Eu tive um filho morto dentro de mim. Tive um filósofo que não perdia o fôlegoe não tropeçava nas idéias, um búfalo, um monstro, um artista, um gênio sem os limites da própria genialidade, um louco, desvairado. Eu tive um sonho, bonito, completo, que me contava tudo sobre mim e sobre a vida, mas eu esqueci assim que abri os olhos e acordei aqui. Eu tive um anjo, um deus, uma máquina, um livro, uma música, um homem. Eu tive uma raça inteira, milhões de braços, de pernas, de cabeças, músculos, pensamentos. De potenciais. De mortos. De almas zanzando por aí sem ninguém ver. À minha disponibilidade, à minha preguiça e pessimismo, derrotismo, ao meu desgosto em estar viva, ao meu tom blasé superficial, e a minha tristeza sozinha e patife no quarto. Eu tive um punhado de horas, e um só corpo, e sabe se lá quantos lugares e quantas coisas e pessoas pra consumir. Eu tive uma criança. E dezenas de machucados nela, de todos os tipos, casos e datas. Eu tive um corpo lindo, e uma inocência. Eu tive uma vida. E mil pessoas, incluindo eu mesma, pra ver ela terminar. Eu tive eu, o tudo, e o nada. Eu tive o "eu" por alguns segundos, até que deixei escapar e me perdi em tentativas, prolongações, blábláblá. Eu tive um filho morto dentro de mim, eu já fui uma mãe. De um morto. E o fim. De um pensamento que eu não consigo sentir, de um sentimento que eu não consigo pensar. Tudo errado, trocado, extraviado, perdido. Tudo errado. Que nem batom vermelho manchado, que não sai da pele, de jeito nenhum. Rasga-se a pele com os dedos, para tirar as marcas. Ferir, para não sentir a ferida. Ah, como é bom arranhar fantasmas, e falar, de boca cheia, cuspindo e esbravejando em seus rostos que mais se assemelham a borrões do que gente.
Resta algum corpo qualquer, atirado por aí, algumas coisas escondidas, e alguns segundos até que... (Termine.).
Me olho no espelho. Um borrão.