Claudinha nascera na Beira, mais propriamente numa pequena aldeia próxima de Viseu. Dos seus antepassados, herdara a força de carácter. O imenso frio que se faz sentir no Inverno caldeara a sua saúde de ferro. Em 1970, a região, embora atravessada por uma linha ferroviária internacional, era muito deficitária em comunicações. As estradas eram más, o que nada facilitava a vida daquelas gentes, que tinham dificuldades em escoar as suas produções e em adquirir os bens de consumo necessários. Viviam sobretudo de lacticínios, de lanifícios e da exploração florestal para o fabrico de papel. Aqui nasceram figuras notáveis, de que se destacam, entre muitos outros, Leite de Vasconcelos e Aquilino Ribeiro.
Entre as atracções da zona, no Verão, assinala-se a Feira de São Mateus que, segundo reza a História, começou a realizar-se em 1392. Através de muitas vicissitudes, a Feira chegou aos nossos dias e melhora de ano para ano, tendo deixado de ser unicamente uma feira, para se transformar também num pólo de atracções artísticas, culturais, desportivas e recreativas.
Cláudia, mocinha de 20 anos, trabalhava numa pequena indústria de lacticínios, tradição de família desde há várias gerações.
Chegou a casa cansada e deitou-se. Abraçou Onofre e fizeram amor. Como sempre acontecia, nestas ocasiões, falaram baixinho do Marquinhos. Era o bebé que sonhavam ter. Seria rapaz e já tinha nome: Marcos. E se fosse rapariga? Logo se veria… Não seria o que esperavam, mas obviamente que seria bem-vinda.
O despertador tocou e Claudinha estremeceu. Apalpou a cama à sua volta e viu que, obviamente estava só. Tinha sido apenas um sonho. Talvez a discussão que tinham tido na véspera, a tivesse levado a nada comer e a sonhar daquele modo.
Onofre, aproveitando a ausência dos pais de Cláudia, tentara-a para fazer sexo. Seria a primeira vez… Ela, talvez porque também não esperava, teve uma reacção brutal e convidou-o a sair, dizendo-lhe: «Nunca mais voltes, nunca mais me fales!». Mal ele saíra, já estava arrependida.
Ficou mais uns momentos na cama, de olhos fechados, relembrando o seu namoro com Onofre. Decidiu que, ao fim da tarde, ia fazer-se encontrada com ele. Namoravam-se desde os 17 anos, tinham a mesma idade e o passado não podia ser apagado daquela forma.
Passou pela rua do quartel onde ele estava a prestar o serviço militar, precisamente à hora a que ele costumava regressar a casa. Viu-o logo e, mesmo ao longe, reparou que ele vinha com ar triste e preocupado. Cruzaram-se, olharam-se e… um apertado abraço selou a reconciliação. Beijaram-se e compreenderam que não poderiam viver um sem o outro. Cláudia apenas lhe pediu: «Não fales mais no que se passou ontem!». Ele assentiu e lá seguiram abraçados, trocando juras de amor.
Em Abril, Onofre foi mobilizado para o Ultramar, norte de Moçambique. Zona de guerra, mas tudo haveria de correr bem. Cláudia não esquecia o seu sonho e o Marquinhos… Logo na primeira oportunidade, foi ela que «tentou» Onofre e o inevitável aconteceu. Um dia, outro, outro ainda, até ao último dia. Souberam a data exacta de partida e Cláudia veio até Lisboa para se despedir de Onofre no Cais de Santos. Abraços, beijos e lágrimas. «Se ficares grávida, avisa-me logo! Quero ser o primeiro a saber.», foram as últimas palavras de Onofre. Depois foi o embarque e, mais tarde, o barco afastou-se, com braços a acenar de um lado e lenços a esvoaçar do outro.
No dia em que Cláudia esperava aquilo que se convencionou chamar o «período», nada aconteceu. Nem depois, nem depois. Cláudia fez o teste e deu positivo. Consultou um médico em Viseu e teve a confirmação. Marquinhos (?) vinha a caminho. Escreveu de imediato a Onofre, para o endereço militar que ele lhe tinha dado e com a indicação de muito urgente. Iria demorar muitos dias, mas a promessa estava cumprida. Ainda ninguém mais sabia. Agora, tinha de avisar a família e, principalmente da parte dos pais, não sabia qual seria a reacção. Começou por avisar os pais de Onofre. Como resposta, assistiu a manifestações de júbilo e recebeu abraços e beijos. Esperou pela noite do dia seguinte para falar com os pais. Passados tempos, mesmo que quisesse, não saberia repetir o que dissera, tal o nervosismo com que o fez. Surpreendentemente, não ouviu nenhuma censura. Abraçaram-se e misturaram lágrimas. Os pais conheciam Onofre deste miúdo e sabiam que era bom rapaz. Talvez por isso, aceitaram a novidade até com uma certa alegria. Afinal, iam ser avós!
A gravidez decorreu bem. As cartas e aerogramas, como se dizia na altura, iam e vinham, transportando factos e sonhos. Cláudia contando tudo o que se passava por cá, incluindo claro as transformações do seu corpo… Onofre, segundo ela tinha reparado, evitando falar da guerra e privilegiando o futuro, o nascimento do bebé, o regresso, o casamento…
O tempo passa rápido. Passados cerca de nove meses nascia um rapagão com cerca de 3,5 kg. Marcos vinha assim ao mundo, desejado por todos.
Passados meses, o inesperado aconteceu. Os pais de Onofre receberam uma comunicação do Exército informando-os que, no seguimento do rebentamento de uma mina, o filho morrera e o corpo seria em breve repatriado para a metrópole.
Há momentos em que parece que o mundo se desmorona. As duas famílias, e sobretudo Cláudia, passaram pelos piores momentos das suas vidas. Cláudia vestiu-se de negro e assim continuou para sempre. Restava-lhe Marquinhos para mitigar o seu sofrimento e, se não fosse a sua presença, talvez não tivesse resistido a tanta dor.
Cláudia criou Marcos com a ajuda preciosa de seus pais e dos pais de Onofre. Tentou que ele tivesse uma infância feliz, embora sem pai. Ele tornou-se num bom estudante, fez o curso secundário e arranjou um emprego numa fábrica de lanifícios. Começou a namoriscar uma colega e, passados poucos meses, aprazaram o casamento. Tudo se passava agora, mais de vinte anos volvidos, num ritmo bastante mais rápido.
Cláudia não se cansava de olhar para o filho, pois ele era o retrato fiel de Onofre, quando o conhecera. Ainda hoje sentia a mesma dor pela sua ausência. Márcia, assim se chamava a mulher de Marcos, em breve ficou grávida. Cláudia estava a nove meses de se tornar avó! Nasceu um menino que foi registado com o nome do pai: Onofre. Era a última homenagem que podiam prestar ao avô que não tinha chegado a sê-lo.
A vida não sorria porém para Marcos. A indústria de lanifícios ia de mal a pior e muitas fábricas fechavam. Começou a pensar muito seriamente em emigrar. Por intermédio do patrão, que gostava muito dele e de Márcia (tinha sido aliás padrinho de casamento), arranjou uma carta de recomendação para uma multinacional sedeada no Luxemburgo. Foi ele à frente e, passados tempos, seguiram-se Márcia, o pequeno Onofre e, claro, Cláudia. Marcos era inseparável da sua mãe.
No Luxemburgo vivia-se bem e por lá ficaram. Todos os anos regressavam à terra natal que não esqueciam. Tentavam vir sempre por alturas da Feira de São Mateus.
Cláudia, agora com mais de cinquenta anos, sempre vestida de negro, dava por si muitas vezes a pensar em Onofre, pai que não conheceu o filho, avô que não conheceu o neto…
Procurava um canto para chorar: mesmo pesando todos os momentos felizes que a vida lhe trouxera, a dor antiga sobrepunha-se e as lágrimas brotavam-lhe dos olhos. Há dores que não se podem superar!