Pegou uma colherada modesta do arroz desconhecido, em outra forma, cheiro e cor, do habitual. Feijão, batata, bife. Todos estranhos, e não familiares, e com outros sabores, nunca provados. Levou uma garfada a boca, mordeu levemente, e engoliu, bruto, depressa demais. Um copo de sei lá o quê para rebater. Suco, quer? Sim, claro, obrigada. Nem pergunta do que é. E logo engole o gole, e engole palavras, paredes, móveis, pessoas. Tudo nunca visto. Fora almoçar na casa de um amigo, nem tão ou pouco íntimo, mas o suficiente para vislumbrar um amor adolescente, bobo como só eles, e ela. E ela o venera, enquanto engole a casa e a família estranha. E olha a boca do amigo, e olha os olhos, o cabelo caindo toda vez que ele baixa a cabeça. Amigo. Meu amigo. Foi ela, cheia de orgulho lhe ensinar história, ajudar ele, o homem, a passar de ano na escola. Hoje eu vou lhe ensinar, meu amigo. Hoje eu vou te ajudar. Enchia a boca de comida e de prazer. Garfadas ávidas. Sem facas, sem facas. Que eu só quero consumir, não quero partir nada. E olhava os olhos, as mãos, os braços, do amigo. Ah, amigo. Ela que foi tentar consolar com seu jeito sem jeito ele por causa de um coração partido, e por causa de outra, e de outras, e de pouco amor próprio. Esta que lhe ofereceria o amor todo do mundo e estava lá ao seu lado, sendo apenas amiga, e ouvindo lamentos. Ela baixa a cabeça. Você sabe que ele nem tem olhos para você, não sabe? Sei sim, mas e se... E engolia, engolia, engolia. Até acabarem com as caras nos pratos, estes cerimoniosamente depositados na pia, para uma mãe, não a dela, lavar. Casa estranha, com portas de ir sei lá onde, e escadas, e paredes, e janelas. Tudo fora dos lugares. Um bairro longe, ele morava. Fora até lá num ônibus tremulante, sentada do lado do Sol, e do amigo. Os brilhos nos olhos, apenas por causa do Sol, é claro. E lá foram, eles estudar. Ela, sua grande heroína. Abre os livros, vitoriosa, checa a matéria, lê um pouco, e começa a falar, falar do modo que sabe que ele entenderia, e do modo mais prestativo possível, para ajudá-lo, para amá-lo, e ser amada. A sós numa sala, estão os amigos. Longe de pais, colegas, e tudo. E ele, que nunca teve olhos para ela, cobiça a boca dela, que fala, nervosa, sem parar, sobre história, sobre pessoas e coisas que sequer interessam. Ela fala, ela nota, e ainda mais nervosa, fala, continua, erra, retifica, coça a cabeça, aperta os lábios. E ele cobiça. E ele, que nunca teve mãos para ela. Coloca a esquerda na sua coxa, fazendo carinho, na mulher. Mulher, sim, mesmo sendo uma menina nervosa, agora ela não é outra coisa além de mulher, ou um buraco de prazeres. Mulher, por um dia, menina, você vai ser mulher. E ele roça a mão no corpo dela, e ela perde o discurso, e fecha os olhos, e fica arrepiada, e os abre, e o vê arfando de boca aberta querendo ela, mulher. Ele, homem, como sempre, como amigo, namorado, esposo, amante, e mero conhecido. E ele a quer. Ele tem fome...
Lá vai a menina de volta para casa, sozinha, noutro ônibus tremulante, sentada, desconfortável. Ela que fora mulher por minutos, debaixo de um corpo, e agora fora jogada fora, menina, de uniforme escolar e livros na mão. Ela olha as ruas, sente vontade de chorar... Mas engole... E reza, para que ninguém, e especialmente ele, tenha visto seu sangramento entre as pernas...