caminho obrigatório àqueles que se atrevem a desbravar as minas da luxúria, que eclodem do centro paulistano – o paraíso da perdição.
Um botão no painel do carro é acionado, o vidro sobe, o frio é contido. A bela Marymel está protegida das intempéries do tempo, mas covardemente golpeada pelas maldades de um homem que imaginava ter sob domínio.
A mão direita guia o veículo enquanto a esquerda limpa-lhe as lágrimas. A imagem de um Ricardo que tanto amou não lhe sai da mente... Como deixar de querer alguém que tantos prazeres lhe causa? Como deixar de amar uma pessoa que tantos sentimentos lhe inspira? Como? Perguntas sem respostas.
O que mesmo havia de concreto era aquele maldito e-mail, que metade de São Paulo, para sua infelicidade, havia recebido, e contra o que nele estava registrado, todo argumento, por melhor que fosse, seria derrubado.
Conhecia o Ricardo dos comprazeres femininos; o arrogante senhor das noites metropolitanas; o inconstante herdeiro de uma das fortunas mais cobiçadas da alta sociedade, que jamais se contentava com as carícias de uma única mulher; já o Ricardo de todos os homens, de uma perversidade deveras surpreendente, que passava o fim de noite na companhia de garotos de programa; que fazia da exibição de suas namoradas, máscaras de suas reais pretensões, este permanecia uma incógnita.
Marymel não acredita ter feito parte de uma encenação maquiavélica, em que sua condição sexual servira de disfarce a uma personagem infeliz, que encarcerada no âmago de Ricardo, às vezes se rebela, na tentativa inocente de reaver o corpo e a mente para a qual fora criada, por obra do acaso, hoje habitada por uma outra figura, sinistra, assim como os são seus mais íntimos desejos.
Atormentada, planeja ir ao centro de São Paulo, precisa desabafar e nada melhor do que nos ombros de uma grande amiga. Para isso, pretende deixar a Castelo, entrar na Marginal Pinheiros e seguir pela Av. Rebouças.
A lua já é vista em seu trono, no entanto, os faróis do carro permanecem apagados, mesmo depois de vários motoristas alertarem a garota.
Letárgica, a ex de Ricardo ignora o movimento, parece estar em um outro planeta, distante da vil realidade... Nada consegue trazê-la de volta à razão.
O veículo está no centro da pista, a uma velocidade baixa, causando irritação nos demais motoristas, que impossibilitados de fazerem a ultrapassagem, buzinam insistentemente. Um caminhão arrisca pela direita, não sendo percebido pela moça, que entregue ainda ao pranto, profere blasfêmias contra aquele que ousou amar de verdade.
O carro é levado para a quarta pista, logo está na segunda...O tráfego é intenso! O som das buzinas é ouvido à distância! As luzes que piscam dos automóveis, ao se confrontarem, parecem formar letras, palavras, frases inteiras do tipo “Saia da frente, sua louca!” – mas nada disso é capaz de devolver a sanidade a Marymel, que permanece mergulhada em um abismo intrínseco inimaginável.
O celular vibra. A mão direita passa para a esquerda a condução do veículo. O identificador reconhece o número de Ricardo. Marymel estremece. O mundo, reduzido ao capricho de uma desolada patricinha, almeja ir a pique! Toda a atenção é dedicada ao recebimento da ligação, enquanto o carro, desgovernado, é jogado para a terceira pista; um clarão, dezena de vezes mais horripilante que o de um relâmpago, invade o interior do veículo, atraindo a atenção da garota, que sem condições de evitar a colisão com um desses gigantescos ônibus de turismo, apenas grita...
Arremessado contra a mureta que divide a rodovia em sentidos contrários, o carro gira, atinge outros três veículos e explode. A gritaria dos passageiros se confunde com o som das buzinas. Vidros estilhaçados espalham-se pela rodovia...
Sirenes são ouvidas, ambulâncias cortam a frente dos carros, a polícia interdita o trânsito, o congestionamento atinge dimensão jamais vista. Curiosos acorrem ao local, dificultando o trabalho das equipes de resgate.
_O que está acontecendo? Por que paramos? – pergunta Ricardo a Marcos, enquanto digita mais uma vez o número do celular de Marymel.
_Parece que há um acidente logo à frente!
_Mais um... – diz o rapaz, visivelmente alterado. Como faremos para chegar ao hospital? Há outro caminho, Marcos?
_Não senhor! – responde, aproximando a cabeça do vidro para ver se descobre algo mais do possível incidente.
_...E aquela vadia que não me atende? Tenho de convencê-la a ficar do meu lado, dizer à sociedade que tudo aquilo era uma brincadeira de mau gosto, inventada pelos invejosos de plantão, aqueles que vêem em meu sucesso a própria bancarrota pessoal... Assim, quem sabe, o falatório morre pela boca!
Passam-se os minutos, o congestionamento se multiplica. A tragédia atrai a imprensa, que derruba a programação, noticiando o caso direto do local do acidente.
_Não posso ficar aqui! Hum! Preciso chegar logo ao hospital...Sabe lá como estará meu pai! Marcos...
_Pois não!
_Ligue para a empresa, solicite a presença de um helicóptero! Acha que ficarei neste congestionamento por mais quanto tempo? Não bastasse a vida de meu pai estar em jogo, a minha também está...Olhe quantos favelados à beira da rodovia. Se resolverem nos saquear, não sobrarão nem os pêlos dos braços... Sabe como pobre é...Tudo é bom, mesmo aquilo que a ignorância desconhece!
_Senhor, são trabalhadores, empregados das empresas adjacentes, não favelados!
_Trabalhadores? Só se forem empregados do crime... Vamos, tire-me daqui! Chame logo o helicóptero!
Os dedos, nervosos, abrem uma gaveta ao lado, servem-se de um cigarro, levando-o à boca.
_ Logo vi, depois que conheci aquele desgraçado, minha vida virou de ponta cabeça. – diz, já com o cigarro sendo tragado. Quantas coisas - e todas ruins - caíram em minha cabeça em tão curto espaço de tempo! Até parece castigo ou algo do gênero! Mas prometo, encontrarei aquele cretino, nem que demore semanas, meses ou anos, e lhe darei uma surra de ficar na história... Ricardo Médici ressurgirá das cinzas e fará daquele que o ousou desafiar, o tapete por onde pisará ao término da batalha que agora se inicia...Chega de ser bonzinho, de acreditar em deuses e demônios, de pensar viver novas aventuras, o resultado de tudo isso está aí: meu pai à beira da morte; uma namorada enlouquecida por fotos e textos que não traduzem a verdade; uma sociedade espavorida com a suposta dúbia sexualidade de seu astro, o primogênito de uma das famílias mais tradicionais de São Paulo, no caso, EU! Chega! Esse tal Desbravador irá pagar com a própria vida todos os males que tem me feito! Prometo!
_Senhor? – pergunta o motorista, tentando trazer o rapaz à realidade.
_ Sim! Fale...
_O que o senhor está dizendo?
_ Não é de sua conta!
Tenta, mais uma vez, falar com Marymel.
_ Aquela vadia está me desafiando...Se eu a encontrar agora, juro, é uma mulher morta! Acha que pode me chamar de veado e sair ilesa, como se eu fosse um daqueles idiotas que relevam tudo em prol da paz mundial? Coitada! Sou bem pior do que possa imaginar... A escola em que Hitler estudou é apenas uma pré-escola diante da minha. Cadê meu helicóptero, Marcos?
_Não será preciso, senhor! A polícia acaba de liberar duas das quatro pistas...Tenha um pouco de paciência, logo estaremos no hospital...
“_A fila gigantesca começa a se mover. Todos assistem a tragédia com espanto. A colisão deixara um rastro de sangue e morte. O condutor do principal veículo envolvido, ainda não identificado, morreu carbonizado minutos depois da explosão. As demais vítimas, em estado grave, foram levadas para os hospitais da região. Neste momento, os bombeiros tentam resgatar os restos mortais do motorista que ocupava o veículo incendiado...”- anuncia o locutor da Rádio Alphaville.
_Quem será o retardado que causou toda essa tragédia? – pergunta Ricardo, diante do que sobrara do automóvel. Na certa, estava bêbado!
Marcos vira o rosto para o lado oposto ao acidente, sua mente não o poupa, a caixa de Pandora é reaberta:
Lá está Nathália, ferida, estirada sobre o banco de trás, suplicando para que Deus a poupasse, tinha um filho para criar...
O sangue, ainda que comprimido por uma toalha, insistia escapar ao controle e manchar o piso do carro, que nas mãos do motorista, voava pela rodovia.
_Marcos?! Marcos?! Por que suas costas estão ensangüentadas? – pergunta a mulher, ao perceber que o terno do motorista continuava a gotejar mesmo depois de tê-la posto no banco de trás. Marcos!
O chofer prefere o silêncio. Com esforço, a mulher se levanta, corre os olhos ao redor e termina por centralizá-los no rapaz, que gemica, enquanto o sangramento lhe corre o corpo.
_Marcos?! O que acontece? Por que está todo molhado de sangue? Fale...
Ao curvar a cabeça, a mulher enxerga sobre o banco do passageiro a mesma máscara negra há pouco vista naquele quarto...Ao rever as costas do empregado, entende tudo. O medo vence a coragem. O choro lhe cai como bomba...
_ OH, MARCOS, POR QUÊ? POR QUÊ? DEPOIS DE TUDO QUE LHE FIZ...POR QUÊ? – pergunta, numa voz quase inaudível. MEUS DEUS, QUE SINA A MINHA!!!
_ Sin...sinto muito!!! – balbucia o empregado, tentando suportar a dor.
_ Sente muito? Do que está falando, Marcos? – indaga Ricardo, enraivecido. Ande logo com esse carro senão eu assumirei o volante.
_ Desculpe, senhor! – responde, trêmulo, após ser resgatado do fosso dos pesadelos intrínsecos. Eu estava distante...
_ Distante estou eu do hospital! Agora ande logo e pare de conversa...Preciso de mais cigarros!- diz, abrindo novamente a gaveta.
Algumas dezenas de minutos depois...
Uma ambulância fecha a entrada do hospital; a única maneira de Ricardo chegar ao rol de entrada é indo a pé. O rapaz desce do carro e caminha até a recepção enquanto o motorista conduz a limusine ao estacionamento.
_Abra caminho, é uma emergência! – pede, aos berros, uma voz rouca.
Ao virar-se para trás, Ricardo vê sair da ambulância uma figura apática, com poucos cabelos, olhos profundos, braços arroxeados, com picadas por todos os lados... É a verdadeira caricatura de um morto em vida.
A maca passa por Ricardo, acompanhada de perto por uma senhora, possivelmente a mãe, que não se cansa de suplicar aos santos, misericórdia... Uma bomba de oxigênio alimenta o paciente enquanto o soro, nas mãos de uma enfermeira, invade-lhe as veias com voracidade.
A comoção é espelhada na face de todos que assistem ao desespero do paciente de meia idade, cuja força advém da própria fraqueza.
_Coitado! – diz Ricardo, sensibilizado com a luta do homem.
_JESUS CRISTO!!!! – grita Marcos, ainda no carro, ao ouvir o nome de Marymel como a principal vítima da tragédia ocorrida há pouco na rodovia. SEU RICARDO ACABARÁ TAMBÉM ENFARTADO QUANDO SOUBER...
IX
Sentada em um banco ao lado do quarto em que doutor Rubens repousa desde à tarde - após salvar-se de novo infarto, Maria pensa na vida. Acredita estar vivendo os piores dias desde a morte de Nathália, naquele acidente. Por mais que se esforce, não compreende a presença de tantos espíritos negros ao redor desta que é hoje a única família que tem. Só entende uma coisa: o amor que sente por eles. E por esse amor seria capaz de tudo, até mesmo matar e, se necessário, morrer.
Desolada, a mulher se levanta, precisa espairecer um pouco, teve um dia exaustivo e nada melhor que andar para aliviar a tensão. Por esse motivo, solta-se pelo corredor e, como alma penada, passa pelos vários leitos e suas histórias de dor, sem que sua presença se faça percebida.
Com um manto sobre os ombros, a mulher continua sua viagem pelas entranhas ardentes daquele centro de recuperação, e a cada passo dado é como se envelhecesse, perdesse um pouco do brilho, outrora motivador dos desejos instintivos. Bons tempos aqueles em que seus grandes olhos - hoje de um negrume de causar arrepio - pareciam falar, chamar para si os que a almejavam, muitas vezes, por simples capricho.
Mas aquela Maria já não existe mais, teve sua vida cerceada pela triste sina de Nathália, e a ela, sob juramento, prometera assistir ao filho e ao esposo. Precisava fazer isso, era a única forma de pagá-la pelas bondades recebidas.
Cansada, pára diante de um bebedouro, serve-se de um copo, enche-o até o meio e o beberica. Trêmula, deixa um fio de água escapar pelos cantos da boca, molhando a fina camisa de algodão. Passa a mão pelo molhado, é quando percebe que tem de voltar, doutor Rubens precisa de sua atenção.
Joga o copo no cesto e ao pensar em retornar, é dominada por uma canção que se esvai de algum daqueles muitos quartos. Como uma estaca, a música lhe atinge o coração e o esfacela; tem vontade de chorar, mas fraca como estava, nem uma lágrima emite.
E ali permanece a ouvir a canção, cujas letras, em um outro idioma, ascendem-na ao estágio-mor da inércia.
Esquece-se, por instantes, da família Médici, passando a procurar o aposento de onde ecoam as mórbidas palavras que lhe osculam a alma na forma de um arrepio.
Sem perceber, adentra outra ala. Há crianças por todos os lados, mulheres implorando a Deus por salvação, enfermeiros em correria, médicos estressados... Um outro retrato da realidade que os portões da mansão lhe impediram por dezenas de anos de conhecer.
Ainda que angustiada, prossegue, quer saber de onde vem aquela música e o porquê de mexer tanto consigo.
Pára diante de um leito em que está uma criança, aparentemente com as forças em vias de extinção. É de lá que se origina a canção...
Uma brisa fria desce do céu, invade o corredor, toca-lhe os cabelos, acaricia-lhe a face...A sensação de perda é inquietante! Maria chora ao ver o menino partir...
Uma jovem de uns vinte e poucos anos desespera-se. Ao lado dela, uma senhora, com um terço entre os dedos, ora em sussurros. Na outra ponta do quarto, um garotinho, talvez o irmão, agarrado à perna do possível pai, acompanha tudo sem entender o que acontece e, na cabeceira da cama, um pequeno aparelho toca repetidamente a melodia que a Maria hipnotizou...
Os olhos da mulher, de um vermelho sangue, encontram-se aos da empregada, que sem poder ajudar, afasta-se devagar...O rosto do garoto não lhe sai da mente, é a chave do baú da eternidade, de onde lhe são arremessadas os piores momentos de uma longa história de vida. Ao fechar os olhos, tem à frente a imagem de uma Nathália alquebrada.
_Santo Deus! O remédio dos pacientes...– grita a enfermeira, ao derrubar todo o medicamento, após esbarrar na serviçal, que parecia penar pelo corredor, tal o desatino.
_Sinto muito! – diz Maria, libertando-se do transe em que havia imergido.
_ Se minha chefe vir, levarei uma bronca...
_Mas não foi sua culpa; foi minha! Não sei o que deu em mim... Sinto muito! Foi essa música que mexeu comigo, estou meio que perdida, por instantes é como se eu não estivesse mais aqui...não consigo explicar... - confessa a empregada, ajudando a recolher os medicamentos.
_ Hello!?
_Como?- pergunta a serviçal, sem entender o que a mulher havia dito.
_ Hello... é o nome dessa música! O pobre Luquinha a ouviu dias desses em uma rádio da cidade e pediu que lhe comprassem o cd. Coitado! Foi o seu último pedido.
_ E quem a canta?
_Não sei direito, parece ser uma tal de Evanescence... A música está o dia todo ecoando pelos corredores; como hino dos anjos, anuncia a perda de mais uma pobre criatura, entre tantas, que aqui agonizam...
Maria novamente pede desculpas e se afasta, quer retornar ao aposento do doutor Rubens, aguardar sua convalescença, para que ambos, felizes e saudáveis, possam sair desse local desolador – caixa de pandora de uma sociedade já combalida.
Enquanto limpa as lágrimas com as pontas do manto, o elevador que está ao seu lado se abre, e de lá, bradando, retira-se uma senhora, está à procura do médico responsável pelo filho que há pouco chegara numa maca, a um passo da morte.
Uma mão recai sobre os ombros de Maria, impedindo-a de auxiliar a mulher, que suplica ajuda, aos prantos.
_Senhora...?
_Sim! – diz a empregada, percebendo a aproximação de uma enfermeira.
_O médico quer lhe falar...
_O que aconteceu com o doutor Rubens?- pergunta, alterando-se.
Minutos depois...
_Não sabemos o porquê de sua sobrevivência, afinal, não é comum na história da medicina uma pessoa sofrer dois ou três enfartos e ainda resistir com tanta garra. A isso, com toda a humildade, apesar da ciência contrariar, trato por milagre.
_Ele corre perigo de morte ainda doutor?
_Mesmo seu quadro estando estável nesse momento, as próximas vinte e quatros horas serão cruciais, por isso lhe peço...
_E desde quando ela tem poderes para atender a qualquer um de seus pedidos? – questiona, encolerizado, o filho de doutor Rubens, que acaba de chegar.
_Bem, achamos que, por ela estar aqui desde o início do tratamento...
_O senhor não é pago para achar, mas para curar o meu pai! – interrompe, o rapaz, bastante alterado.
_Ricardo, o que há, meu filho? Por que toda essa brutalidade? – pergunta a empregada, surpresa com a ira do garoto, que a visualiza com os olhos injetados de um ódio quase descomunal.
_E desde quando sou filho de uma empregada? Porte-se de acordo senão a demito! Hum! E quanto ao senhor, doutor...?
_Mário Frontal, cardiologista.
_O senhor é novo aqui?
_Cheguei há alguns dias...
_Pois se quiser ter vida longa neste hospital, é melhor dispensar um tratamento mais adequado aos seus clientes, dando-lhes o devido respeito e informando-os de tudo e não a seus serviçais; caso contrário, serei obrigado a registrar junto à direção clínica uma crítica que, de tão severa, o colocará no olho da rua. Entendeu?
Indignado com a ameaça, todavia temendo perder o cargo, o médico apenas balança a cabeça; já Maria, aterrorizada com a selvageria do rapaz a quem sempre tratou por filho, questiona:
_O que há seu Ricardo? Por que está assim? Que mal lhe fizemos?
_Por que não me comunicou da gravidade do caso de meu pai? Esperava vê-lo morrer para me dar a notícia? Fale, empregada!
_Mas estamos o dia todo tentando falar contigo, seu celular estava fora de área e na mansão, pelo que consta, você não estava.
_E por isso dita as regras? Desde quando uma empregada como você, iletrada de pai e mãe, que vive às custas do dinheiro de minha família há anos, pode assumir o controle de um caso tão sério quanto à saúde de meu pai? Você pensa que é quem, Maria? A dona do dinheiro? Você não é nada e jamais deixará de ser nada; é apenas uma sombra daquilo que somos, um encosto...
_Ric...Ricardo...
_Seu Ricardo! – profere o rapaz, rilhando os dentes.
_Seu...seu... – Maria desaba em lágrimas... Eu não mereço isso! Eu não mereço! Sempre prezei por sua felicidade e de sua família e mal nenhum lhes faria...
A mulher cobre o rosto com o manto e se afasta, sendo acompanhada pelos olhos estatelados do médico, e pelos luzentes e ferinos de Ricardo.
Desatinado pelo ocorrido à tarde com Marymel e com a conversa nada amigável do desbravador, o único herdeiro da família Médici quase surta ao saber que seu pai fora vítima de outro enfarto; não tendo recebido a informação no momento em que o fato acontecera, atribuira toda a culpa à serviçal, que de modo angelical, dispunha de todo seu tempo para cuidar de seu pai.
_Como está meu pai? Seja objetivo! – exige o rapaz ao olhar o cardiologista de cima a baixo.
Enquanto a história é relatada, Ricardo, tocado por uma faísca de remorso, volta-se duas ou três vezes para trás, na esperança de reencontrar Maria, que, agora, estava no elevador, chorando como nunca.
Seu desejo é sair do hospital, encontrar a rua, voltar à mansão, juntar suas coisas e sumir de vez da vida daquele garoto ingrato, que tanto amou, recebendo por sua dedicação, palavras torpes do tipo “... você é apenas uma sombra daquilo que somos, um encosto...”, que doem mais do que pedradas.
Apesar de toda a decepção, não o condenava, apenas o repudiava; intrinsecamente, adorava-o... Era o filho adotivo que Deus lhe enviara! Uma cópia perfeita de Nathália, a patroa a quem cultuava.
O elevador se abre no terceiro andar e Maria se retira, pensando ser o térreo. Segue cabisbaixa até um sofá ; frágil, teme os olhares alheios. Após uma breve análise de consciência, decide enfrentar os próprios receios, é quando constata estar em outro andar.
Um grito pavoroso ecoa pelo corredor, é novamente daquela mulher, que há pouco, na ala do pobre Luquinha, suplicava ajuda. Contida por alguns enfermeiros, resistia à absorção de um calmante. Esquecendo-se de sua dor, Maria se aproxima e pede que a deixem, sendo atendida com ressalvas.
Ao encontrar os grandes olhos da mulher, a serviçal se compadece.
_Que Deus a ajude nessa hora!- deseja Maria.
_Que assim seja, minha filha!- responde a mulher, ao abraçá-la como forma de agradecimento. Estou perdendo meu filho...Sabe o que significa perder alguém que foi gerado dentro de você com tanto amor? Sabe?
A empregada balbucia uma resposta.
_Ele é a única coisa que me resta nessa vida... Se partir, irei junto! Por que Deus quer levá-lo de mim? Que mal tão grande cometi para receber como castigo essa desgraça? Por que não me leva ao invés dele? Por que tanto sofrimento? Por quê? Não entendo!
A estas perguntas Maria não tinha respostas, muito menos às suas próprias dores.
_Eu pedi que tomasse o remédio, mas teimoso como o pai, ele permanecia naquele quarto sozinho, como se tivesse criado um mundo paralelo em que o computador fosse o único meio de comunicação... Deu no que deu, acabou adoecendo, agora, só por um milagre...
_E o que seu filho tem?
_A senhora estava a minha procura? – interrompe o doutor de pouca idade, aproximando-se.
_Graças a Deus o encontrei! Como está meu filho?
_Acalme-se! Vamos conversar e poderei lhe esclarecer a sua real situação...
_Sim senhor!
A porta do quarto se abre, entram o médico e a mãe do paciente, acompanhados de perto por Maria, que ao ver o doente, sobressalta-se, segura o grito e se encosta à parede, completamente transtornada. Estava diante do desditoso que banira a felicidade do seio da então próspera família Médici. Ele não havia morrido, como pensavam alguns anos atrás. E aquela senhora era a sua mãe. Que ironia do destino! Uma criatura boa ser logo a geradora de um verdadeiro demônio. Como pode? Se doutor Rubens o visse daquele jeito, dizimando os últimos goles de sua existência, certamente não o reconheceria mais como o galanteador que lhe arrastara ao buraco, levando junto a mulher e o filho que o amavam.
Maria deixa o quarto, entra no elevador e dessa vez trata de checar se a parada é mesmo o térreo. Ao abrir a porta, toma fôlego, olha para o alto, fecha os olhos, memoriza coisas boas; abre-os, inspira demoradamente e se dirige à saída, quando é interceptada por Marcos.
_Maria, oh Maria, cadê o seu Ricardo?
Notando a apatia da mulher, pergunta:
_O que você tem? Está branca feito um fantasma!
_Trago-lhe uma desgraça!
_Desgraça? Então você já sabe?
_Sim! E estou pasma!
_Coitada da Marymel! Se até você já sabe, então o seu...
_Do que você está falando, homem? – interrompe a mulher. Pouco me importo com essa tal de Marymel, estou me referindo àquele infeliz! Quase tive um enfarto ao vê-lo.
_De que infeliz você está se referindo? – questiona Marcos, limpando o suor que lhe surgia ao rosto. Fale!
_Do mesmo infeliz que não hesitou em destruir a felicidade dos Médici.
Vasculha Marcos o baú do passado e quando a imagem do desbravador lhe surge à mente, o clarão do disparo de uma arma lhe ofusca a sensatez, levando-o ao desespero.
_Vo-vo-você está dizendo que...que... ele está vivo?
_Sim! Apesar de estar a um passo do buraco, lugar de onde jamais deveria ter saído.
_Eu mesmo o vi morto, lembro-me bem, lá naquele quarto. Como pode?
_Sua mente lhe pregara uma peça, o sujeito estava vivo todo esse tempo. E bem vivo, para a infelicidade de mais algum outro inocente que, por acaso, tenha caído em seu papo sedutor...
X
O plantão do Jornal Nacional interrompe a novela Mandala, obra de Dias Gomes, baseada em Édipo Rei, a tragédia grega de Sófocles - autor clássico que viveu de 496 a 406 a. C-, no momento em que Jocasta, personagem de Vera Fischer, revelaria a Édipo, de Felipe Camargo, ser sua mãe, para transmitir, ao vivo, o resgate de um bebê de oito meses, soterrado após avalanche do barraco onde morava com os pais e mais dois irmãos – já encontrados e declarados mortos.
Há três dias não parava de chover na capital paulista, e os rios, transbordando, regurgitavam contra o homem os dejetos da indústria que ele ingerira durante meses. Carros de bombeiros estavam por todos os lados, a correria dava lugar ao desespero; morros desabavam levando consigo vidas e histórias de pessoas sofridas, que à margem da sociedade, sobreviviam do pouco que angariavam das latas do lixo ou da caridade de um e de outro. As lágrimas eram muitas, o sofrimento jamais visto e a fé - o elemento que mantém o homem esperançoso há milênio, alimentando-se da desgraça alheia, incólume...
A solidariedade, luz divina que abrilhanta o espírito humano, mantinha em pé o grupo de voluntários, que mesmo exausto, persistia na busca pelo bebê, cujo choro fino, embrenhava-se pelos destroços, naufragando na agitação da superfície.
A garoa não cedia, alguns populares, atentos, não desgrudavam os olhos dos morros adjacentes, o perigo de novos deslizamentos era eminente.
Políticos de todas as partes da cidade chegavam com seus carros luxuosos bancados à custa da exploração popular. Entre um aperto de mão e a entrega de um santinho, posavam-se de anjos, sensibilizados com a tragédia, como se não fossem os responsáveis pela aflição desse povo.
Os oportunistas de plantão gravavam tudo para a campanha eleitoral gratuita da TV, expondo a administração atual, que dificilmente escaparia dos ataques em que seria acusada de negligente, impiedosa com o social e subserviente aos poderes internacionais.
As imagens da tragédia viajavam o país, comoviam o mundo, geravam críticas de estadistas pela péssima aplicação do dinheiro público em obras que não evitaram a dor de tantas famílias brasileiras.
O bombeiro Gabriel, integrante da equipe de salvamento, com as forças quase esmorecidas, implora aos santos proteção, precisa chegar à criança, retirá-la daquela lama, mantê-la viva, crente em dias melhores, em uma família que a proteja das intempéries do destino. Ao retirar uma pedra com os dedos que a terra carcomeu nas últimas horas, avista o rosto do menor e grita, envolto em um pranto comovente, ao perceber que o mesmo havia resistido à morte com a audácia de um querubim...
O milagre ecoa além das fronteiras da sensatez, a vida humana, como na passagem bíblica, vence novamente a deusa das trevas, cujo prazer é instigar o pânico, semear a dor e conduzir a alma do condenado às ruínas do caos.
Assistindo ao salvamento de dentro de uma limusine, intocado pela desesperança, está Rubens Médici, insigne capitalista da paulicéia desvairada. Espera alguém. Aparentando insatisfação, comenta ao motorista:
_ Quanta hipocrisia! O que será desta criança? Melhor seria morrer, de trombadinhas o mundo está farto!
_ Senhor Rubens, quanta impiedade! – satiriza o serviçal.
_ Não confunda impiedade com sinceridade, imbecil!
_Desculpe, senhor!
Aplausos são ouvidos quando a criança, uma menina, é elevada pelo bombeiro, agora um herói.
_ Se já não bastasse ser belo, agora um herói da plebe! – desdenha o empresário, ao vê-lo ser cumprimentado pela população.
Gabriel carrega a criança e a entrega ao médico, que lhe providencia os cuidados necessários.
_Marcos! – solicita Rubens.
_Em que posso ajudá-lo, senhor?
_Avise-o de que estou aqui. E não demore, tenho aversão a lugares pobres...
O motorista atravessa a multidão e avisa o bombeiro da presença do patrão.
_ Como você está, meu herói? – escarnece o patriarca da família Médici.
_ Que bom que veio, meu amor! Estou a pensar em você durante o dia todo!
_ Não minta, essa plebe é mais interessante do que eu...
_ Não fale assim, Rubens... – pede o jovem, percebendo o tom de ironia. O que há com você? Está com ciúmes?
_ Ciúmes de quem? Do povo ou daquela futura “Escadinha”, que você tratou de salvar, para o azar das pessoas de bem como eu? – gargalha o pai de Ricardo. Faça-me o favor, enxergue-se! Quem pensa ser para me despertar ciúmes? Pobre criatura!
_ Por que está me tratando dessa forma? O que lhe fiz?
O rapaz se curva para beijá-lo, sendo veementemente repudiado.
_Afaste-se de mim, seu cheiro me causa enjôo.
Gabriel arregala os grandes olhos e se contém, sua vontade é a de sair dali e nunca mais voltar, mas seu coração acaba por impedi-lo, pois o amor que sente pelo esposo de Nathália é maior do que a dor causada por qualquer humilhação.
_ Quero que deixe essa profissão e seja apenas meu, se não o fizer, prometo, não me verá novamente.
_ Mas...não posso deixar a Corporação, adoro o que faço...e o que está fazendo é uma ameaça. Não posso aceitar isso! Sou uma pessoa digna, de um coração...
_... tolo! – completa o empresário. Não quero ver o meu homem roçando-se nas pernas de outro, remexendo o lixo para salvar pessoas socialmente insignificantes; quero-o somente para mim, usando o perfume que eu lhe comprar, com as roupas importadas que eu lhe presentear, no apartamento que eu lhe oferecer, esperando-me toda noite, assim como faz a imbecil da minha esposa...
_ Por favor, não faça isso comigo! Não mereço esse tipo de vida! – suplica o rapaz.
Marcos ouve toda a conversa e pelo retrovisor acompanha a guerra facial de ambos.
_ Aceite ou jamais me verá... Minha vida não necessita de herói, mas de homens bons de cama, assim como você. É pegar ou largar!
_ Você me ama mesmo, Rubens?
_Amar? Que idiotice é essa? O amor não existe, é fruto que apodrece o espírito humano.
_ Se você não me ama, o que então sou para você?
_ Apenas um aperitivo, pois o prato principal encontra-se em casa, pronto para ser devorado...
O servidor público não acredita estar ouvindo tal estupidez.
_ Se é assim, então chegou a hora de nos despedirmos! – declara, com os olhos intumescidos.
_ Jamais alguém ousou me abandonar e você não será o primeiro! Fará justamente o que eu disse, senão, ao invés de mim, poderá ser a escuridão de um buraco a sua nova companhia...
_ Ó Rubens...
O barro da roupa do bombeiro escorre pelo banco do veículo, atiçando a ira do empresário:
_ Veja o que seu ato de heroísmo foi capaz de fazer! Pensa estar onde? Num desses paus-de-arara da prefeitura? Hum! Saia de meu carro, infeliz!
Gabriel cai em prantos, comovendo o motorista, mas não a Rubens, que se delicia com suas lágrimas.
_ Saia de meu carro!
O bombeiro abre a porta e antes mesmo que possa fechá-la, é advertido:
_ Espere-me para hoje! Quero deitar minhas mãos por suas curvas e sorver toda sua essência, assim como um vampiro bebe o sangue de suas vítimas...
Extasiado, o rapaz deixa o carro, lágrimas ainda lhe escorrem pela face. À imprensa diz ser de emoção pela homenagem popular ao seu gesto de bravura...Todos acreditam!
Fechando o vidro, Rubens se volta para Marcos e, com a frieza de um psicopata, decreta:
_ Estou cansado desse idiota! Mate-o!
A limusine parte, assim como as lembranças...
_Senhor...senhor... o que pensa estar fazendo? – pergunta uma senhora, ao entrar no elevador e se deparar com o motorista pressionando o botão de emergência.
_ Ham...como?
_ O senhor está impedindo o elevador de subir. Tire o dedo do botão.
_ Em que andar estamos? – pergunta, bastante confuso!
_ No terceiro!
_ Ó, desculpe, eu queria mesmo era estar no oitavo. Que cabeça a minha!
Marcos almeja sair, rever a face do homem que um dia pensara ter assassinado, mas a covardia invade-lhe as veias e domina-lhe a razão...
Antes que pudesse tomar a decisão errada, pressiona a tecla 08, a porta se fecha e o elevador sobe. Encostado à parede, sente o passado lhe cair sobre os ombros, o peso se assemelha ao de muitos pecados cometidos em nome de uma inexplicável lealdade ao patrão, que hoje padece naquele quarto...
Próximo ao elevador, Ricardo tenta novamente falar com Marymel; a mensagem de ocupado, por mais de uma vez, deixa-o apreensivo. Nunca, depois de uma briga, Marymel permanecera tanto tempo incomunicável; era comum sua ira fraquejar algumas horas depois, entretanto, contrariando qualquer explicação plausível, a garota mantinha-se no silêncio, e isso o assustava. Era como se não quisesse mais vê-lo, pudera, a surpresa de saber que amava um possível homossexual a incomodava muito mais do que ser chamada de serva sexual, como naquela carta...Ainda que pudesse provar sua inocência, a forma como a tratou, com toda aquela brutalidade, inviabilizava qualquer canal de conciliação.
A tecla de rediscar é pressionada e o aparelho busca conectar-se ao da moça. Sem êxito, Ricardo coça a cabeça, não compreende o que acontece.
_ O senhor está tentando falar com a Dona Marymel? – pergunta o motorista, ao desembarcar do elevador.
_ O que você quer? – questiona, bastante chateado.
_ O senhor não conseguirá...
_ Por que diz isso?
_Lembra-se daquele acidente que vimos há pouco na rodovia?
A face do rapaz é possuída pelo assombro assim que as palavras do empregado são associadas às imagens da tragédia.
_ Lembra-se? – persiste Marcos.
_ Sim... – balbucia... O que tem?
_ Quem estava naquele carro era...
_ Quem...quem estava naquele carro? Fale... –interrompe, afoito.
_ Dona Marymel.
_ Você está brincando comigo, não é, criado? – gargalha o rapaz. Bela atuação, digna de um Oscar!
A seriedade de Marcos emudece Ricardo, que ao se apoiar a um pedestal, arfa, enquanto o corpo gemica descontrolado.
_ Senhor...
_ Isso não pode ser verdade! Você deve estar enganado, Marymel está viva, sei disso, posso senti-la...
_ Não, senhor, ela se foi... Todas as emissoras de rádios estão noticiando sua morte!
_ Não pode ser!- grita o rapaz. Você está enganado! Não está?
Compadecido com a dor de Ricardo, Marcos silencia.
_Fale! Fale, Marcos! Você errou, não é? Marymel está bem, pronta para me perdoar, entender que nada tive com aquela carta desgraçada... Por favor, fale, criado!
O silêncio permanece...
_ Faaaaaaale...
Importunado com a ausência de palavras, Ricardo permite-se dominar pelo transtorno; quando a luzerna da razão lhe clareia a escuridão intrínseca, está com Marcos prensado à parede.
_ Senhor, por favor, veja o que faz...! – berra o empregado, atemorizado com a sua repentina explosão de violência.
O jovem o liberta e se afasta até um banco. Incontrolado, verte-se em lágrimas, causando estranheza no motorista, que sempre se acostumou a vê-lo onipotente, senhor dos saraus paulistanos, aventureiro das emoções sorrateiras; não um derrotado, incapaz de resolver os próprios problemas.
“O destino é impiedoso! Como posso agüentar o peso de duas mortes?” – dizia ele, ao visualizar a imagem de uma Nathália esfaqueada se confrontar com a de uma Marymel, fragilizada pela notícia de que ele não era um “homem completo”, mas uma dessas encenações baratas, fruto de uma mente doentia... O remorso crucificava-o!
Do jardim do hospital, Maria contempla a escuridão... Está descrente de tudo e não se preocupa mais com nada, quer apenas partir, pegar suas coisas e cair no mundo. Chega de família Médici, de Ricardo...Aquele ingrato pagará com dor todas as palavras torpes que lhe foram atiradas, aniquilando-lhe o sorriso e a dignidade.
Coberta pelo manto, desce a escadaria em direção à rua, quer logo reencontrar a vida que deixara no interior, ser feliz ao lado daqueles que há anos não tem notícias... Caminha a passos lentos!
A noite está fria, a lua encoberta por nuvens negras, relâmpagos são vistos à distância.
Sozinha, ela prossegue pelas ruas escuras da região. Por mais que negasse, sentia remorso de partir, principalmente por saber que nesse momento, ao se interar da morte de Marymel, Ricardo poderia estar ainda mais alquebrado, à beira do caos, precisando de um colo para chorar... Ei, que pensamentos são esses que lhe emanam do âmago? Ricardo não precisa de nada, muito menos dela, um encosto, sombra daquilo que ele é, como havia dito.
O vento agitado corre sem destino, prenunciando uma tempestade. Minutos depois, gotas do céu beijam a terra...
Encolhida junto ao tronco de uma árvore, Maria procura se proteger da chuva, quando por loucura ou sensatez, ouve alguém lhe chamar. Ao virar-se, nada encontra. Receando a presença de algum estranho com idéias mirabolantes, decide se retirar e prosseguir a caminhada, mesmo debaixo da chuva. Ao atravessar a rua, a voz novamente lhe aclama.
Desesperada corre, tropeça num desnível da calçada e cai. É nesse instante que a aura levanta seus cabelos e a voz, suave como a de um querubim, sussurra-lhe aos ouvidos. Com os olhos semicerrados, percebe algo se apoderar de seu espírito; o corpo, extenuado, já não mais resiste aos apelos da estranha força e se entrega... A razão lhe falta! Alçada a um estágio metafísico, a boa empregada sente sua alma voar, tocar o infinito, reabrir o baú da eternidade e nele imergir, como se estivesse à procura de algo que pudesse confortá-la. O cheiro de rosas incendeia o lugar, vozes guerreiam entre si, e os ponteiros do relógio, livres do controle do tempo, giram em sentido contrário, momento em que passado, presente e futuro se cruzam, realidade e ficção se encontram, vida e morte se enfrentam, sonhos e pesadelos se fundem...
Com um belo sorriso irradiando a face, Nathália quer a opinião de Maria, precisa escolher a roupinha de Ricardo, que em poucas horas virá ao mundo, selando o amor que sente pelo marido...
Humilde, a empregada auxilia a patroa na escolha do que levará para o hospital. As duas sorriem, a felicidade é demasiada, muito em breve receberão o novo membro da família, um ser aguardado há anos...
Marcos entra no quarto e avisa que o carro está pronto. Maria ajuda Nathália a descer a escada e a conduz até o carro. Depois de acomodá-la, prepara-se para fechar a porta e voltar para a cozinha, quando é surpreendida por um pedido:
_ Venha comigo, Maria! Você é a minha melhor amiga! Esse filho não é só meu e de Rubens, é seu também! Afinal, você não é empregada dessa casa, é um membro da família, a quem amamos assim como ao pequeno Ricardo, que em pouco tempo estará a nos deixar loucas com suas brincadeiras...Venha, compartilhe de minha alegria! Por favor!
Com os olhos cintilando, Maria adentra o veículo e a beija na face – singelo agradecimento pelas belas palavras.
Horas se passam, Rubens não comparece ao parto da criança, diz estar em uma reunião de negócios; bem verdade seria se o caso com Gabriel pudesse ser considerado um negócio!
Nathália dá à luz ao pequeno em 08 de julho, um dia comum como tantos outros, mas especial para as duas mulheres, que comemoram juntas a chegada do herdeiro de todo o império Médici.
_ Maria, prometa-me jamais deixar meu filho, estando sempre ao seu lado, ainda que ele possa vir a lhe magoar; prometa assisti-lo e confortá-lo das angústias desse mundo, caso eu lhe falte! Por favor! – pede Nathália, enquanto amamenta o garoto.
_ Por que me faz este pedido, senhora?
Olhando o céu pelas frestas da janela, a esposa de Rubens não encontra palavras para se justificar.
_ Senhora...!? – acode a empregada. Tudo bem? Por que me pede isso?
_ Não sei...Apenas prometa!
_Sempre estarei ao seu lado, confie em mim!
Nathália sorri em sinal de gratidão. Maria leva a criança para o berço, para que ela possa descansar um pouco.
Acomodando a criança como se fosse sua, promete:
_ Eu sempre estarei contigo, menino! Prometo!
_ A senhora precisa de ajuda! – afirma o policial, ao encontrar Maria caída na calçada, em transe, após bater a cabeça. Vi quando a senhora tropeçou, foi um tombo daqueles, parecia estar fugindo de algo...Consegue se levantar? Gostaria de levá-la ao hospital...
Desorientada pela queda, a mulher ignora a dor, passando apenas a perguntar pelo herdeiro dos Médici.
– Quem é Ricardo, senhora? Não há mais ninguém aqui além de nós dois. Venha, vou levá-la para o hospital!
Enquanto a serviçal adentra a viatura para retornar ao hospital de onde havia partido há pouco, Ricardo espreita o pai pelo vidro. Está angustiado, condena-se pela morte da garota que não ousou poupar das ofensas, durante à tarde, na mansão. E lá só não a matou - quando soube da existência daquele e-mail, cuja autoria atribui ao Desbravador, porque Marcos o impediu. Mas o destino deveria ser cumprido, e nada do que fizesse, poderia evitar o fim de Marymel, a quem jamais pensou amar tanto.
O peso do remorso lhe exauria, precisava se livrar de tanta carga, e a única forma disso acontecer era morrendo. A história de sua vida estaria concluída com um tiro na nuca, tudo transmitido ao vivo para mais de 12 milhões de pessoas, como se fosse um “Big Brother trash”, assim como predestinara o Desbravador de Identidades.
Maldita hora que o conheceu, afinal, depois daquele encontro, todas as coisas ruins passaram a persegui-lo, como se o quisessem destruído e definitivamente morto, ainda que por motivos incógnitos. E assim acontece, a primeira parte do jogo está finalizada, sua vida está em ruínas. Com as forças quase esvaecidas, o “amor” de sua vida em um buraco e as pessoas as quais sempre estimou, distantes, não lhe resta mais nada! Para que então viver? Não teria graça continuar pertencendo a um mundo em que sua única companhia seria a inveja de uma classe que nunca deixou de apreciá-lo devido à fortuna que carrega nos bolsos desde o nascimento. Morrer seria mais interessante e menos doloroso! É quando percebe estar caminhando para o epílogo do jogo.
Afasta-se do vidro, diz adeus ao pai com os olhos lacrimejando e se volta para o corredor. Está sozinho, até Marcos havia partido. Pela primeira vez na vida, dá-se conta de que o dinheiro que tem não é nada...
Aproxima-se, devagar, de uma janela. Continua chovendo, a cidade está oculta pela escuridão. Olha para baixo, a altura, assustadora, certamente o transportaria a uma outra vida, longe de figuras onipotentes como a do Desbravador e perto de criaturas bondosas, como sua mãe.
Basta levantar a vidraça, subir no banco e pular... Seria algo rápido!
Agarra-se às travas da janela, mas um arrepio de juízo corre-lhe a espinha, interceptando o desejo de levantar o vidro e pular. Por instantes, percebe o erro que está para cometer.
“Por que fez isso comigo? Sempre fui sua criada sexual e jamais me neguei a um capricho seu... Bastava estalar os dedos para que eu, feito uma cachorrinha vira-lata, corresse para seus braços e lhe entregasse todos os meus segredos e devaneios... Mas você nunca me valorizou, não é? Por isso resolveu brincar com minha imagem, vendendo-a como se fosse a de uma meretriz... Se você gosta mesmo de homens, o problema é seu...” – a imagem de Marymel lhe entorpece a visão, a cena em que ambos se digladiam o deixa esmorecido, perdido dentro de si... Já não sabia mais o que estava fazendo, nem o que era, o que foi ou o que é. O Ricardo de outrora havia sido estrangulado pelo tempo, engolido pela história, condenado ao esquecimento... O que agora se projeta é vazio, sem reflexo, destituído de identidade.
“Aquela vadia está me desafiando... Se eu a encontrar agora, juro, é uma mulher morta!” – as palavras lhe são arremessadas milhares de vezes, reacendendo-lhe o desejo pelo fim.
A janela é aberta, o vento traz a chuva. Subindo no banco, ele observa de novo a altura.
_ O que está acontecendo comigo? Devo estar enlouquecendo..! – diz consigo mesmo, impressionado com a própria atitude.
_ Se for mesmo pular, leve-me junto!
Ao ouvir o pedido, Ricardo se vira, e lá, a alguns metros, mesmo com a cabeça enfaixada, está Maria - o encosto, a sombra de sua família-, com os braços abertos, pronta para acolhê-lo.
No terceiro andar, diante do quarto de Gabriel, vencendo todas as resistências, encontra-se o motorista.
Tentando evitar ruídos, abre a porta devagar e entra. Adormecida em uma poltrona, no lado esquerdo do quarto, na companhia da meia-luz de um abajur, está Dona Marta, a mãe de Gabriel e, no centro, monitorado por equipamentos, O Desbravador de Identidades – ser que se materializa nas páginas de um bate-papo, cuja falácia o torna invencível, senhor de todos os destinos, imperador de todos os corpos e almas que habitam esse mundo de perdição.
Para não ser flagrado, Marcos se aproxima do rapaz a passos leves. Diante daquele corpo esquálido, rosto envelhecido pela doença, contornado por lábios roxos e olhos profundos, ele se assusta, porque o Gabriel de outrora é uma antítese desse outro.
_ Vim para findar o serviço que pensava ter realizado há anos...
Ele agarra o pescoço do “senhor dos enigmas” com uma força descomunal...
XI
Iniciando um novo estágio na vida cultural da cidade de São Paulo, há quase um século a Ópera Hamlet, de Ambrósio Thomas, inaugurava o Theatro Mvnicipal. Idealizado por uma equipe de construtores arrojados, o Mvnicipal logo se transformaria num dos pontos mais freqüentados pela elite paulistana, por abrigar as mais variadas manifestações artísticas, do erudito ao popular, em ópera, dança, música e teatro.
De senhores do café a políticos de expressão, de Nair de Teffé – segunda mulher do presidente Hermes da Fonseca, que ousou escandalizar a “realeza republicana” ao tocar um maxixe* ao violão, em pleno Palácio do Governo – a intelectuais como Oswald de Andrade, todos ali se encontravam para debater os rumos do país e se deleitar das muitas viagens poéticas ao mundo introspectivo do ser humano, que as grandes companhias européias de teatro da época tão bem produziam.
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* O maxixe era considerado dança imoral e o violão instrumento próprio da mais baixa ralé.
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O Mvnicipal, glamouroso no estilo, era palco obrigatório às produções internacionais de vanguarda, o que revitalizava a cultura nacional – de essência tupiniquim, motivando artigos de estímulo à arte nos principais jornais do município, atraindo a atenção até mesmo dos menos avantajados.
Ainda hoje, no limiar do novo milênio, o Theatro Mvnicipal é referência àqueles que amam a arte, que sabem distinguir o belo do duvidoso. Estar em uma de suas poltronas acompanhando uma apresentação é como estar no céu, à direita de Deus, contemplando o coral dos anjos. A emoção logo interrompe a fala, as lágrimas avermelham os olhos, o sorriso emerge na face...Tudo parece perfeito!
É justamente nesse lugar de sonhos, de construção e transformação de valores, que o corpo de Marymel será velado. A pedido da família, uma das mais tradicionais da cidade, a prefeitura autoriza a realização do velório nas dependências do Mvnicipal - ato contrário às leis que disciplinam o uso do lugar, para que os paulistanos dêem um último adeus à filha do empresário Giacomo Ferrara, conceituado exportador de vinhos da Capital.
As ruas adjacentes à Praça Ramos de Azevedo, onde está localizado o teatro, são interditadas pela Companhia de Engenharia de Tráfego. Somente os parentes, os amigos mais íntimos e as autoridades constantes de uma lista, distribuída há algumas horas pela própria família, podem atravessar o bloqueio. Tal absurdo atrai a atenção da mídia, que transforma o funeral em evento público.
Emissoras de rádio e tv de todos os cantos da cidade contam aos ouvintes a tragédia como se fosse fragmento de uma novela, descrevendo desde o valor da urna funerária às vestimentas dos participantes – verdadeiras obras de arte do estilismo pós-moderno, que lá se encontram, para despedirem-se da garota que ao jovem Ricardo tanto amou, recebendo por sua dedicação, apenas o desprezo e a morte.
A convite dos Ferrara, a Orquestra Sinfônica Municipal acompanha o velório entoando belas canções eruditas. Aleluia, de Haendel, Nocturne, de Chopin e a espiritualista Tocada e Fuga em Ré Menor, de Bach, ecoam pelas galerias, conduzindo os presentes à comoção e às lágrimas.
Os motivos que levaram Marymel a encontrar a morte ainda eram uma incógnita, o que suscitava muitas hipóteses, algumas beirando até mesmo a insanidade.
Diziam que a garota estava alcoolizada, uma afirmação, no mínimo, despropositada, visto que sua morte ocorrera no cair da tarde, horário considerado inviável para uma bebedeira a qualquer padrão social. Outros atribuíam a culpa a Deus, o que aos cristãos, não deixa de ser uma ofensa.
Mas, como em qualquer situação, existiam aqueles que eram iluminados pela sensatez e conseguiam encontrar no desastre o epílogo de uma história macabra, epílogo este, iniciado horas antes, com a distribuição de um e-mail, em que Ricardo, o suposto namorado da jovem, declarava-se homossexual, tendo se utilizado da mesma como máscara de suas investidas secretas. Ao conhecer o conteúdo da “confissão virtual”, a garota, temendo a desmoralização pública, teria ido à casa do rapaz cobrar uma explicação. Como não a obteve, pretendia retornar à cidade, o que acabou não acontecendo, talvez por um momento de “distração emocional”. Hipóteses e mais hipóteses...
Alojados em um dos camarins, os Ferrara comentam a tragédia.
_ Marymel terá o velório mais luxuoso que essa cidade já viu... – comenta Dona Lícia, a matriarca dos Ferrara, no longo e fino versacce negro, enquanto retoca a maquilagem diante de um espelho oval.
_ E desde quando velório é espetáculo de aspirantes ao poder? Veja quantos urubus estão ao nosso redor, alimentando-se de nossa dor, promovendo-se às nossas custas. Pudera, desde quando funeral se realiza em teatro, ainda mais no Mvnicipal, o nosso coração cultural? – indaga Pietro Ferrara, garoto no auge da juventude, agora único herdeiro da família.
_Marymel era uma estrela e às estrelas reservamos sempre os melhores lugares, portanto, “o nosso coração cultural...” – rebate a mulher, contornando os lábios com um batom cintilante.
_Feche o salão, mãe, vamos para um lugar discreto em que velaremos o corpo de Marymel na companhia dos amigos mais íntimos, de nossos tios e tias – implora, visivelmente angustiado com o rumo da conversa.
_ Não mudarei minha posição, Pietro! Às estrelas o altar...
_ ...e o preço pelo fracasso dos pais. – completa, com sarcasmo.
_ O que você disse? – pergunta a mulher, com a cólera estampada na face.
_ Responda, meu rapaz, também estou curioso para saber! – exige Giacomo Ferrara, o patriarca da família – um imigrante italiano de audácia, que chegou ao Brasil durante a segunda guerra mundial, construindo fortuna invejável com o cultivo da uva, a produção e exportação de vinho aos mercados europeus - achegando-se.
Diante daquela figura quase absolutista, o rapaz emudece.
_Concordo com sua mãe, às estrelas o altar. O que não diria a sociedade se não proporcionássemos a Marymel um velório à altura do que ela nos representa? Chamar-nos-ia de abomináveis!
_ Abomináveis?! – debocha o rapaz.
_ Qual o motivo da ironia, Pietro? – interpela a matriarca, enquanto recebe um angorá turco, de pêlos tão negros quanto sua vestimenta, das mãos de uma das criadas.
_ Vocês estão loucos, não se preocupam com a memória da única filha que tinham; importam-se apenas com as aparências, com aquilo que dirão os abastados de mente retrógrada...- desvia, mais uma vez, dos motivos que lhe estimulam o escárnio. Pois que se explodam! Amo minha irmã e, em respeito ao que ela me representa, pedirei aos seguranças que expulsem todos esses interesseiros daqui...
_ Não fará nada disso! – adverte Giacomo, após dar uma boa tragada em charuto cubano. Entenda, meu rapaz, Marymel está morta, faz parte de uma outra esfera e, por mais que queiramos, nenhuma de nossas lágrimas a trará de volta, restando-lhe um túmulo, para onde irá dentro de algumas horas. Sinto por sua morte, todavia, esse é o momento exato para que novos contatos sejam estabelecidos, antigas amizades retomadas, novas linhas de crédito concedidas...
_ Tinha certeza! – suspira o rapaz. Todo esse furor não é por Marymel, mas pelos próprios bolsos...
_ E o que esperava, “Madre Teresa de Calcutá?” Estamos à beira da bancarrota, se não nos movermos agora, logo estaremos catando papel como os garis da Sé...
_ Limpe essa boca, homem! – pede a mulher, estremecendo-se toda. Deus não será impiedoso com servos tão fiéis às escrituras como nós...
_ Fiéis às escrituras – escarnece o jovem. Quanta audácia! Vocês não mereceriam ser garis, mas internos de um desses manicômios do Estado, em que está confinada a escória que se julga perigosa.
_ Taci! (Cale-se!) – grita Giacomo, indignado com as ofensas do primogênito.
_Usar a morte da única filha para faturar alguns trocados! Nunca pensei presenciar uma insanidade como essa! Hum! Devem também estar torcendo por minha morte, assim poderão posar-se novamente como vítimas, rastejar-se como vermes atrás das migalhas oferecidas por aqueles, que por algum motivo, guardam ainda alguma solidariedade dentro do coração. Se a encenação seguir à risca os mandamentos de Francis Ford Coppola, quem sabe não conseguem tirar os pés da lama.
_Quanta divagação, meu rapaz! Ninguém disse isso! Nunca desejamos a morte de sua irmã...
_ De sua filha, senhor Giacomo Ferrara! – adverte, recobrando-lhe a memória.
As palavras de Pietro são flechas e ferem o coração do velho imigrante, que ao não encontrar o vernáculo ideal para o revide, silencia.
_ Sim! Ela é nossa filha... – acode a mulher, pasma com o emudecimento do esposo.
_Pois não parece! Da forma como dizem, lembra-me uma estranha, alguém que não tem nas veias o sangue da nobreza, por isso a morte é lhe justa!
_ Deixe de sarcasmo, Pietro! Senão lhe tirarei a mesada por dois dias...- ameaça o homem, recuperando-se do susto.
_ Não precisa ser tão cruel, querido! – indigna-se, ao passo que alisa os pêlos do angorá. Um dia basta!
_Abdico-me do dinheiro de vocês! Se quiserem me dar algo, que dêem o direito de velar o corpo de minha irmã com o respeito que ela merece.
_Non sopporto più questa situazione...Che sia! (Não suporto mais essa situação... Que seja! ) – cede o homem, para a alegria do filho e estranheza da mulher.
O conflito é interrompido pela vibração do celular de Giacomo. O secretário de imprensa do Palácio dos Bandeirantes anuncia a presença do Governador e de sua família para daqui a algumas horas, isso muito agrada ao falido empresário, que ao desligar a ligação, diz aos presentes:
_ Uau! Até o governador virá ao velório. Quero ver a cara dos Marcondes... Hum! Não faz um mês, disseram que eu já era, não servia nem para cabo eleitoral do Maluf! Farei questão de pagar aos jornalistas para que muitas fotos sejam tiradas e postas como manchetes nas capas dos principais jornais. Ninguém, depois disso, terá a audácia de me negar algum recurso, pois isso não será uma ofensa só a mim, mas ao próprio governador, que tanto me estima, a ponto de abandonar os afazeres para me visitar numa hora tão ingrata.
_ Isso aí, benzinho! – dá gritinhos de alegria a mulher. Agora só falta avisarmos os Médici.
_ Se Marymel tivesse levado aquele idiota do filho do Rubens para o altar, hoje seríamos donos de metade da cidade, e não estaríamos a caça de trocados, mas a infeliz...ops, a coitada nem isso foi capaz de fazer.
_Você disse que atenderia ao meu pedido, lembra-se? – questiona o rapaz, horrorizado com a insensibilidade dos pais.
_Eu disse? – dissimula o patriarca. Não me lembro! Desculpe! Eu estou bem para receber o Governador, querida?- diz, arrumando o terno bem cortado.
_Perfeito! – confirma a mulher. E quanto aos Médici, temos de avisá-los querido, até porque, vivemos atualmente dos empréstimos que eles concedem às nossas empresas, ainda que os juros quase impagáveis.
_ Tem razão! – concorda, ajustando a gravata de seda italiana, presente de um parente de Milão.
_ Posso até retroceder em meu pedido e aceitar a presença destes abutres, entretanto,
se esse cara entrar aqui, juro, não teremos apenas um corpo a velar, mas dois...- dispara Pietro, encolerizado.
_ Quem, o Ricardo? Pois entrará! Se não fosse pela grana dele, hoje estaríamos a comer capim. – desafia o velho imigrante.
_ Mesmo depois dele ter enviado a todos os nossos amigos aquele e-mail ofensivo, em que se declara gay, sendo Marymel apenas o seu disfarce social?
_ Você acredita mesmo naquele e-mail?
_ Sim! Acho que essa desgraça foi motivada por tal estupidez. Luara, a caçula dos Monteiro de Barros, conversou com Marymel essa tarde, quando ficou sabendo que ela estava na mansão dos Médici para exigir uma explicação de Ricardo. Precisava tirar essa história a limpo, a partir daí, como se sabe, sofrera aquele acidente... Ele é o culpado por sua morte! E se entrar nesse teatro, não garanto sua sobrevivência.
_ Independentemente dos acontecimentos, teremos de prezar por nosso sobrenome e manter a classe, para podermos continuar usufruindo da proteção financeira que nos é oferecida por aquela família. Tão logo estejamos estabilizados, revidaremos a atitude pouco plausível do filho de Rubens, com a agressividade necessária...
_ Terá a coragem de se vender para não ir à bancarrota? Onde está o brio de seu caráter, meu pai? Deixe o sangue em correr suas veias, retire-se desse pedestal e defenda-nos, estamos sendo vilipendiados publicamente por um rapaz arrogante, que só se importa com a própria extravagância... Não deixem que se refiram à memória de sua filha como se fosse a de uma meretriz! Dinheiro algum substitui a honra e a dignidade, pai!
_Taci! – ordena o homem, escondendo os olhos marejados. Nada do que disser me fará mudar a opinião! Por isso, retire-se já, quero ficar a sós com sua mãe, precisamos discutir os últimos preparativos do velório.
O rapaz afasta-se até a porta, antes de se retirar, dá o golpe de misericórdia:
_Talvez Marymel e eu não mereçamos o seu amor da maneira como desejávamos, talvez o seu neto pudesse ser o merecedor...
_ QUE NETO? – inquire, abismado, o patriarca.
_ O que minha irmã carregava no ventre...
Antes que pudesse ser interpelado, Pietro se retira. A mulher devolve o gato à criada e abraça o marido; também está surpresa com a notícia de que seria avó.
_ Dio Mio, che cosa ha fatto per meritare tale castigo? (Meu Deus, o que fiz para merecer tal castigo)
_ Tenha calma, querido!
_O que faremos? Mio amore, aiutami! (Meu amor, ajude-me!)
_ Vamos ligar para o Ricardo, a vida deve continuar, ainda que as dores sejam infinitas e as cicatrizes eternas...
Pietro sobe os degraus que dão acesso ao palco e de lá acompanha com deslumbre cada galeria do grande salão. A suntuosidade do lugar o impressiona. Nunca havia percebido como era grande, arrojado... Sentia como se cada pilar, cadeira e corredor tivessem vida própria, conversassem entre si, observassem os homens e determinassem suas penas. A disposição dos andares, formando uma arena, transformava qualquer figurante daquele palco em célebre protagonista de sua época. Título que certamente seria ofertado à sua irmã pelos agentes da História.
Ao lado do caixão, acompanhado por muitos olhos, entrega-se definitivamente ao choro.
_Senhor Ferrara, nossos pêsames! – deseja o casal Dumont, comovido com a dor do rapaz.
Pietro aceita os cumprimentos sem dizer uma palavra.
A chuva continua a cair...
No hospital, Ricardo desce do banco e diante de uma Maria com a cabeça enfaixada, pergunta:
_ O que aconteceu com você?
_ Digamos que recebi uma visita de alguém que me reavivou as lembranças.
_ O que quer dizer?
_ Isso não importa! Quero apenas saber por que iria fazer isso.
_ Isso o quê? Não estou lhe entendendo! – despista o rapaz.
_ Você não está bem, Ricardo, precisa ir para casa, tomar um banho, descansar, repensar a vida...
_ Do que você está falando, sua empreg...? – indaga, exasperando-se.
_ Antes que possa novamente me humilhar, tenho a lhe dizer duas coisas. Primeira: vi-o nascer, peguei-o no colo depois que sua mãe o amamentou pela primeira vez e disse em seus ouvidos que jamais o deixaria, ainda que pudesse me destratar, porque D. Nathália a mim confiara esse desejo. Segunda: porque, depois de todos esses anos trocando suas fraldas, penteando seu cabelo, arrumando sua mochila da escola, ensinando-lhe a segurar o lápis, aprendi a amá-lo como um filho. Portanto, ainda que tratada como um encosto, uma sombra, jamais o deixarei, aliás, o que seriam das sombras e dos encostos se não acompanhassem suas vítimas?
Ricardo se cala, está envergonhado.
_ Você perdeu sua mãe muito cedo, sofre até hoje com sua ausência, o que não lhe dá o direito de sair por aí fazendo o que quer, revidando nos outros a sua dor, como se isso pudesse mudar alguma coisa... A vida está passando Ricardo, os anos logo lhe pesarão e quando se der conta, não será mais jovem, nem Maria, aquela tola que sempre o protegeu das agruras do destino, estará ao seu lado... O que lhe restará então?
O conforto do silêncio para Ricardo é bem mais aprazível do que se arriscar numa resposta de fácil contestação.
_Quantos amigos você tem, além daqueles que só se interessam por suas contas bancárias? Quantos estão aqui nesse momento, prestando-lhe solidariedade, além de mim? Quantos o amam de verdade e dariam a vida por você? Responda-me, Ricardo! Você está só! Todos o suportam pelo que representa financeiramente, não pelo o que é; no fundo o temem, porque sabem do que você é capaz para alcançar aquilo que deseja. E a culpa não é deles. É sua! Você nunca amou ninguém além de si mesmo...
_ Pare com isso! – ordena o rapaz, saindo da apatia.
_Claro! – ironiza a empregada. Tinha me esquecido, deve ter amado a tal Marymel, aquela garota que conheci há algumas semanas, quando os flagrei nus na saleta de música, e que agora está sendo velada, depois de uma briga contigo...Certo?
_ CHEGA! – explode o rapaz. QUEM PENSA SER PARA FALAR ASSIM COMIGO?
_ A única pessoa que o ama de verdade neste mundo!
Como bombas, as palavras da empregada abalam o coração do rapaz, que já não suportando o peso da própria arrogância, esvai-se em lágrimas. Movida pelo amor de mãe, ela o abraça.
_ NÃO AGUENTO MAIS ESSA VIDA!
_Você não está bem, deixe-me ajudá-lo...
_Você não entende, Marymel morreu por minha causa, assim como minha mãe! Nós brigamos...daí...
_ Você não é responsável pela morte de ninguém; fatalidades acontecem a todo momento, na vida de todas as pessoas! Ninguém está ileso ao acaso!Você deve... – a fala de Maria é interrompida pela campainha do celular do rapaz. Atenda, Ricardo, pode ser importante! – pede, percebendo que ele resistia em aceitar a ligação.
_ Ricardo! Como está, meu rapaz? – pergunta Giacomo, impondo à voz um timbre lúgubre.
_ Não tão bem...
_ Pelo visto, já sabe da morte de Marymel...Estamos todos chocados! Que mal fizemos a Deus para receber tal castigo?
Ricardo não responde, está perplexo com a pergunta, já a empregada, corre os olhos pelo corredor, pois só agora, após desabafar-se, percebeu a ausência de Marcos. Onde ele poderia estar? Seu coração se angustia, prenúncio de que algo ruim está para acontecer, mas o que seria?
_ Em qual andar está internada a filha do doutor Edgar, aquele banqueiro da Avenida Paulista? – pergunta uma enfermeira à outra, a alguns metros, enquanto prepara a medicação dos pacientes.
_ Parece-me que no terceiro... – a resposta da mulher atrai a atenção de Maria, que se levanta de ímpeto, causando estranheza ao filho de Rubens, ainda no telefone com o patriarca dos Ferrara.
_ Não pode ser! – diz a mulher, repetidas vezes, consigo mesma. Ele não seria louco a tal ponto...ou seria?
Como se estivesse hipnotizada por lembranças terríveis, ela se afasta, precisa evitar uma catástrofe, se é que já não eclodiu.
_ Maria, aonde vai? – interpela Ricardo, desviando-se por um momento da ligação, ao vê-la se dirigir para o elevador.
A serviçal não lhe dá atenção, entra no elevador e aperta a terceira tecla. Pela primeira vez, teme que seus pressentimentos se confirmem e naquele quarto, onde há pouco repousava a figura cadavérica de Gabriel, esteja agora apenas a vítima de um homem, que pelo patrão, fora capaz de cometer as maiores atrocidades, até mesmo matar.
A porta se abre, enfim o terceiro andar, de um negrume que intimida a alma, pronto para ser desbravado. Maria toma fôlego e segue seu destino... O corredor está vazio, o silêncio é de um mausoléu. O frio que vem da janela estremece a carne, atiça o medo, descontrola os batimentos cardíacos, a ponto do coração querer sair pela boca. A sensação é a de estar caminhando pelo purgatório, lugar em que as almas recebem o castigo pelos males terrenos.
Diante do quarto de Gabriel, ela faz o sinal da cruz, receia abrir a porta e encontrar apenas o seu cadáver. Com a mão na maçaneta, pensa desistir da idéia, retornar ao oitavo andar e confortar o filho de Nathália, mas a curiosidade – o verme que habita as cavernas sombrias da alma humana – a impede, ainda que isso possa lhe reservar problemas vindouros.
Gira a maçaneta com extrema discrição, mas antes de empurrar a porta, é advertida por uma voz que se emana do final do corredor:
_ O que está fazendo?
Ao voltar-se, reconhece o motorista pela silhueta.
_ Mas...mas...- confusa, a empregada não consegue formar uma frase.
_ O que pensa estar fazendo, criatura? Responda-me! – insiste, bastante alterado, aproximando-se.
_ Eu...eu...pensei que...
_ ...que eu o tivesse matado?
Os olhos de Maria reluzem, clareando a face de um homem apossado pela perturbação.
_ Eu até tentei...- adianta-se. Mas não tive coragem! Como dá primeira vez, fracassei.
_ Oh, graças a Deus, Marcos! – diz, aliviada, ao abraçá-lo. Você me ouviu.
_ Confesso, até tentei, Maria, mas ao agarrar o seu pescoço, ao invés das ordens do doutor Rubens, ouvi apenas seus conselhos, que feito pragas, não me deixaram em paz, enquanto não me afastasse desse quarto.
A empregada sorri em meio às lágrimas de regozijo.
_ O que foi isso em sua cabeça?- pergunta, notando os ferimentos.
_É uma longa história, depois te conto...Agora vamos sair daqui, Ricardo precisa de nosso amparo.
_ Pensei também que fosse a pique depois que lhe dei a notícia da morte daquela tal de Marymel.
_ Por que diz isso? Não pensava que ele gostasse tanto assim dela...
_...pelo que fez, não gostava mesmo!- completa o motorista, com um toque de sarcasmo.
_Como assim? Não estou entendendo nada! Por acaso você está me escondendo algo, Marcos?
_Não sei se devo lhe contar...
_Contar o quê? – diz a mulher, pegando-o pelo braço.
_É algo monstruoso! Quer mesmo saber?
_Fale de uma vez!
Minutos depois...
_Você está mentindo, não está?- indaga, com os olhos anuviados. Ricardo...GAY! Não pode ser, Marcos! Você deve ter ouvido errado...
_ Não! Foi isso mesmo que ouvi – confirma, apoquentando-se. Seu Ricardo sai com homens e num desses encontros fez questão de fotografar e distribuir para toda a cidade, assumindo sua opção, para o desespero da garota, que se viu à mercê das línguas ferinas. Apesar dele dizer que nada tinha a ver com o fato, ela não acreditou; a rixa só não acabou em morte, lá mesmo na mansão, porque me pus entre eles. E o pior, ainda fui chamado de paralítico.
É igual ao pai, carrega no sangue o mesmo gene do mal que desgraçou essa família... – pensa a empregada, afastando-se. Então essa era a tal briga de que me falou e o motivo por sentir-se culpado pela morte da garota...Hum! O meu menino, GAY! Poderia isso ser mesmo verdade, meu Deus? Há alguma coisa errada em tudo isso, eu sinto! Mas o quê?
_ Maria! Fale comigo! Você está bem? Viu porque eu não queria lhe dizer, sei o quanto gosta desse garoto e o quanto sofreria.
Letárgica, ela ignora as preocupações do rapaz, quer apenas encontrar respostas às angústias que agora lhe consomem com a mesma violência de um câncer...
_Diga-me que não é verdade o que li nesta carta, Maria! Diga-me! – brada Nathália, consumida pelo desatino.
_ O que foi senhora? Aconteceu alguma coisa?
_Estou condenada ao infortúnio! – diz, arremessando um abajur contra a vidraça. Meu marido não é homem... E está me traindo com um bombeiro!
_De onde a senhora tirou isso? – diz, levando o pequeno Ricardo ao colo, que chora, assustado com os gritos da mãe.
_Ele não podia ter feito isso comigo! Que dor a minha!- diz, rasgando a carta.
_A maldade humana é traiçoeira e se delícia por ferir corações ingênuos como o da senhora. Com certeza há algum equívoco em tudo isso...
_ O único equívoco foi ter me entregue a um homem de fantasia, que abandona a esposa durante a noite para se deitar ao lado de um outro homem...Mas ele me paga! – ameaça, em meio às lágrimas.
_ Pare, senhora! Pare! Atente-se para o que está fazendo...- tenta, Maria, debalde, conter a fúria da patroa, cujo descontrole termina por destruir a sala de estar.
Agarrado ao pescoço da empregada, o garoto chora, seu desespero é ouvido a distância, atraindo a atenção do jardineiro, que segura a mulher, para que ela não acabe por findar a própria vida.
_O que será de Ricardo, quando entender que seu pai é homossexual? Como encarará seus amigos da escola? Como contará isso à namorada? Sentir-se-á humilhado, vazio, parte de uma mentira, páginas em branco de uma falsa história de amor...- pergunta, desesperada, a uma empregada também transtornada pela revelação. E se carregar no sangue o mesmo gene que desgraça neste momento nossas vidas?
_Acalme-se, por favor! – suplica Maria, comovida com o seu estado.
Os pedaços da carta espalham-se pelo carpete. Horas depois, colados em uma outra página, esclarecem completamente a Maria os motivos que levaram Nathália ao desvario. Rubens era gay! E o mais incrível, ele assinava a própria confissão, o que causava estranheza, pois ele era recatado e não se prestaria a tal baixeza. Havia algo de errado em tudo isso, mas o quê?
_Uma carta...um e-mail... belas maneiras de se contar uma desgraça a alguém, passando-se por outra!
_ Do que você está falando? – acode o motorista, intrigado por vê-la em uma espécie de transe. Você está bem?
_Não se preocupe comigo, eu estou bem!- diz, retornando à realidade, após a fusão das histórias do e-mail, da rixa envolvendo Ricardo e Marymel, da carta e da decepção de Nathália com o marido, o que lhe possibilitou o encontro de respostas a algumas de suas dúvidas. Vamos, Ricardo deve estar precisando de nós...
Ambos retornam ao oitavo andar. Ao saírem do elevador, encontram Ricardo ao telefone se despedindo do senhor Ferrara.
_ Onde vocês estavam? – exige o rapaz, aflito.
_ Precisávamos espairecer um pouco, por isso fomos à recepção tomar um refrigerante, não é, Maria?
_ Sim! – diz a empregada, de maneira fria.
_Marcos, leve-me ao Teatro Municipal.
_ Ao Teatro Municipal? – estranha o chofer, acompanhado pelos olhos desconfiados da empregada.
_ Sim, parece loucura, mas os Ferrara decidiram que lá seria o lugar ideal para o velório de Marymel...
_ Esses grã-finos, até na morte, acham uma forma de se promoverem. Epa, desculpe, senhor!
_ Ricardo – chama a empregada, antes dele entrar no elevador.
_Sim!
Ela não consegue formar uma frase, apenas admira sua beleza.
_Sim, Maria, o que deseja? – insiste, não compreendendo a atitude da mulher. Precisa de alguma coisa?
_Não...não é nada! Vá com Deus! – esquiva-se.
Ele agradece e se afasta, na companhia de um motorista agoniado por vê-la naquele profundo estágio de entristecimento.
A porta se fecha, Maria cai em desespero, receia que a história se repita e Ricardo seja mesmo homossexual, estando entregue às chantagens de um outro Gabriel, assim como esteve um dia seu pai.
_ "A garoa vira tempestade. O rio Tamanduateí, na zona leste, e o córrego do Ipiranga, na zona sul, transbordam, inundando diversos bairros da Capital. Butantã e Pinheiros, na zona oeste, e parte da Avenida Brigadeiro Faria Lima estão às escuras... A Defesa Civil ainda não sabe quanto são os desabrigados!” – anuncia o repórter da Rádio Alphaville, enquanto a limusine é parada em uma blitz da CET, a algumas quadras da Praça Ramos de Azevedo, apesar das horas estarem avançadas. Após ter a placa conferida em uma listagem, é liberada para seguir viagem.
_ O que está acontecendo aqui? Por que paramos?
_A pedido da família Ferrara, somente pessoas autorizadas poderão seguir de carro...
Ao avistar o Mvnicipal, Ricardo se assusta com o movimento.
_Barbaridade! Isso é um velório ou uma festa?
_Parece mais o Desmanche, um forró de quinta lá da Capela do Socorro...- comenta o motorista, com um sorriso brotado nos lábios.
_ O que você disse? – inquire, não compreendendo as palavras do empregado.
_ Eu...eu não disse nada! Quer dizer, disse sim! Disse que o Governador chegará dentro de alguns minutos, pelo menos foi o que me informaram os marronzinhos.
_Até o Governador virá? Poxa, os Ferrara estão jogando alto! Quem sabe assim deixam de sugar o nosso sangue...
Ao descer do carro, Ricardo é cercado por jornalistas, que não perdem a oportunidade de alfinetá-lo, na esperança de que ele revele as razões que o levaram a divulgar aquele e-mail. Percebendo a movimentação, Marcos deixa o volante do carro para defender o filho de seu patrão. Usando de violência, repele a todos de uma só vez.
Ricardo sobe a escadaria sob a sua escolta, sendo surpreendido por um Pietro completamente ensandecido, ao chegar ao saguão.
_ Ricardo Médici! Como pode ser tão insensível? Não se contentaria apenas em usar e abusar da ingenuidade de minha irmã, não é mesmo? Era preciso mais, como zombar de sua memória, diante de uma platéia adoradora do caviar e do circo, posando-se de vítima, como se nada tivesse a ver com sua morte...Você me dá nojo!
_Saia de minha frente, Pietro! Guarde seus escárnios para os de sua laia – revida o filho de Rubens.
Comentários sobre o desaguisado espalham-se pelo teatro, atraindo a atenção dos convidados, que preferem prestigiar o desenrolar da baixaria à Ave Maria, de Schubert, conduzida com perfeição pela Orquestra Sinfônica Municipal.
_Tem razão, não sou de sua laia, não procuro homens durante a noite nem me utilizo de garotas inocentes para manter ocultos os meus mais íntimos desejos sexuais...
_Olhe primeiro para os bolsos de seu pai para depois falar de meus supostos dotes – rebate, com os olhos inflamados e a saliva amontoando-se nos cantos da boca. Posam-se de ricos, quando não passam de uma plebe desvairada, sufocada pela própria ambição...
_Aqui você não entrará e, se o fizer, será um homem morto! – ameaça o herdeiro dos Ferrara.
_Deixe-o entrar, senhor! – pede o motorista, entrando na frente de Ricardo. De uma vez por todas, deixem as diferenças para depois, estamos em um funeral.
_Claro que entrarei e não será um desclassificado como você que me impedirá. – desafia o ex-namorado de Marymel.
_ Pois tente e verá o que acontece! – ameaça Pietro, contorcendo os punhos.
Todos aguardam a reação de Ricardo, que para a decepção de Marcos, é tão provocativa quando a do herdeiro dos Ferrara.
_ Veremos!
Quando o afortunado rapaz dá o primeiro passo em direção ao corredor que desemboca no palco, Pietro livra-se do motorista e lhe acerta a face com um soco...
XII
A ópera do desespero, cujas notas inspiraram Edvard Munch* na criação de O Grito – uma das gravuras mais aclamadas da crítica moderna, por seu expressionismo adquirir caráter simbolista, de teor quase histérico – ecoa pelo tempo, prenúncio de que o portal que separa a vida da morte, a esperança da descrença, a vitória do infortúnio, a fragrância da podridão, novamente se abrira para a passagem de uma carruagem envelhecida, conduzida por um chofer coberto por um manto negro, adornado com penas de urubu e essência de enxofre, tendo nas mãos cadavéricas o sangue dos grandes holocaustos humanos.
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* Antecipador e um dos criadores do expressionismo, Munch foi pintor e gravador de angústias existenciais e ameaças invisíveis. Junto aos dramaturgos Ibsen e Strindberg, sintetizou o fin-de-siècle escandinavo.
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Os anjos choram, as trombetas tocam, o paraíso entra em crise e o inferno saboreia o momento, logo uma de suas vítimas também cozinhará no grande caldeirão da maldade, para onde se encaminham as almas perdidas. Gargalhadas de regozijo se confrontam com as lágrimas de misericórdia.
O tilintar da carruagem estremece o corpo de Gabriel, que se contorce, como uma cobra acuada, tentando se libertar das mãos famintas de um motorista atormentado, que deseja encontrar em sua morte o consolo tão almejado à própria vidinha Nelson Rodriguiana.
Os olhos saltitam reluzentes diante de uma face devastada pela vermelhidão. A saliva desce desatinada pelos cantos da boca, o ar já não encontra os pulmões, o coração bate descompassado, como se quisesse sair pela boca... Seu fim já é aguardado, a carruagem está aberta, com o chofer à porta, pronta para aprisionar sua alma e condená-la à dor eterna.
_Morra, desgraçado! – esbraveja o motorista, como se algo o possuísse, impedindo-o de ter a real noção do que está para perpetrar.
Dona Marta, medicada com um calmante horas atrás, permanece adormecida, enquanto seu filho, uma criatura incógnita, debate-se contra a fúria de seu assassino.
_Pied...- suplica o infeliz, numa voz quase inaudível.
O suor de Marcos respinga sobre os de Gabriel, que luta como guerreiro pela sobrevivência, sem perceber que ao seu lado, além do servo de Rubens, está o chofer, sorrindo feito uma hiena, afinal, ele é o único a contabilizar lucros nessa noite amaldiçoada.
Mergulhando nos olhos do desbravador, Marcos revive os motivos que o fazem cometer tal atrocidade...
A noite zomba dos tolos que encontram nos santos de barros a cura para todos os males da humanidade. As corujas piam ao som dos prantos que se levantam a cada corpo encontrado no desmoronamento em que estão Gabriel e sua equipe. A chuva não cessa, novas tragédias são aguardadas durante a noite.
Exausto, o jovem bombeiro pede para se ausentar alguns instantes, precisa comer algo, está há horas sem se alimentar. Ao aproximar-se de uma das viaturas, é surpreendido pela figura nada ingênua do motorista.
_ Marcos, o que faz aqui?
_Vim buscá-lo, senhor! Doutor Rubens não está bem.- dissimula o criado.
_ Como assim? Você está me assustando...O que tem o Rubens? Eu o vi no cair da noite, quando esteve aqui e, pelo que me parece, estava muito bem... Você mesmo viu, nós brigamos! Não entendo o que se passa, seja mais claro, por favor!
_Depois que saímos daqui, doutor Rubens chorou muito, não acreditava poder perdê-lo, de certa forma, sentiu-se inferior, assim como um inseto, por ter sido trocado por essa gentinh... esse povo!
_ Pessoas estão soterradas, algumas ainda vivem debaixo dessa lama e, naquele momento, uma criança resistia à morte, salvá-la era meu dever. O que ele queria que eu fizesse? Que eu a deixasse ser devorada pelos vermes e caísse em seu colo, como um daqueles amantes alencarianos desalmados? Ó, me desculpe, Marcos, mas amar o próximo, estender-lhe a mão quando mais necessita faz parte de mim, de minha essência!
_ E abandonar o homem que mais o ama nesta vida durante um enfarte também?
_Enfarte???- atemoriza-se o herói da plebe. O que você está dizendo?
_Tão grande foi sua dor, Gabriel, que ele enfartou durante o retorno a Alphaville.
_ Meu Deus!- as mãos escondem-lhe a face. Eu nunca pensei que isso fosse acontecer... E onde ele está agora?
_Enfrentou a própria mulher para que eu viesse buscá-lo...será a última despedida!
_Mas...é tão grave assim? – indaga o rapaz, com os olhos anuviados.
_Os médicos lhe deram mais algumas horas de vida!
_ MEU DEUS!
O choro penoso de uma mãe o atrai. Com o filho de oito anos morto sobre os braços, ela cobra de Deus explicações para tal crueldade, como se sua desgraça fosse uma sentença divina. Comovido, Gabriel dá alguns passos em sua direção, mas a imagem de um Rubens adoecido o faz recuar. Ainda que os gritos dos soterrados lhe aflijam os ouvidos, a dor de uma mãe ao perder um filho lhe mortifique o coração, partir é o seu destino, pois o homem que ama agora agoniza à sua espera...
_O senhor irá?- cobra o empregado, com um estranho sorriso nos lábios.
_Sim!- responde, virando-se.
Marcos abre a limusine. Os bancos estão forrados por uma capa plástica escura, causando estranheza ao bombeiro, que desiste de interrogar o criado, visto que a viagem será longa e cansativa!
Os minutos se perdem na imensidão das horas...
O desbravador não resiste à exaustão e adormece. Vendo-o pelo retrovisor, Marcos gargalha, enquanto aperta uma tecla de rediscagem contida no painel do carro. A ligação é completada. Rubens pergunta:
_ E o otário?
_Dorme como um príncipe...ou seria princesa? – ironiza o serviçal, para o deleite do patrão.
_E o que fez para tirá-lo do meio daquela gentalha?
Marcos assemelha-se à Odete Roitman* na gargalhada.
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*Personagem idealizada pelo autor Gilberto Braga à atriz Beatriz Segal na novela Vale Tudo, de 1988, transmitida pela Rede Globo de Televisão, cujo legado de maldades entrou para a história da telenovela brasileira.
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_Fale, imbecil! – diz, irritando-se com o gesto nada cavalheiro do serviçal.
_ Contei-lhe uma daquelas “lorotas derruba coração”.
_ Como assim? Não entendo esse linguajar de boteco, fale como gente, animal!
_Disse-lhe que o senhor havia sido vítima de um enfarte, tal era o sofrimento ao ter sido deixado de lado por um bando de marginais...
_ E daí...? – inquire, alterando o timbre da voz para a comédia. O que aconteceu?
_ Como o senhor está nas últimas, chama-lhe o tempo todo, ainda que isso cause profundas feridas no coração de Dona Nathália.
O empresário ri com gosto da maldade contada pelo empregado.
_Você foi genial, Marcos! Merece um bom aumento!
_O senhor sabe que eu não quero aumento algum, quero é minha carta de alforria, pois a liberdade me espera!- vocifera o criado.
_"Libertas quae seras tamem"– debocha o patrão.
_ Deixe de ironias, doutor Rubens, quero minha liberdade! Sonho com isso todos os dias.
_ Mas você é livre, a escravidão já não existe mais neste país tupiniquim, fora banida há séculos por uma excêntrica que se intitulava princesa...
_Não me refiro à essa escravidão, mas àquela que é alimentada pela chantagem.
_Hum! Faça o serviço bem feito, quem sabe dessa vez, os ares da liberdade resolvam baixar em seu terreiro.
Marcos emudece.
_Marcos! – chama o empresário, alguns segundos depois.
_Não deixe rastros, o serviço deve ser fiel ao roteiro original.Quero esse infeliz estirado ao vento o quanto antes...Hum! Terá o castigo que merece por ter me tratado como um qualquer. Sou Rubens Médici, dono de metade desta cidade e não será um Gabriel da vida que me fará beirar os vermes que estão a fenecer nas entranhas daquele morro.
_Sim senhor!
O telefone é desligado.
O motorista cruza uma extensa avenida que dá acesso à favela Pantanal, em Cidade Júlia, divisa da zona sul da capital com o município de Diadema.O tráfico se levanta com o som do motor da limusine. Olheiros estão por todas as partes. Homens armados se arranjam no topo dos becos, prontos para dispararem ao primeiro sinal.
Relâmpagos clareiam o céu. O vento traz de novo a garoa, que lambe com vontade o corpo daquelas criaturas desumanas. Um garoto de uns 14 anos, de figura esquálida, com um bermudão vermelho fazendo combinação com uma camiseta regata da mesma cor e um chinelo meia sola, portando uma dessas metralhadoras só vistas nos filmes do Rambo, põe-se à frente do veículo, forçando a sua parada.
Marcos abre de ímpeto o porta-luva e retira um embrulho. O garoto se aproxima, bate no vidro com o cano da arma. Ao seu redor, saídos da escuridão, mais três outros moleques, também magricelos, maltrapilhos, sujos, com armas em punho, como se a vida se resumisse apenas ao disparo de suas balas. Um retrato perverso da pobreza desse imenso e rico país.
_Abri logo, mané, senão eu ti encho di furo...- diz aquele que se pôs à frente do carro, para a alegria dos companheiros, que demonstram já não suportar o desejo de meter suas balas na cabeça de algum filhinho de papai.
_Tá louco, Coroné? – pergunta Marcos, ao abrir o vidro. Sou eu, o Matador.
_ Mais é ocê, truta? Eu nunca que ia te reconhecê num carrão desse. Por acaso robô ondi? Fala aí, irmão...
_Por onde andava, Matador? – pergunta Pau d’água, o maior da gangue e talvez o mais velho, achegando-se. Mais tá gordo, hein? Devi di tá comeno carni a semana toda, né vagamundo? Aí, como saiu da cadeia? Num tinha pegado trinta anos?
_Tive a ajuda de Deus!- limita-se a dizer o empregado.
_Sei! De Deus i da bufunfa...
_É verdade!- concorda o motorista. E a mina, continua gostosa?
_Dei um fim nela dia desses, catei ela com um da rua de cima...Cê sabi, né? Posso sê criminoso, mas um corno, isso não!
_Gostei de ver! – parabeniza o empregado com um grande sorriso na face.
_ Mai o que te traiz a essas banda onde Juca perdeu as bota e a muié? –pergunta Coronel.
O sono pesado de Gabriel o impede de assistir às cenas que precedem aos seus últimos minutos.
_Preciso da ajuda de vocês! – diz, entregando o embrulho ao líder da gangue.
_ Pois fali, nóia, semo todo ovidos! – atende Coronel com satisfação, ao perceber que dentro do saco havia uma fortuna em cruzados novos.
_ Tá vendo o fulano que dorme aí atrás...
As horas cavalgam...
A limusine chega a um barraco, numa ribanceira, dezenas de léguas da entrada da favela, em uma região conhecida como o “depósito de corpos”, onde até mesmo a polícia se acovardaria a desbravar.
Marcos desce do carro, olha para os lados, não há ninguém. Abre a porta do passageiro, chama pelo bombeiro, que só desperta na terceira chacoalhada.
_Ahn?! Onde estamos? – pergunta, bastante sonolento.
O empregado não responde. Antes que uma nova pergunta pudesse ser formulada, Gabriel é atingido na cabeça com um pedaço de telha, golpe este, desferido pelos garotos do Coronel, que demarcam a área com disparos ao céu.
O desbravador ensaia uma resistência, mas o cansaço o aniquila. Antes de se render, encontra os olhos do empregado, que reluzem como fogo na escuridão. Ali percebe ter caído numa emboscada, cujos motivos ainda lhe são ignorados.
_O que acont...
_Acalme-se!- ordena o chofer, numa voz beirando à chacota. Você não gosta da plebe? Pois então, o meu patrão lhe enviou esses filhos do lixo para saciá-lo, já que você prefere a carnificina do morro à fragrância doce e irresistível dos grandes e luxuosos apartamentos por onde um dia ousou pousar suas asas...
_ Ruben...- Gabriel desmaia com um segundo golpe na cabeça, dessa vez, um tijolo.
Os garotos o levam para dentro do barraco. Por todos os cantos há sobras de construção e alguns móveis envelhecidos. A impressão era de que alguém havia ocupado os cômodos do casebre, porém, flechado talvez por uma ameaça, caira no mundo, deixando o pouco que tinha para trás.
Pau d’água despe o “herói da plebe” a mando de Coronel, sendo o primeiro a estuprá-lo. Em seguida, como se cumprindo um ritual, apresentam-se os outros. Sob o efeito de entorpecentes, zombam do corpo do pobre homem, que desacordado, não reage à agressão. A selvageria, em seu espetáculo mais desumano, é fotografado pelo motorista, a pedido do doutor Rubens Médici.
Até ele, atiçado pelos servos do tráfico, termina por acometê-lo também. O prazer é a libido da droga que se resvala na mente e na alma dos tolos que imaginam ser Deus, quando, no entanto, não passam de vermes que apodrecem vivos.
_Gostei, Matador! Servicinho bão esse que tu nos troxe. Gastei as energia da semana...- escarnece Coronel, com um papelote de maconha entre os dedos. E agora, o que cê qué que nóis faiz? Só mandá!
_Quero que vão embora! O serviço de vocês terminou.
_ Comu? Já? Mai nóis pensou que ia ferruá a cabeça dessi infeliz como naqueles firme do Rambu!
_Não! Esse serviço é meu! – responde, cuspindo sobre o rosto da vítima.
_Mai é memu? Num tem jeitu di nóis dividi u sirviço? Pô, cara, tô com mó vontade de vê os miolo dessi cara pipocá pelas parede...
_Já disse! O resto do serviço é meu! Entendeu? – brada o motorista, pondo a mão na arma que está presa à cintura.
_ É melhó a genti i imbora, Coroné, sabi como o Matador é, né? O bicho não vali um traqui, se resorve atirá, mata nóis tudo!
_ Tá certu!- concorda o rapaz, ao avistar Marcos se preparando para sacar a arma e derrubar impiedosamente as vidas ali presentes.
_ Agora vão!- ordena o serviçal.
Mesmo contrariado, Coronel é levado pelos comparsas, acovardados pela habilidade de Matador com a pistola.
Marcos abre a limusine, retira a capa plástica que se revela um invólucro para defuntos, retorna ao barraco, saca a arma, carrega-a apenas com uma bala – um costume seu, gira a roleta e a engatilha. Todo o processo é acompanhado por espantoso prazer.
A passos lentos aproxima-se do bombeiro e ri ao vê-lo todo ensangüentado, pois não há satisfação maior do que ter a certeza de que uma alma boa poderá também ser condenada ao esquecimento por toda a eternidade.
A máquina fotográfica é posta em uma metade de pia pendurada à parede, enquanto o calibre da arma corre o corpo do rapaz até encontrar a cabeça. Roça seus cabelos com uma frieza de causar inveja até mesmo a João Acácio Pereira, o Bandido da Luz Vermelha* . Não há remorso que o faça desistir de estourar seus miolos.
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* Um dos maiores criminosos da década de 60, ele invadia mansões na madrugada, usando um macaco de carro com uma lanterna de foco vermelho em punho. Dominava a família, estuprava, matava e roubava.Preso, foi condenado a trinta anos de reclusão por quatro assassinatos, sete tentativas de homicídio e 77 assaltos.
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_ Bicha! Vou despachá-lo dessa para pior...Será minha carta de alforria, o meu passaporte à liberdade.
Com a arma engatilhada rente à nuca de Gabriel, prepara-se para o tiro de misericórdia. Prestes a dispará-la, é surpreendido por um trovão, que sacode a terra e o desconcerta; momento ideal à reação da vítima, que recobrando a consciência, reúne todas as forças em um golpe fulminante que o joga longe. Asfixiado, Marcos solta a pistola que, comandada por forças divinas, atinge o chão e dispara contra o teto a única bala.
Possuído pelo ódio, Gabriel quer apenas vingança. Ignorando a dor e o heroísmo quase mitificado pelos atos de bravura, serve-se de um pedaço de lajota, cuja ponta, afiada como a de uma faca, crava o joelho do motorista.
O grito é medonho, assim como é a figura de cabeça estremecida retratada por Edvard Munch, na obra de mesmo nome. Acuado, Marcos tenta desesperado, atrair a atenção de Coronel e seu bando, que já vão longe.
_ Por que, Marcos? Por que fez isso comigo? Eu nunca lhe fiz mal...- exige o bombeiro, pegando-o pela gola e o imprensando contra a parede.
_Piedade! - suplica o chofer, já não sentido a perna atingida.
_Piedade? Seus gestos monstruosos me fizeram esquecer o significado dessa bela palavra.
_ Eu não tenho culpa, só fiz o que mandou o doutor Rubens...
_Rubens? Então era tudo mentira?! Ele não enfartou...? Tudo era mentira! Por quê? O que eu lhe fiz para merecer tal castigo? O quê? Fale!!!!
O silêncio de Marcos o enlouquece, a ponto de esmurrá-lo até as forças se esvaírem. Todo ensangüentado, o motorista rasteja até a porta, quer se livrar do monstro que se emerge daquele corpo outrora salvador. Coitado, mas a sorte não está mesmo do seu lado. Gabriel golpeia-lhe as costas com a lajota, causando-lhe cicatrizes eternas.
_Vixe, o Matador não perdoa memu, né Coroné? Os grito do cara estão batenu nos meu ovido – diz Pau d’água, amedrontado com a gritaria.
_ Se é! – confirma o líder do grupo. Ele é um fominha, tamém queria podê ter vomitado minhas balas naquele frutinha...Mai vamu ino, temo muito pó pra vendê.
E se embrenham pelos barracos do morro, desaparecendo na escuridão.
Caindo em si, Gabriel chora ao ver o motorista gemendo diante de seus pés, suplicando clemência. Incapaz de findar o homicídio, abre a porta e sai. A chuva lhe vem de encontro. Rubens, o amor de sua vida, havia-lhe assassinado não o corpo, mas o coração. Descontrolado, olha o céu com desdém e grita. Ali nasce o Desbravador de Identidades.
O som de um alarme, tão potente como o trovão de há pouco, resgata o motorista do fosso das lembranças macabras. É o aparelho que monitora os batimentos de Gabriel denunciando sua partida.
Não tendo como desligá-lo, Marcos solta o pescoço do rapaz e se aloja atrás da porta do banheiro. Poucos são os segundos que o separam da equipe médica.
Dona Marta desperta com o entra e sai de enfermeiros e desespera-se ao assistir aos esforços da equipe médica para manter vivo seu único filho.
Retirada da sala, a porta é fechada. O bombeiro encontra-se em transe, completamente indefeso diante de uma premeditada parada cárdio-respiratória.
Toda a tecnologia ressuscitativa atual é utilizada para mantê-lo consciente, parte do mundo dos vivos. Por mais que vozes se levantem em protesto, Gabriel nunca esteve sozinho, certamente alguém ou alguma coisa, em algum canto desse planeta, senhor de um poder absoluto, comovia-se com sua história, auxiliando-o em momentos difíceis como este. Pois assim as palavras ganham corpo. Contrariando expectativas, lá está o desbravador, alçado do vale das sombras da morte, causando ira no coração do chofer da carruagem, que regurgita impropérios ao Céu, tal é sua decepção. O portal, aberto para receber a alma de mais um condenado, é novamente fechado.
A mesma ira também se manifesta na alma do criminoso motorista, que bate os punhos contra a parede, ao vê-lo pela fresta da porta safar-se mais uma vez do corredor da morte, das labaredas do inferno.
Após uma breve avaliação, a equipe opta por transferi-lo à unidade de terapia intensiva, no oitavo andar; uma nova parada seria fatal! A maca invade o corredor, tomando seu rumo. Antes que a porta fosse fechada, uma das enfermeiras, do lado direito do quarto, rente à porta do banheiro, ouve as batidas e resolve checar. Marcos se recolhe, o flagrante se aproxima...A porta é aberta devagar! devagar!
_Senhor?!!
_ Eu não fiz nada! – grita o empregado, entregue ao surto. Eu não fiz nada! Foi ele...Foi...ele...é...
_ Senhor?! O que há? – pergunta a mulher de meia idade, usando um dos longos da nova coleção de Alexandre Herchcovitch, acompanhado de um colar de brilhantes com detalhes em ouro. Não obtendo êxito, apela aos transeuntes. Alguém pode me ajudar, este senhor não está bem...
_ Nãããoooooooooo!!! Foi ele...foi ele...
_ Ele quem? Do que está falando, senhor? – intervém, sacudindo-o.
_ Ahn?! Onde estou? – indaga, confuso, visualizando os adornos em estilo barroco que contornam o saguão de entrada do Theatro Mvnicipal.
_ Que susto o senhor nos deu! – diz um magnata, atraído pelo pedido de ajuda. Pensávamos que iria dessa para melhor!
_ O senhor esteve desfalecido por alguns minutos, após bater a cabeça contra o pilar – responde a mulher.
_ Te-teatro...? Sim, o teatro...claro!- diz, aliviado, olhando para os lados.
Ensaia levantar-se de uma vez, mas uma dor de cabeça lhe dificulta o equilíbrio.
_Estou meio zonzo! Aliás, como eu vim parar aqui? Eu estava na escadaria...
_ Pedi a alguns cavalheiros que o trouxessem...Contenha-se, logo o mal-estar cederá.
_ Agora me lembro...eu...eu entrei na frente do seu Ricardo e fui empurrado...nossa! Por falar em seu Ricardo, onde ele está?
_ Acalme-se! – diz, percebendo sua inquietação.
_ Mas...mas...e o seu Ricardo?
_...Médici? Ricardo Médici?
_ Sim! Onde ele está?
_ Na escadaria! O desaguisado entre os Médici e os Ferrara está como pólvora.
_ O que aconteceu? Fale!..
_ Pietro e Ricardo se atracaram, sendo necessária a intervenção dos pais da falecida. Aliás, que sina a desse casal! Não tem paz nem para velar o corpo da filha...
_ Seu Ricardo precisa de mim! Ajude-me a chegar até a escadaria. Por favor!
Os argumentos apresentados pelo motorista convencem-na a levá-lo até o local da rixa. Os convidados, como se estivessem numa dessas bolsas de apostas do Jóquei Clube, empregam altas cifras em nome de um ou de outro. Aos vencedores do páreo, fortuna suficiente para uma longa temporada de férias em algum dos países da zona do Euro. Velando o corpo da garota, por ironia do destino, somente a babá do angorá turco.
_ Adesso smettetela, voi due!(Agora parem com isso, vocês dois!) – ordena o patriarca, entre Ricardo e o filho. O que pensa estar fazendo? – volta-se a Pietro. Agindo dessa maneira, você arruinará o velório de sua irmã! Seremos chacota na boca da mídia, da sociedade...Atente-se para o presente – sussurra-lhe, você está decretando a nossa falência!
_ Falência? – escarneia Ricardo, na outra ponta, contido por um dos seguranças do evento, após ler a palavra nos lábios do italiano naturalizado brasileiro. Vocês já estão mortos e enterrados há anos...Se ainda não se abrigaram das surpresas do tempo em um dos vastos becos da cidade, é porque meu pai, na sua tola bondade, bancou-os até agora! Mas assim como o rio, um dia tudo tende a secar...Nunca mais verão a cor do nosso dinheiro!
_ Oh, my god!– dá gritinhos de histeria a matriarca, enquanto aperta o bichano contra o peito. Ricardinho, não faça isso conosco! Pietro está apenas brincando, não é?- volta os grandes e iracundos olhos para o herdeiro da família. Não é? Fale, infeliz!
O cinismo contido nas palavras da mulher atiça-lhe ainda mais o ódio, a ponto dele mandá-la calar-se.
_ Respeite sua mãe! – exige Giacomo, com os punhos prontos a desferirem um golpe contra o próprio filho.
_Vai querer me bater agora, meu pai? Veja quantas câmeras estão ao nosso lado, captando cada uma de nossas ofensas... Pois faça de minha carne o seu consolo, entregue nossa estirpe aos lobos, afinal, não queria a atenção da mídia, dos abastados ao transformar o velório da filha na versão mais perversa da obra de George Orwell * ?
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* George Orwell (1903-1950) é o nome literário do escritor inglês Eric Blair. Nascido em Bengala, educado em Eton, e tendo atuado na Polícia Imperial da Birmânia, ele retornou à Europa para ganhar a vida escrevendo ensaios e novelas. George Orwell foi um escritor essencialmente político. Sua obra é um manifesto de ódio ao totalitarismo, à hipocrisia, à mentira e à crueldade humana. De sua coletânea, destaque-se o livro 1984, em que aparece o onipresente Big Brother, que inspirou a criação da série de TV de mesmo nome, hoje sucesso em muitos países do mundo. Morreu aos 47 anos de idade, deixando um trabalho que é leitura obrigatória para quem quiser entender um pouco da natureza política do ser humano.
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A multidão, agora contando com a presença dos músicos da Orquestra, flecham-lhe o coração com olhares de indignação, levando-o a desistir da idéia.
_ Vocês são loucos!- diz, apontando para os pais. Tenho nojo de pertencer a este clã! Preferia estar num desses becos de que mencionou, Ricardo, a ter de compartilhar dessa perigosa fantasia...
_ Perigosa fantasia? – assusta-se Ricardo com a sinceridade do rapaz. Como assim?
_Sim! Ainda não percebeu? Isso tudo é um faz de conta, uma maneira inusitada de conseguir alguns tostões às custas da morte de Marymel para evitar uma falência que já nos engoliu há muito tempo... Estamos no buraco, enterrados até o pescoço em dívidas impagáveis; se ainda ostentamos algum status é porque seu pai, “na sua tola bondade”, como mesmo disse, nos mantém... Por que faz isso? Não sei! Quem sabe meu pai possa responder...
_Taci!!! – brada, com a cólera assaltando-lhe os olhos. Abomino-o com todas as forças de meu coração!
Esquecendo-se das câmeras por um instante, acerta a face do filho com um soco.
_ My goooooooodddddddd!!!!!!!!!!!! – desespera a matriarca, desfalecendo em seguida, enquanto o angorá, agora livre, encontra a rua.
O carro do Governador pára diante da escadaria, presencia partes do acontecido, mas antes de ser anunciado, retorna ao Palácio dos Bandeirantes.
_ Bata mais! Tente calar minha boca à força! Vamos, senhor Giacomo Ferrara, de minha parte não haverá qualquer tipo de resistência – desafia o rapaz, limpando o sangue que lhe desce em quantidade pelo nariz.
Liberado pelo segurança, Ricardo aproxima-se do rapaz, mostra-se comovido com sua coragem.
_ Você também deseja me acertar, Ricardo? – indaga, encontrando os olhos estarrecidos do herdeiro da família Médici. Ela morreu por sua culpa... A mando desses urubus, ela o procurou, cedeu aos seus encantos, tudo porque queriam a segurança de seu dinheiro... – cai em pranto.
_ Non è vero, Ricardo, non sono il mostro che Pietro ha detto...( Não é verdade, Ricardo, não sou o monstro que Pietro diz...)
_ Você a desgraçou com aquele e-mail. – continua o rapaz, como se não tivesse sido interrompido. Era para ser como um desses típicos golpes da raposa contra o cordeiro, como estamos cansados de assistir, mas ela apaixonou-se por você. E o que recebeu em troca? Nomes como insossa, atrevida, prato secundário de um homossexual enrustido.
_ Vamos sair daqui! – aconselha o motorista, achegando-se ao primogênito dos Médici. Não lhe dê ouvidos, é um louco, cujo prazer é denegrir imagens alheias, como se a humilhação a que expôs sua família já não lhe bastasse.
_ Per favore, ferma!( Por favor, pare!)Respeite a memória de sua irmã.
_ Respeitar minha irmã? – soluça em meio às lágrimas. Foi o que eu sempre fiz! Minha consciência está limpa. Já a de vocês...- volta-se para Ricardo e Giacomo...não estará carregando apenas uma morte nas costas, mas duas.
_ Do que você de está falando? – indaga Ricardo, quebrando o silêncio.
_ Marymel estava grávida.
_Gra...grávida??? Como as-sim?
_ Ela estava esperando um filho seu!
_Um filho meu? Não pode ser...
_ Estava de três meses!
_ Não...um fi...filho meu? Não pode ser...Um filho meu !!! – a revelação estremece-lhe todo, a ponto de apoiar-se em Marcos para não cair.
_ O senhor está bem? – pergunta o criado, ao perceber que ele poderia esmorecer a qualquer instante.
_ Um...um filho meu!!!!! – assombra-se.
_ Um filho é sempre uma dádiva, a prova divina da existência de um Deus poderoso... – diz sua mãe enquanto lhe penteia o cabelo.
_ Eu também terei filhos um dia? – interroga-lhe Ricardo, na ingenuidade de seus cinco anos.
_ Sim! E serão tão abençoados como você, meu anjo!
_ Um filho...
_ Sim, um filho seu! Incinerado como a mãe, preso pela eternidade naquele caixão...
_ Não!!! – diz, desconsolado, ao libertar-se da letargia. Não pode ser!
Enlouquecido, sobe a escadaria, acessa o saguão de entrada, toma o corredor lateral, desembocando no palco, onde está o corpo da mulher que o amou, e do filho, a obra divina que lhe seria ofertada em breve.
_ Um filho!!!! Você iria me dar um filho???? O que foi que eu fiz, Marymel??? – pergunta-se, aos prantos, sob testemunho do empregado, ignorando a nova gritaria que se desperta do lado de fora, devido a um outro acidente.
Ao saber da morte de seu “bebê”, atropelado minutos atrás por um caminhão, Lícia tem um desses piripaques de perua rica, só testemunhados em cenas de novelas das oito.
_ Meu Deus, meu bebê não! Nãooooooooooooooo! Eu também quero morrer!!!!!!! Nãoooooooooooooooo!!!!!!!!!!! Ele não! Ele não! Coitadinho, era meu filhinho do coração, aquele que sempre me entendia e me confortava nas horas difíceis.
Corre até o gato.
_Como pôde isso acontecer??? Por que Deus permitiu esta barbárie??? – pergunta a mulher, agarrando-se aos braços do marido.
_Como são as coisas. Nenhuma lágrima derramou pela filha e pelo neto, mas pelo gato...hum! – alfinetam duas celebridades ao passarem pelos restos do bichano.
XIII
A multidão, entoando o Hino Nacional contra os desmandos da aristocracia ditatorial, marcha pelas principais avenidas de São Paulo, lotando a Sé, a Benjamim Constant, o Viaduto do Chá, a praça Ramos de Azevedo, a Conselheiro Crispiniano, a São João, o Anhangabaú. São Milhares de homens e mulheres, crianças e idosos - brasileiros oprimidos por um regime totalitário que, de mãos entrelaçadas, braços para cima, gritam os sonhos presos na garganta há mais de uma década, exigindo a liberdade então sepultada, o direito ao voto, o fim do autoritarismo, da perseguição política e da repressão civil.
Uma chuva de papéis picados de cor amarela - a mesma que representa a luta pelas Diretas-Já - reluz no céu à luz dos holofotes, sinalizando o nascimento de um país mais justo, alicerçado nos princípios da legalidade, da igualdade, da fraternidade e da verdade – pilares de um regime conhecido como Democracia, que se levanta em todas as principais regiões do planeta, levando corruptos à prisão, políticos de índole duvidosa ao exílio e representantes do povo ao poder.
A coragem daquela gente varre as ruas, desafia os generais, expondo à comunidade internacional a politicagem rasteira que ainda hoje faz morada nas entranhas mais nobres da Brasília de Kubitschek.
A maior movimentação política de um Brasil renascido das cinzas entra para a história, ganha as capas dos principais veículos midiáticos do mundo, atraindo a atenção dos líderes das grandes potências, que não compreendem o fato, pelo modo pacífico como é conduzido, sem o disparo sequer de uma bala.
“O pacifismo ascendeu o desejo intrínseco do povo de ver no topo-mor de seu país, a aura sublime da liberdade de expressão, esta chama que agora aquece e alimenta a alma e o coração de cada brasileiro” - declara um popular à reportagem da Rádio São Paulo.
"Me perguntaram se aqui estão 300 ou 400 mil pessoas. Mas a resposta é outra: aqui estão presentes as esperanças de 130 milhões de brasileiros", diz durante seu discurso em um palanque montado no Anhangabaú, o governador Franco Montoro Filho.
_ Esperanças de 130 milhões? Eu não me incluo nesta lista!Aliás, desde quando o brasileiro tem direito à liberdade? E liberdade para quê? Por acaso isso enche barriga? Paga a passagem do coletivo? Pobres são como negros na senzala: gritam até persuadirem a mídia, conquistam direitos que mal sabem para que servem e, depois de conquistados, perguntam-se: “_ Para que conquistamos isso mesmo?” Hum! Como fazem agora... Quando perceberem o erro que estão cometendo, dirão: “A vida era melhor no tempo dos generais, naquela época eu comia, tinha saúde de qualidade, escola boa para meus filhos, sempre sob a proteção daqueles homens de honra, defensores natos da família brasileira...” Idiotas! Isso que dá se aliarem à politicagem rasteira de sindicalistas alucinados como o tal do Lula... – regurgita Rubens, enquanto mexe a cabeça em desaprovação, ao assistir à “romaria” do décimo andar do edifício onde está situado seu escritório.
Voltando-se para o interior do escritório, pega um calhamaço em cima de uma poltrona e se ajeita em uma mesa, no fundo da sala. Iluminado por um abajur, lê com atenção cada folha, como se fizesse uma revisão de algum documento que pudesse mudar sua vida. A leitura é interrompida pelo tilintar do telefone.
_Sim! Fale, D. Marisa!Ela está aqui? Então a mande entrar!
Enquanto o telefone é posto no gancho, os olhos encontram um relógio, com detalhes em prata, à sua esquerda, que anuncia às 21h00. O calhamaço é guardado em uma das gavetas, a mesa arrumada e as luzes da sala acesas.
A porta se abre. Servido de um copo de whisky escocês, Rubens volta-se para a visita e com um sorriso maquiavélico, indaga:
_O que faz aqui a esta hora da noite? Aconteceu alguma coisa? Oh...me desculpe, como sou indelicado...Aceita um copo de whisky ou prefere uma...uma boa dose de cocaína?
_Com quem pensa estar falando, seu pobre de espírito?
_Pobre, eu? Nem de espírito! Já você, olhe-se no espelho, está pior que uma indigente, fedendo como um gari...Que decadência!
Uma calça jeans surrada, uma camiseta vermelha com dois furos à altura do seio esquerdo, um par de tênis empoeirados e uma bolsa de mão com o nome do amado riscado na lateral cobrem o corpo cadavérico da mulher, que ensaia uma reação à ofensa do cunhado:
_Não fale assim senão eu...eu...
_...eu...eu o quê? O que pretende fazer? Chamar a polícia? Processar-me? Hum! Pois o faça, tenho certeza de que tem mais a esconder do que eu!
_Você é sujo, Rubens! Por que fez isso? Nunca nenhum mal lhe fiz. Por que o entregou? Por quê?
_Do que você está falando? – pergunta em pausas, enquanto beberica o whisky. Não consigo compreendê-la.
_Foi você, tenho certeza!
_Não tenho tempo para suas bobagens! Se não tem nada a dizer, saia, por favor! Tenho ainda muito trabalho a fazer...
_Ainda não terminei.
_ Então deixe de rodeios e diga o que lhe trouxe aqui...
_A prisão de Ronaldo...
_...Ronaldo foi preso? – interrompe a conversa, encenando surpresa. Que pena! – a surpresa dá lugar à ironia. Mas o que tenho a ver com isso? Que eu saiba, quem mexe com tráfico acaba na cadeia.
_E como você ainda não está lá?- rebate a mulher, com os olhos flamejando de cólera.
_Não mexo com tráfico de pó, no mínimo, com o de influências que, segundo a lei, não é crime; se fosse, Brasília inteira já estaria atrás das grades, fazendo companhia a seu “amado”...
_Você é desprezível!
_ Obrigado pelo elogio - escarnece o esposo de Nathália, com um visível sorriso de prazer estampado à face.
_Quero que o tire já de lá, Ronaldo não merece estar enjaulado como um animal, é...é o homem da minha vida, aquele que...
_...lhe dá uma prazer na cama, que lhe enche de ópio até virar os olhos!.. Hum!Que homem este o seu, não é? Ainda tem coragem de me chamar de desprezível Você é uma tola, um fruto podre no seio de uma família decente, cujos princípios...
_...aviltaram a alma deste povo! – completa a garota, com desdém.
_ Você não sabe o que está dizendo...
_E você deve estar sofrendo de problemas auditivos ou não está ouvindo a manifestação de repúdio das ruas às mazelas políticas comandadas por homens como meu pai, que nunca se importaram de fato com as causas sociais, limitando-se apenas ao uso do dinheiro público em causa própria?
_Você não merece o sobrenome que carrega; tem mesmo razão quando resolveu adotar o “Aleluia” do Ronaldo ao invés do Médici consagrado de seu pai.
_Mil vezes o sobrenome dele ao de meu pai que, liderando uma corja, levou milhares ao exílio e outros milhares a covas escondidas nesse país.
_Você está louca, criatura! Seu pai colaborou com o desenvolvimento e a segurança institucional do Brasil, portanto é um herói...
_...repudiado pelo povo! – completa com sarcasmo a jovem garota.
_Saia daqui, antes que eu cometa uma barbárie!
_Só sairei depois que mandar soltarem o Ronaldo.
_Não irei me envolver em seus problemas!- decide o genro de Médici.
_Preciso de suas influências, sei que poderá liberá-lo, basta ligar para o secretário de Estado da Justiça e pedir sua liberação.
_ E passar por cima do Judiciário?
_Não estamos nos idos de 1984, em plena ditadura militar, cujo poder submerge das cabeças mais torpes e menos coerentes da ala governista? Pois bem, para essa gente, o Judiciário é um simples faz de conta, coisa para inglês ver... Acha que um juiz seria capaz de desafiar um general como Figueiredo, Geisel ou meu próprio pai? Pois bem, com essa gente você tem cartaz, basta um telefonema para que Ronaldo seja liberado.
_E por que não pede ajuda a seu pai? Teme o quê? Que ele se negue a ajudar um traficante da favela Pantanal, conhecido como Matador, cuja ficha policial inclui dezenas de assassinatos e muitos outros crimes, como lavagem de dinheiro e estelionato? Poxa, percebe, está só nesta difícil empreitada. Esse é o preço por amar - bem, se este for mesmo o verbo correto - alguém que não é de sua estirpe. Aliás, como se conheceram? Esta é uma curiosidade que alimento há meses, desde o dia em que os flagrei na sala de reuniões desta empresa, naquele sábado à noite, despidos e completamente drogados.
_E desde então tem me chantageado, não é?
_Claro que não! Por que chantagearia alguém cujo sobrenome é quase divino? Apenas faço algumas exigências.
_Exigências que já me custaram muitos milhares de cruzeiros - ironiza a mulher.
_Digamos que o suficiente para manter o meu silêncio.
_Pois eu ordeno que tire agora mesmo Ronaldo daquela penitenciária.
_E desde quando está em situação de me exigir algo? Enxergue-se! É uma pobre coitada, sem alma, sem destino. Uma tola que decidiu abandonar os grandes castelos do Morumbi para se entregar ao charme de um pé rapado, dono de uma boca de fumo no Pantanal.
_PAAAAAARRRREEEEEEE!!!!!!!!!! – irrita-se a garota. Sei bem o que quer. É dinheiro, não é?
_Dinheiro? – gargalha, enquanto acende um charuto cubano. Isso eu tenho de sobra, e você sabe muito bem disso. Quero apenas garantia de um bom futuro, de uma gorda aposentadoria.
_ Como assim? Não estou entendendo. Seja mais claro!
A “Quinta Sinfonia de Beethoven”, cujo prefixo era o tema de abertura dos noticiosos da BBC durante a guerra contra o nazismo, ecoa sob a condução da Sinfônica de Campinas, levando a multidão ao delírio. Atraído à janela, Rubens blasfema contra os políticos que se apresentam diante do povo como defensores de um regime libertário; quando, no entanto, não passam de oportunistas, adoradores insanos do caos, cujos atos em Brasília não foram capazes de encontrar um assento no banco da história.
_Abutres! Como podem trair o regime que lhes deu tanto poder? Como podem derramar o sangue da hipocrisia em nome de um povo que mal reconhece a própria identidade? São verdadeiros vermes, homens de pouca índole, que se curvam aos desejos inimigos ao primeiro tiroteio. A batalha apenas começou, tenho certeza de que será árdua, assim como também serão os dias destes traidores, quando a batalha estiver ganha e eles forem expulsos a pontapés do país...
_Não tenha tanta certeza disso, este movimento é legítimo e, pelo que informam os órgãos de imprensa, há mais de um milhão e meio de paulistanos agora no Anhangabaú, portanto, número suficiente para que se abale as estruturas nefastas da ditadura e de seus líderes corruptos – diz a garota, aproximando-se.
_Você é outra que se manteve a vida toda do dinheiro deste regime, então por que o condena tanto? Deveria estar do lado da gente, daqueles que fazem do generalismo a sua religião.
_Está aí a razão de minha alienação! Não me perguntou o por quê de me drogar? Para deixar a condição de opressora para ser oprimida.
_ E o que ganha com isso?
_Pelo menos a falsa sensação de que nada tenho a ver com a tristeza e o empobrecimento de toda essa gente que, apesar do prato vazio e da boca calada, não desiste nunca de construir um mundo melhor e mais justo.
_Virou socialista! – ironiza o doutor. Por isso se refugiou em uma favela? Para ter a falsa sensação da pobreza, do sofrimento alheio? Brilhante idéia! Algo que nem Freud imaginaria. É, os fins justificam os meios, como diria Maquiavel.
Ao lado do cunhado, Márcia admira os milhares de cidadãos, que fazem das lágrimas e do coro, armas contra a repressão liderada pelos desmiolados de Brasília.
_Pois nisso concordo com você, os fins justificam os meios! –diz a garota, retornando ao centro da sala. O que você quer para ajudar Ronaldo?
Retirando o calhamaço da gaveta, joga-o contra a mesa, dizendo:
_Que você assine isso.
A mulher se assusta com o tamanho do documento.
_E o que é isso?
_O levantamento de todo o patrimônio de sua família. Nele estão incluídos fazendas, indústrias e contas em paraísos fiscais. Milhões e milhões de dólares, construídos a mercê da corrupção alheia, garantiram a sua boa educação e o padrão de vida que ostenta atualmente, ainda que você alimente a “ falsa sensação de nada ter a ver com a tristeza e o sofrimento deste povo”.
_ E...para que isso? Não compreendo! O que pretende, doutor Rubens Almeida...? Ops, perdão, seu novo nome é Rubens Médici.
_ Que assine a última linha da penúltima página.
_ E por que isso?
_Assim que assiná-lo, sua parte na herança será automaticamente transferida para minha conta no exterior, uma garantia de que jamais voltará a zombar de meu antigo sobrenome.
_Você está louco? Acha que eu cairei em um velho golpe como este? Então quer minha parte na herança? Hum! Posso parecer tola, mas não sou!
_Então nada feito! Esta é minha única e última oferta, se quiser seu “amado bandido” de volta, terá de se curvar aos meus pés e aceitar todas as exigências contratuais constadas neste documento; caso contrário, perderá a chance de vê-lo novamente, com o pó até a garganta, caído aos seus braços – escarnece o empresário, enchendo novamente o copo, desta vez com vinho do Porto
_Pare com o deboche – pede a mulher, estou aqui, humilhando-me aos seus pés, para que me ajude, não para que me transforme no alvo de piadinhas de gosto duvidoso. Você ligará agora mesmo para o Secretário da Segurança Pública e pedirá a libertação de Ronaldo...
_...somente quando assinar o documento! – intervém, impondo sua condição.
_NADA FEITO! – berra a mulher. VOCÊ VAI FAZER O QUE ESTOU MANDANDO CASO CONTRÁRIO...
_...caso contrário o quê? Diga, Márcia Méd...ops, Aleluia! O que fará? Isso é uma ameaça? Hum! Uma ameaça embasada em quê? Pelo que me consta, sou mais limpo que a auréola de Cristo...- moteja o esposo de Nathália, com os olhos submersos em uma luzerna maliciosa.
_ Podemos negociar... – sugere a garota, com um sorriso libidinoso brotado nos lábios, enquanto as mãos desciam o corpo, realçando suas curvas outrora nada modestas.
A indireta atrai a atenção de Rubens, que se aproxima, contornando, despudorado, as mesmas curvas já abrilhantadas pela caçula dos Médici.
_ O que acha? Podemos apagar as luzes e...bem, todas as suas fantasias poderão ser realizadas, como em um desses contos de fadas. Venha, deixe-me satisfazê-lo como homem. Tenho certeza de que jamais “saboreou” uma carne tão apetitosa como a minha, pois a de minha irmã, apesar de todos os recursos da medicina estética, não passa senão de carne de terceira.
Márcia joga as cartas sobre a mesa, é seu último lance neste jogo imoral, em que a chantagem e o sexo são apenas simples recursos na busca pela vitória, aqui representada pelo resgate do traficante Ronaldo. Com a mão direita, abre a camisa dele; com a esquerda alisa-lhe o peito. Um gemido de prazer surge no ar. Rubens parece tentado pelo corpo ainda atraente da pequena de vinte anos.
O cinto é desatado, a calça desabotoada, e quando o zíper estava para ser aberto, uma gargalhada de deboche interrompe a safadeza, assustando a garota, que dá dois pulos para trás.
_ Você acha que eu seria tolo de trocar um império por uma noite de sexo contigo? Se eu gostasse de resto, estaria na boca do lixo, agindo como fazem os urubus com suas vítimas.
_ MALDITO!!! – berra, transtornada. INFELIZ! SUA HORA AINDA CHEGARÁ, E NESSE DIA, QUERO AINDA ESTAR VIVA PARA ACOMPANHAR SUA RUINA COM GOSTO...MISERÁVEL!
Desfere um tapa contra a face do rapaz, que ágil, imobiliza-a pelo pulso antes que o ato fosse concretizado.
_ Nem tente fazer isso! – empurra-a contra uma poltrona de canto. O meu preço já está definido e no campo dos negócios não há ágio que faça um empresário desistir de uma empreitada. Portanto, se deseja ter de volta seu “cachorrinho de favela”, terá de assinar o documento, se não, como uma vagabunda de beira de esquina, terá de tentar seduzir outras figuras de renome na sociedade que tenham um mínimo de influência sobre os generais. Hum! Porém advirto-lhe, sua aparência, misto de zumbi com capivara, não atrai nem Fred Kruger, quem dirá os senhores do poder. Quem gosta de osso é cachorro, e vira-lata, a espécie de seu “amado”.
_ PARE COM ISSO!- implora, tentando se levantar.
_Vamos deixar de histórias, não tenho mais tempo para picuinhas. Ou assina ou caia fora!
As chances para a reviravolta caem por terra, não há mais como resistir às chantagens de Rubens. Ou valida a autoria daquele documento ou simplesmente morrerá à espera do homem que a iniciou nas drogas e na vida sexual. Não há como resistir, o desejo pelo corpo de Ronaldo e pelas drogas que ele a fornece é bem maior. Só lhe resta então, entregar todo o patrimônio e o próprio futuro. Com a caneta, escreve sua sentença de morte em vida!
Rubens sorri com prazer, agora é um dos sócios do império Médici, cuja fortuna ultrapassa a fronteira que separa o milhão do bilhão.
_Gostaria que nossa transação permanecesse confidencial, visto que meu pai não suportaria a decepção... – pede a jovem, bastante abalada, temendo a revelação do caso à sua família.
_ Claro, “docinho”! – sorri, passando-lhe a mão sobre a face. Claro!
_Tire essa mão de mim!- repele, com violência.
_Acalme-se, florzinha! É tão agradável e sedutora como a irmã.
_Por isso atraímos Fred Krugers como você?
_Deixe de pilhérias, a vida é uma alegria.
_Monstro!... Quero saber quando Ronaldo será liberado.
_Logo!
_Seja mais claro...
_Garanto-lhe que verá o sol nascer da janela de seu apartamento.
_Espero! Caso contrário...
_Agora saia, tenho de cumprir minha parte no acordo.
Perecendo de um atordoamento que lhe retirou o brilho d’alma, Márcia dirige-se à saída.
Pegando o telefone, Rubens disca alguns números; a felicidade é rasteira e radiante, motivo pelo qual ele disca cada número com relativa paciência.
_ Olá, mister, como está? E aquele vinho que me prometeu, cuja safra causa água na boca?
_ Oh, é você, grande amigo Rubens Médici? A que devo esta honra?
_Tenho novidades!
_ Pois conte! Pelo modo como fala, vem grana por aí – zomba o estranho.
_ Grana? Bota grana nisso! A partir de hoje sou dono de cinqüenta por cento de todo o patrimônio acumulado por meu sogro.
_ Dio Santo! – assusta-se o patriarca da família Ferrara. Que loucura é essa?
_ Não é loucura, é realidade! Consegui que a infeliz assinasse os documentos, aqueles de que lhe falei...
Márcia retorna à sala ao perceber ter esquecido a bolsa sobre a poltrona a que fora arremessada. De costas para a porta, Rubens não a vê.
_ Stai scherzando, non è? Allora la “franguinha” si è reso allá sua artigueria? Incredibile!E adesso, Che cosa vuole fare? Come riuscirà la liberazione dell’ infelice? (Você está brincando, não está? Então a “franguinha” se rendeu a sua artilharia? Inacreditável! E agora, o que pretende fazer? Como conseguirá a libertação do infeliz?). Pelo que me consta, você não tem tanta influência no meio político a ponto de conseguir, do dia para noite, um alvará de soltura.
_ Que mania a sua de misturar italiano com português... Isso me causa náuseas!
_Não vá começar, Rubens! Da última vez que iniciamos uma discussão por este mesmo motivo, ficamos meses sem conversar...Além do mais, cada um tem seu modo de falar, por isso deve ser respeitado!
_ Tá...tá...tá, italiano! Não vamos polemizar! Cada um com sua loucura, ops, quer dizer, com seu modo de falar...- diz, quase não contendo o riso.
_Hum! Bem, então, como fará para conseguir o alvará de soltura se não é tão bem relacionado com os “donos” do poder judiciário?- questiona Giacomo, aguardando com ansiedade a resposta.
_ Eu posso não ter, mas você...Hum!
_ O que quer dizer com isso? Que eu o ajudarei a concretizar este seu insano desejo de ficar milionário do dia para noite? Negativo! Imagine a reação do general quando souber que sua filha pôs a perder metade de seus esforços de uma vida por um delinqüente, tendo como antagonista na empreitada, o próprio genro? Isso vai acabar em tiros, assim como acontecia nos idos de 70, como bem conhecemos. Por favor, faço qualquer coisa, menos dar a cara a tapa...
_Nem se isso envolvesse também uma boa fortuna em cruzeiros a ser transferida para o caixa dois de suas empresas endividadas?
_Continua... sono tutt’ orecchi! (Continue...sou todo ouvidos!) - muda de tom o agora interessado italiano.
Márcia chora encostada à parede, enquanto ouve o epílogo da trama diabólica que a condenou a um destino incerto.
_Então foi você que denunciou o esconderijo do tal traficante?
Rubens não poupa o sarcasmo ao revelar a Giacomo ser o denunciante do local onde estava o traficante.
_Sim! Precisava forçá-la a assinar os documentos me transferindo parte da herança. Sabia que pelo tal Matador, ela seria capaz de tudo, até porque, ele a alimenta com a droga e com o corpo...
_ Tu sei troppo cattivo! (Como você é maldoso!) Não teme represálias? Dizem que esse Matador é violento, capaz de atirar na própria mãe se assim precisar.
_Nem de Deus eu tenho medo!
Agora conhecedora da história, a garota pensa encher-se de ânimo, deixar a escuridão, enfrentar o cunhado, exigindo de volta o patrimônio que lhe é legado de família, contudo, a imagem de um Ronaldo sofrendo as maiores atrocidades no Carandiru, a mais violenta das penitências brasileiras, a faz recuar, pegar a bolsa e sumir pelo corredor, ainda que uma lágrima sua tenha insistido e ficado no chão da sala, após despencar dos olhos grandes e mortiços.
Desconsolada, entra no elevador, minutos depois está no térreo, ao lado das milhões de pessoas que seu pai e a corja militar mantiveram dentro de uma camisa de força, sob a mira de uma arma tão letal quanto à bomba atômica: a censura!
Aglomerada, a multidão, com pequenas bandeiras do Brasil entre as mãos, aplaudia o pronunciamento dos notáveis, figuras da política nacional, que afrontadas pelos interesses de Brasília, viam o momento como uma plataforma para a ascensão pessoal, ainda que os reais interesses fossem contraditórios aos veiculados no Anhangabaú.
A decepção com as atitudes indecorosas do cunhado e a fissura causada pela ausência da droga, aliadas à indignação pelas mentiras propaladas à República por homens de duas caras, fazem-na correr, empurrar todos que estão à sua frente, para chegar o quanto antes ao carro. Precisava sair dali, fugir daquele teatro ao ar livre, daquela representação inverossímil e nada ingênua da politicagem selvagem, dominadora de almas e mentes. O que não diria Glauber Rocha* de tudo aquilo? Um Deus, muitos diabos e milhões de almas enganadas na Terra do SOL!
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*Glauber Rocha foi um dos mais importantes cineastas do Brasil. Grande pensador a seu modo, Glauber foi um pensador-poeta, com um método metafórico e uma disciplina revolucionária que inventava a cada dia conforme as necessidades de seu projeto, de suas iluminações. Sua arte deflagrou uma revolução no cinema e deu um nó (ainda não desatado nem engolido) na cultura nacional. Visionário controverso e em transe convulsivo, nasceu em 14 de março de 1939 e morreu em 22 de agosto de 1981.
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Entrando no carro, debruça sobre o volante o rosto úmido pelas lágrimas. Precisava descansar, o fôlego lhe faltava e a alma parecia querer lhe fugir pelos dedos, assim como o pouco do caráter e da sobriedade que ainda lhe restavam.
“Enquanto os homens exercem seus podres poderes
Motos e fuscas avançam os sinais vermelhos
E perdem os verdes
Somos uns boçais”
“Queria querer gritar setecentas mil vezes
Como são lindos, como são lindos os burgueses.
E os japoneses
Mas tudo é muito mais”
Tocada pela Rádio São Paulo, as letras de Caetano Veloso - espelho da corrupção e dos desmandos que maculam a alma de um país desgovernado, à beira do caos, arruinado por uma dívida externa impagável, cuja condenação é a subserviência aos anjos de chifres, representados por instituições como o FMI e o BID - consolam a garota na volta para a casa.
_Bem diziam os papagaios da capital do país: “Figueiredo* faria de seu mandato uma arena em que os interesses das principais famílias de bem do país seriam contrariadas em prol de uma massa que mal sabe o porquê da própria existência...” Se meu sogro ainda estivesse no topo da cadeia política, certamente esses aventureiros da política tupiniquim seriam tirados à bala deste palco e o povo...bem...o que é o povo sem um líder? Um bando de analfabetos, de escravos sem rumos, que se contentam apenas com a barriga cheia, com um televisor na sala e as contas de água e luz pagas...Como pode esta gente querer votar, escolher seus líderes se mal sabe o que é? O voto será nas mãos desta gente como arma; e o que acontece com os que utilizam mal uma arma? Cometem assassinatos por ingenuidade!- regurgita Rubens, do alto de seu prédio, ao ouvir os aplausos ao discurso do governador Franco Montoro Filho.
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* Último presidente do regime militar, General João Baptista de Oliveira Figueiredo (General Figueiredo) governou o Brasil de 1979 a 1985.
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“Será que nunca faremos senão confirmar
A incompetência da América Católica
Que sempre precisará de ridículos tiranos?
Será será que será que será que será
Será que essa minha estúpida retórica
Terá que soar, terá que se ouvir
Por mais zil anos?
Enquanto os homens exercem seus podres poderes
Índios e padres e bichas, negros e mulheres e adolescentes
Fazem o carnaval”
- Podres poderes! Podres poderes! – repete a mulher, bastante oprimida, consigo mesma.
_ O que dizer com podres poderes, tia?- pergunta Ricardo, retornando do toalete com o celular entre as mãos.
_ Ahn, Ricardo, você já voltou? – pergunta a mulher, confusa, após uma breve viagem às entranhas de um passado indigesto.
_ Sim! Algum problema? – insiste o sobrinho, com a face entristecida, ao notar um certo incômodo na mulher.
_ Não! Eu estava aqui na janela vendo os campos distantes, quando, de modo inconsciente, deixei-me levar pelas ondas da imaginação. Psicólogos também podem, ou não? - sorri, tentando disfarçar o mal-estar.
_Claro! Vamos continuar a sessão? Temos ainda dez minutos e muita história a ser contada... – pede o rapaz.
_Sim...sim, meu querido!- antes de retornar à poltrona, dá uma olhadela em Marcos, que sentado no capô do carro, assiste à cidade com certo desdém.
_ Pois continue seu relato, que à primeira vista, é de causar medo e dúvidas naqueles que se propõem a ouvi-lo.
_ Você acha que imaginei tudo isso? Que sou louco?
_ Eu não disse isso! – tenta dissipar a ira suscitada no âmago de seu único sobrinho.
_Então o que quis dizer com “causar medo e dúvidas naqueles que se propõem a ouvi-lo” ? Responda-me, D. Márcia Aleluia! Aliás, de onde surgiu este sobrenome? Que eu saiba você é minha única tia e, pelo que me consta, não é casada, portanto, deveria chamar-se Márcia Médici e não...Márcia Aleluia!
Márcia emudece, engolindo a saliva com dificuldade.
_Diria que assim como a sua, todas as vidas guardam muitos segredos! E este é o meu!
O rapaz não retruca, apenas se fixa nos olhos dela e sorri, num nítido sinal de provocação.
_ O que é, Ricardo? Você não está bem? – indaga, estranhando a mudança repentina de humor do sobrinho e o suposto interesse por seu passado. Você usou o celular? – inquire, vendo-o guardar o aparelho.
_Não! – é taxativo.
_Então...? – insiste a mulher.
_Apenas recebi uma ligação de uma amiga...Nada de mais! – despista o rapaz. Vamos continuar a sessão? Tenho de terminar minha história, contar como foi o enterro de Marymel, que fim levou Gabriel e como ficaram Maria e meu pai diante dos muitos outros erros que cometi ao longo desta saga.
_Você está preso! Tudo o que disser será utilizado contra você no Tribunal! – dizem os policiais, imprensando o motorista contra a parede, enquanto suas mãos eram algemadas.
_Mas...mas...o que está acontecendo aqui? – pergunta Marcos, pondo-se como vítima.
_Seu histórico de crimes chegou ao fim, Ronaldo Aleluia! Foram anos e mais anos à sua procura, até que o localizamos neste fim de mundo, graças a um telefonema anônimo. Quem diria, né, safado?
*** Aguarde o próximo capítulo a ser publicado em breve***
* O Desbravador de Identidades
Idéia original de Carlos Rogério Lima da Mota.
Assessoria em desenvolvimento de enredos ficcionais: Maria Helena Matsuzava, professora.
Assessoria em desenvolvimento comportamental das personagens: Ruth Genta, psicóloga e diretora de escola em São Paulo.
Assessoria em Língua Portuguesa: Nouha Jamal, professora.
Assessoria em Língua Italiana: Sueli Zancheta, professora.
Assessoria em pesquisas textuais e documentais: Rafael Henrique Trindade e Rodrigo Eiji Imaizumi.
Colaboradores: Rafael André Pioto, estudante da Fatec de Garça, Luci Aparecida Dias Castilho Sasso, professora de Língua Portuguesa e diretora de EMEF, Emília Esteves, professora de História do Colégio Bezerra de Menezes, Marina João, professora de Literatura e Redação dos Colégios Bezerra de Menezes e Sagrado Coração de Jesus, Catarina Edna Rodriguez Alves, professora de Redação do Colégio Estudos & Cia, Elizeu Bernardes da Silva, gerente da Loja Feltrin.
Sinopse da trama: O que parecia ser um simples bate-papo virtual acaba por transformar a vida de um jovem de 21 anos em um longo e penoso drama, cuja morte poderá ser o único remédio...Numa noite qualquer, como milhões de garotos pelo planeta, Ricardo acessa à Internet e resolve visitar um Chat. Depois disso, o mundo ao seu lado desaparece, sua imagem já não mais se reflete! Como alma penada, ele anda pelas ruas da grande selva urbana à procura daquele que lhe desbravou a mente, deletando-lhe o brilho, a cor, os sonhos, a esperança, o desejo pelo prazer, os objetivos vindouros e a própria identidade!
Será que ele conseguirá localizar, entre as 12 milhões de pessoas que moram em São Paulo, o autor de sua desgraça? E como encontrá-lo se apenas o conhece pelas doces palavras que o descrevem?
Esse é o grande enigma que "O Desbravador de Identidades" lhe reserva. Venha você também, fazer parte dessa caçada!
Previsão de capítulos: 21.
Capítulos publicados: 13.
Previsão do término: julho/2005.
Lançamento da obra em livro: 2005.
E-mails do autor: odesbravadordeidentidades@uol.com.br; agencianetnews@hotmail.com; carlosmota@unimeds.com.br .