Cansado de uma vida infeliz, um dia José resolve deixar tudo para trás. Procura alguma coisa que lhe faça bem. Antes de decidir o rumo a seguir, numa manhã de primavera se põe a pensar no destino. Olha para o Leste e imagina o que estaria além do horizonte. Depois, para o Oeste... e ainda sonda os mistérios ao Norte distante. Então, ergue os olhos para o céu claro. Uma ave surge do azul infinito e vem crescendo em sua direção. Pára por um instante, como se levitasse no ar perfumado, próxima à cabeça do homem indeciso. Em seguida, numa rápida guinada o bichinho retoma o vôo com decisão, como uma seta viva em direção ao Sul. José nunca gostou de guiar-se pela intuição, mas naquele momento deseja interpretar o sinal da ave. Por que o Sul? O que buscar por lá? Dorme pensando nessas perguntas e, na manhã seguinte, junta sua pequena bagagem. Enquanto viaja, imagina o que poderia esperar do amanhã. Sabe defender-se dos perigos da vida e domina a boa arte da sobrevivência. Mas percebe que lhe faltava um amor, um grande e verdadeiro amor. Depois de longa distância, sempre a passos cautelosos, encontra-se sobre uma colina, em campos vastos e exuberantes do Sul. Anima-se com a paisagem, gosta do que vê, sente-se bem com o clima e a brisa fria. Identifica-se com a ternura simples das pessoas do lugar. Resolve ficar. Improvisa um abrigo, passa a trabalhar e conhece o povo da região. Moças lindas, prendadas, com graciosos traços herdados das antigas levas de imigrantes europeus. Mas há uma que se destaca, que o deslumbra. Jovem e bela, Maria tem o poder involuntário de fascinar o rapaz. Casta, dedicada e inteligente... Íntegra, coração generoso, transparente na alma e na brancura da pele delicada. Não são poucas as vezes em que ele a contempla como se ela vivesse sob uma auréola de luz. José a vê como uma moeda de única e imaculada face. Sua diva corresponde com olhos límpidos e piedosos. Ele, por sua vez, sempre fora moeda valiosa, mas de duas faces, como é comum às moedas. Tem qualidades, mas traz suas imperfeições. A força do caráter sólido tem a contrapartida das fraquezas de homem do mundo. O contraste desses ingredientes forjara a têmpera latejante do macho sensível e irrequieto. O magnetismo entre os dois seres e suas combinações químicas talvez fossem suficientes para mantê-los unidos. Mas há outros laços, como o amor intenso, a sintonia de idéias, as afinidades e o dom do perdão, outra qualidade da doce mulher. Sobre essas bases transcorrem tempos de harmonia e momentos felizes. Anos depois, renovada alegria nos corações de ambos: um trabalho promissor se abre na vida da competente esposa. O ambiente ao redor da nova funcionária, entretanto, apresenta-lhe outros costumes, pessoas diferentes, nada igual às suas origens recatadas. Então, José nota mudanças. Algumas vezes, dúvidas e impressões se confundem com lances furtivos. Noutras, as circunstâncias conspiram de um ou outro modo ou sugerem desaguar em recônditos desvios. Para os olhos do apaixonado, Maria haveria de ser sempre a fortaleza incorruptível. Da atmosfera insuspeita do abençoado labor não podem brotar desafios que abalem as virtudes dela nem as convicções dele. Enquanto segue ela empolgada com o novo mundo à sua volta, o homem se vê dividido entre suas antigas certezas e as recentes mudanças, que se insinuam na lacônica eloqüência própria das metamorfoses furtivas. De um lado, esperanças misturando-se com ilusões; de outro, incertezas frigindo esperanças. Em meio à combustão dos melhores sonhos, acontece de ele se exaltar. Discussões, crises.. Depois, o amor intercede e volta cada um para os braços do outro. As carícias na cama repõem as dificuldades sob o colchão. Mas no dia seguinte, tal como a criança ainda dominada pela emoção do presente, ele não pode acreditar que tem nas mãos um brinquedo quebrado. Por isso, dá a si mesmo toda sorte de explicações para contornar e seguir. Contudo, entre altos e baixos, a paz vai-se afastando. José sente-se incapaz de remover dos olhos antes piedosos o falso brilho de uma miragem iluminada. Numa manhã desbotada, em que as flores e o sol dourado não bastam para despertar esperanças, José se debruça na janela. Os olhos úmidos das tempestades interiores perdem-se no vazio do futuro e rebuscam no céu do passado a ave que uma vez lhe indicara um rumo. Sem resposta, conforma-se em explicar a si mesmo que naquele dia distante talvez não tivesse interpretado corretamente o sinal nas alturas. Errou na escolha da rota ou da pessoa amada? Ou apenas errara ao esperar da outra metade as virtudes que ele nunca tivera? E ela? Acaso o inebriara? Ou teria apenas sido imprevidente ao deixar que ele seguisse acreditando na eterna santa dos seus sonhos? Esquecera-se de assumir-se sem o manto ou teria preferido mantê-lo, por não saber retirá-lo a tempo? Os anos se passam e as respostas não vêm. Em vez disso, outros abalos se juntam, para lançar ao chão, pedra por pedra, a grandeza de um castelo inocente. José e Maria viveram 20 anos de amor apaixonado.
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