UM ESTRANHO SONHO
Ao sul do sítio onde Carlos morava havia um riacho de águas claras, muito límpidas, tão transparentes, que se podia ver o fundo e os peixes a nadar. Um pouco mais adiante, num declive acentuado, formava-se uma cachoeira de enormes pedras, na qual podia-se banhar e tomar sol. Era um lugar gostoso de passar as horas, ao som das águas e canto de pássaros.
Às vezes, ao final da tarde, ele sumia por algum tempo e podia ser encontrado sentado na pedreira, com os pés n’água, a pensar nada vida. Ainda era um menino, mas inquietava-se facilmente, diante do mistério, beleza e complexidade do mundo a sua volta. Era um garoto cheio de perguntas sem respostas.
Mas levava sua vidinha tranqüila, sem muitas responsabilidades, dia após dia.
Não tinha muitos prazeres na vida. Os amigos eram poucos, mais pela timidez do que pela distância; os vizinhos não moravam muito perto, todavia, poderia encontrá-los amiúde, caso não fosse tão preguiçoso e não arrumasse desculpas para não se ter com eles.
Certo dia Carlos fez como fazia quase todos os sábados à tarde: foi à cachoeira curtir sua solidão. O sábado era o dia que dispunha de mais tempo para ficar fora de casa. Não havia escola, poucos afazeres, o pai quase sempre estava em casa e a mãe não ficava implicando com suas desaparecidas. Por isso ele tinha o sábado como um dia especial, melhor que o domingo.
Passava das três da tarde, mas o sol ainda ardia no horizonte. Era um momento propício para ficar com o dorso nu a queimar ao sol. E essa era justamente sua intenção. Por isso, molhou-se por inteiro e depois deitou de costas sobre a pedra e cerrou os olhos, pois não conseguia mantê-los aberto devido à claridade.
Não estava cansado; contudo aquela tranqüilidade, a sensação de paz interior que aquele ambiente emanava provocaram-lhe uma moleza, uma sonolência. Aos poucos, seus pensamentos se tornaram cada mais distantes, e ele acabou adormecendo.
E então ele sonhou.
E foi um sonho estranho e misterioso, uma mistura de ficção e realidade. Era como se ele estivesse sonhando o que estava vivenciando.
Carlos sonhou que havia adormecido e repentinamente foi acordado ao som de um chamado. Alguém o chamava como se procurassem por ele. Era o som de uma voz fraca, distante e conhecida. Todavia, ao abrir os olhos, estava diante dele um desconhecido.
Nunca vira aquele homem alto, de meia-idade e cujos olhos castanhos claros parecia lembrar alguém. Vestia uma túnica branca e comprida.
Assustou-se; e, num sobressalto, sentou-se com os olhos esbugalhados. Contudo, houve tempo para inquirir-se com aquele desconhecido fora encontrá-lo ali.
-- Carlos! – chamou o estranho. (“Como ele sabe o meu nome?”, perguntou-se novamente.) – Seus pais estão precisando de você. Vá ajudá-los! – ordenou.
-- De mim? -- quis ter certeza.
-- Sim, Carlos! – assentiu o estranho.
Nesse momento ele acordou assustado. Olhou para os lados e não havia mais ninguém.
Seria aquilo tão somente um sonho? Ou seria um aviso? Pôs-se ele a fazer conjecturas durante alguns instantes. Olhou para o céu e percebeu que adormecera por volta de duas horas. O sol já principiara a se por.
Na dúvida, achou melhor ir para casa. Afinal de contas, estava fora de casa a mais de duas horas.
E assim, voltou ele correndo.
Quando chegou à entrada da fazenda, encontrou a porteira escancarada. Achou aquilo tudo estranho porque a porteira nunca ficava aberta. Perguntou-se alguém poderia ter estado ali naquele intervalo de tempo. Todavia, não perdeu tempo; subiu correndo até a casa.
Entrou pela cozinha e procurou a mãe. Ela quase sempre era encontrada ali, cuidando dos seus afazeres de dona de casa; mas dessa vez ela não a estava. Uma sensação ruim acercou-se de sua alma e o medo dobrou-lhe o espírito. Então a chamou em altos brados:
-- Mãe!... Mãe!.... Onde a senhora está?
Antes mesmo de esperar por uma resposta, correu em direção ao quarto dos pais.
Estendido sobre a cama, coberto de sangue, estava o pai. Parecia estar inconsciente. A mãe o segurava nos braços; tentava estancar o ferimento próximo ao peito esquerdo. Estava em desespero.
Ao ouvir seus passos, a mãe desviou o olhar e encarou o filho com olhos lúgubres e ao mesmo tempo perscrutantes. Sem lhe dar tempo de dizer alguma coisa, inquiriu:
-- Onde você andava que na hora que mais preciso de você, você some? Vá correndo até a casa do Seu Batista e chame ele para levarmos seu pai no hospital que ele está ferido.
Bem nem a mãe havia acabado de falar, o menino já havia saído correndo.
Pouco mais de vinte minutos depois, o vizinho entrava com o menino quarto adentro.
-- Seu Batista, aconteceu uma tragédia! – disse dona Ana, a mãe do menino.
-- Mas o que aconteceu? – Quis ele saber.
-- Valdir levou um tiro e está sangrando muito.
Sem muita conversa, imediatamente, colocaram o homem no carro, um gol amarelo desbotado, e partiram em direção a Juiz de Fora. O filho foi para casa do vizinho até que alguém o viesse buscar.
O pai chegou ao hospital sem vida. Foi enterrado ao final do dia seguinte.
Somente dias depois que o menino ficou sabendo o que realmente acontecera com o pai: Fora baleado por um morador de Santa Paula após lhe ser cobrado uma dívida referente a um saco de feijão.
No mesmo dia em que matou o Senhor Valdir, antes que a notícia se espalhasse, o homem desapareceu do lugarejo e não foi mais visto desde então.
Carlos nunca mais se esqueceu daquele sonho. Também nunca chegou a ter certeza se aquilo não passou de uma simples coincidência ou se foi um aviso? Mas o pior de tudo foi conviver com a idéia de que se estivesse em casa, talvez seu pai teria sobrevivido. Por isso, nunca mais se aproximou daquele lugar que gostava tanto.
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