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Contos-->A ÚLTIMA BATALHA -- 03/09/2003 - 13:00 (Carlos Higgie) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A ÚLTIMA BATALHA


Na metade do caminho entre a meia-noite e o amanhecer, Evaristo despertou sentindo-se um pobre diabo.
Girou o corpo várias vezes, buscando, sem encontrar, um ponto de apoio, algo que lhe devolvesse a paz, em plena escuridão. Levantou-se. Foi até o banheiro, urinou sem sentir alivio e voltou para a cama.
Sua mulher ressonava, dormindo na posição fetal, alheia ao mundo real.
Com o sono irremediavelmente perdido, tentou fazer um rápido balanço de sua vida e descobriu que, exceto as inevitáveis mortes diárias, o único destaque era a leitura obcecada de boa, e má, literatura e as inesquecíveis noites com as prostitutas do Centro. O restante era só uma sucessão exasperante de desencontros, trabalhos e pequenos desastres domésticos.
Tudo água-abaixo, sem grandes tragédias, sem grandes acontecimentos que o marcassem. Três filhos, que dormiam amontoados no outro quarto, um salário mirrado que terminava no décimo dia do mês, o que já era uma verdadeira proeza; uma mulher sempre à beira da histeria e um trabalho desgastante, onde o sufoco era rotina. Noites metódicas e chatas, vendo na tevê programas que pareciam repetir-se infinitamente.
Duas ilhas o salvavam do naufrágio total: sua loucura por leitura, que muitas vezes o fazia navegar noite adentro, e suas esporádicas e reconfortantes escapadas aos hoteizinhos do Centro, onde as mulheres fáceis lhe devolviam um pouco do encanto de uma vida que, ele estava convencido, existia além de suas limitações.
Meditando, Evaristo começou a afundar na depressão. Sentia-se inerte frente ao mundo, sem forças par vencer obstáculos e alcançar a vida radiante e plena, que lhe ofereciam em alguns programas televisivos e em muitos dos seus livros.
O despertador pareceu surpreender-se ao encontrá-lo acordado, com os olhos muito abertos. Soou sua campainha com menos energia, quase fazendo silêncio.
Evaristo não se moveu. Apenas fechou os ouvidos e decidiu que estava surdo. Percebeu os movimentos da mulher, levantando-se para iniciar suas tarefas domésticas. Seus olhares se encontraram: o dele, atento e angustiado; o dela, sonolento e irritado.
A mulher resmungou, mas ele não escutou: estava surdo. Sem mover-se, viu-a realizar os movimentos de cada amanhecer, até que, já pronta, olhou-o surpreendida e disse algo que ele não pode escutar, nem quis decifrar.
Ela esperou a resposta, franziu a testa e começou a falar sem cessar, metralhando-o com palavras que Evaristo não escutava, simplesmente adivinhava.
Sem dramatismo, apoiou o indicador da mão esquerda na orelha e disse ( sentindo sua voz retumbar bem lá dentro ): estou surdo.
Ela se deteve, passou num instante do assombro à incredulidade. Aproximou-se e ele repetiu: estou surdo.
A mulher sacudiu a cabeça e saiu. Não acreditava em sua repentina e inexplicável surdez.
Os pensamentos, somente os pensamentos, povoavam seu cérebro. O mais era um murmúrio que se apagava rapidamente, até brotar um silêncio pesado e absoluto, que não o oprimia. Libertava- o .
Tratou de imaginar sua nova situação. Já não poderia trabalhar. Talvez o demitissem. Ou dariam-lhe uma pensão por sério problema físico, ou o internariam numa clínica especializada em deficientes físicos. Talvez lhe comprassem um aparelho para restituir-lhe a audição. Não seria possível, sua surdez era tanta que nenhum aparelho ou tratamento médico poderia melhorar ou curar.
Nada disso importava. Estava gozando de sua surdez. Poderia ler sem que o perturbassem as queixas da mulher, a gritaria dos filhos ou o som irritante da televisão. Via em tudo isso apenas uma desvantagem: já não ouviria os gemidos teatrais e excitantes das prostitutas, quando ele naufragasse sobre elas.
A mulher, pronta para enfrentar o dia, entrou decidida. Falava sem parar e lançou-se sobre ele, destapando-o e tentando levantá-lo. Evaristo apertou-a pelos braços, encarou seu olhar raivoso. Estou surdo, estou completamente surdo, disse.
Ela soltou-se. Estava indignada. Provavelmente não estava convencida. Pegou o despertador e jogou-o contra a parede.
As crianças mostraram suas caras assustadas. Ele quase claudicou, invadido por um acesso de ternura. Não cedeu. Estava surdo. Os filhos o rodearam. Estavam assustados; pressentiam a catástrofe que se aproximava.
Evaristo decidiu que estava mudo, pois não queria que sua língua traísse sua determinação.
A mulher separou as crianças e ameaçou com o dedo em riste. Fechou a porta com força.
Evaristo navegava em um mar de pensamentos. Estava decidido a continuar até o fim. Descobriu que essa seria a batalha de sua vida, a mais importante e definitiva.
Quando o apetite começou a invadir suas tripas e a perturbar seus pensamentos heróicos, percebeu a coragem de certas religiões, que preconizam a vitória do espírito sobre o corpo. Uma luta desigual, pois o corpo possui armas sutis e terríveis; apelos e urgências que a razão não pode deixar de atender. Apesar disso, Evaristo estava disposto a enfrentar todas as provas para alcançar a vitória final. Um triunfo que ele não conseguia definir, porém que o chamava e se tornava irresistível.
Mais tarde entrou a mulher. Falava sem parar, quase sem respirar. Abriu a janela, levantou o despertador e algumas peças que tinham se soltado. Rapidamente organizou a cama e o quarto.
Tentou levantar Evaristo. Queria que tomasse banho ou algo assim. Ele se negou e resistiu. Saiu furiosa.
Momentos depois, voltou com um médico. Pelo menos parecia ser, por sua maleta e estetoscópio. O homem tinha cara de bonachão e esperto. Evaristo preveniu-se contra ele, olhando-o nos olhos. Como Evaristo não respondia, escreveu perguntas num papel. Ele não conseguiu responder por mais que se esforçasse: estava mudo. Surdo e mudo.
O doutor movia a cabeça, perplexo. Alcançou-lhe um papel e lápis, para que Evaristo descrevesse o que sentia. Ele não conseguiu erguer o lápis entre os dedos: estava paralisado. Seus membros não respondiam às suas ordens, apesar de todos seus esforços.
O médico desistiu do seu assédio e retirou-se. A mulher foi atrás.
Surdo. Mudo. Paralítico.
Minutos depois a mulher voltou com um prato fumegante. Teve que dar-lhe a sopa na boca, colher a colher. Evaristo apenas movia a cabeça, com muita dificuldade. Algo havia mudado no humor da mulher. Até um carinho lhe fez antes de retirar-se. Mais tarde voltou com uma pílulas, que Evaristo engoliu sem oferecer resistência.
Os dias sucederam-se e ele começou a sentir-se feliz. Havia deixado o mundo fora dele, e somente a visão e o olfato lhe permitiam comprovar que tudo continuava existindo. Duas coisas lamentava; a dificuldade para ler e a ausência de suas relações sexuais clandestinas.
Seu filho menor o ajudava nas leituras. Segurava o livro ao alcance de seu olhar e ia passando as folhas quando ele movia a cabeça. Era penoso ler daquela maneira. Cansava-se com facilidade; às vezes o filho o deixava na metade de uma página e, sem explicar nada, afastava-se. Deduziu que sua mulher obrigava o menino a realizar a tarefa. Apenas a mãe se descuidava, ele escapava.
De seus encontros com as prostitutas ficavam dois ou três pedaços de lembranças, que ele recriava e alimentava dia-a-dia.
Num segundo momento, que ele não pode determinar com precisão, as coisas começaram a mudar. Seus olhos lhe mostravam uma nova mulher, rejuvenescida e alegre. O olfato lhe trazia um perfume diferente, adocicado, nada parecido com aquele aroma barato que ele conhecia.
Um tarde a viu arrumar-se frente ao espelho; fazia-o com esmero, cuidando até o mínimo detalhe de suas roupas íntimas, passando creme por sua pernas, por sua barriga, seus braços e seios. Quando a viu vestida assustou-se: parecia-se, e muito, com as mulheraças que ele visitava nos hoteizinhos do Centro.
Condenou-a com um olhar fulminante, mas ela não lhe deu atenção. Quando a viu sair tentou gritar. Era mudo. Mudo.
Dias depois descobriu que era infeliz, queria reverter sua situação; caminhar, falar, acariciar a pele nova, as carnes sedutoras de sua mulher.
Era terrível sentir-se prisioneiro de seu próprio corpo, era terrível afogar-se em seus próprios desejos e sentimentos, enquanto sua esposa reflorescia como se fosse a mesma primavera.
Tudo isso tentou dizer à sua mulher, mas não consegui articular uma palavra.
Ela, percebendo que ele queria comunicar-se, aproximou-se e aguçou seus sentidos, porém não captou nenhuma mensagem. Sorriu, derramou um pouco do perfume em sua mão esquerda, passou pelo pescoço, pela nuca, e com a mesma mão, acariciou o rosto do marido.
Evaristo ficou cheirando seu perfume, enquanto mil suspeitas e medos fluíam a seu cérebro.
Lentamente fechou os olhos.



Do livro Higgie&Higgie
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