Era uma segunda-feira, por volta de sete e meia da noite, quando Valério, João e eu chegamos à igreja. Já no corredor, ouvi palmas e cânticos. Algo estranho e totalmente novo. No recinto havia umas duas dezenas de jovens reunidos, todos de pé, cantando ao som de um violão: “Jesus em tua presença, reunimo-nos aqui, contemplamos tua face, e rendemo-nos a ti...” Senti-me um estranho, um animal fora do seu habitat. Não entendi, depois dos cânticos, quase nada do que um certo jovem falou aos demais. Cerca de uma hora depois, já no ônibus de volta pra casa, um inominável conflito se iniciou na minha mente. Por um lado, estava convicto de que a única maneira de voltar a ter paz em meu espírito era deixar para trás o antigo modo de viver, por outro, a resolução de isso fazer me enchia de pavor, porque tinha absoluta noção de quanta oposição iria enfrentar dos antigos amigos, de meus familiares, de todos, enfim, que me conheciam do que jeito que sempre fui. Qual a saída? A loucura parecia tão próxima. A paz parecia tão viável, tão à mão. Estávamos agora em frente à casa de Clarice, uma senhorita que nos acompanhou na viagem de volta. João, então, aproximando-se, observado por Valério e Clarice, perguntou-me: “Meu jovem, estás preparado para mudar de vida? Queres receber Jesus em teu coração?” Respondi: “Sim”.
Algo inexplicável aconteceu a partir desse instante. Senti-me como alguém em cujos ombros até aquele momento se mantinha em pressão absoluta uma montanha de milhões de toneladas querendo empurrá-lo às mais profundas regiões da terra, e que de repente deixou de pressioná-lo, fazendo-o se sentir, sem o peso horripilante da condenação, como um pássaro que acabara de descobrir sua condição de voar e observa um céu amplíssimo, infinito, vasto percurso que o convida para a mais regozijante viagem que jamais fizera em toda a vida. A sensação de escuridão total que me dominara nos últimos meses, trocou-se por uma alvura celestial, de onde emanavam as mais indescritíveis sensações de alívio, como se uma luz mais refulgente que mil sóis juntos tivesse esmagado as trevas que me prendiam o coração, libertando-me para a vida plena e luminosa à qual sempre busquei em caminhos de tortura e dor. Era como se tivesse nascido de novo naquele momento; era como se uma nova criatura tivesse surgido naquela hora. A minha alma cansada, finalmente parecia ter achado a paz, porque acabava de repousar em Deus, seu Criador. Imediatamente me dirigi para casa. Feito um noivo feliz em seu percurso, queria gritar pra que todos ouvissem que agora era um cristão, que a partir daquele momento dedicaria minha vida a amar a Deus e ao próximo. Não sabia ao certo como seria essa vida nova, porém nenhum inimigo poderia naquele momento abalar minha mais absoluta certeza de que não voltaria atrás na decisão.
A primeira pessoa com quem compartilhei minha decisão foi Antônia, sentada no sofá da sala de nossa casa, vendo televisão. Foi ela quem me ajudou a sair da prisão. Justo seria que fosse a primeira a saber dessa outra e definitiva liberdade. Mas, estaria eu realmente livre de minhas antigas paixões? Não estaria sendo enganado por minha natureza humana, que encontrou na religião uma fuga aparente para os meus conflitos? Não seria aquela uma auto-reforma imposta a mim pela mais absoluta necessidade de sair daquele transe? Que garantias tinha de que minha decisão não se havia baseado mais em uma auto-sugestão do que numa intervenção de um poder sobrenatural, divino? Realmente eu tinha sido liberto de meus pecados? Não voltaria mais a praticá-los?
E conclui que se comecei a viver uma nova vida esta deveria se mostrar por decisões que lhe caracterizassem como tal, afinal, como mais tarde eu saberia, “não se põe remendo novo em roupa velha”. A primeira delas foi quebrar e jogar fora tudo aquilo que lembrasse o passado. Peguei minhas fitas cassetes, os discos de heavy metal, quebrei-os e os lancei para dentro do terreno baldio, onde antes jogava futebol com os amigos. Fui dominado por uma indignação própria dos tempos da inquisição, tornando-me, ao inverso dos membros das cruzadas católicas, um iconoclasta, pois descobri dentro de uma gaveta do guarda-roupa de minha mãe uma imagem de Maria, segundo ela, benzida pelo padre da paróquia local, não demorando muito para que a imagem tivesse o mesmo destino dos discos e cassetes. A diferença, nesse caso, é que mamãe protestou com indignação contra aquele ato, a seu ver, de extrema violência e falta de respeito; bem diferente foi a reação dela quando quebrei os discos, visto que uma de suas muitas reclamações contra o mim era que eu já estava surdo, tão alto ouvia aquele rock pauleira que ela detestava. Uma das coisas que eu não pude mudar, ainda que muito desejasse, foi a tatuagem que mandei fazer quando tinha dezessete anos. O último nome de um cantor de rock, Ronnie James Dio, estava gravado em cor verde, no meu braço esquerdo, o lado do coração. À época eu não sabia que “dio” é “Deus” em italiano. Já trazia Deus gravado no corpo, por que não convidá-Lo a morar no coração? No dia seguinte teria que ir trabalhar. Depois de meus familiares, foram as pessoas de meu local de trabalho as próximas a tomar conhecimento daquela incrível mudança.
Passados alguns dias, todos os meus amigos já sabiam do meu ingresso na igreja. Eu já havia superado o impacto inicial de ter que enfrentar os comentários, os olhares de condenação e galhofa daqueles que não aceitavam, porque não entendiam, aquela radical mudança de vida. Eu agora voltava da igreja com a Bíblia na mão sem a menor vergonha, sem ligar para quem me chamasse de louco ou coisa do gênero. Por exemplo, certo colega de trabalho, ao notar a mudança em meu comportamento, questionou: “Por que agora tu não tira xerox sem a requisição?”. “Por que isso é errado. E fazer as coisas corretamente é uma prova de que Jesus operou em meu coração”, respondi. O colega insistiu: “Em que hospital ele te operou?” O silêncio foi a minha resposta.
“E assim se alguém está em Cristo...as coisas antigas já passaram... eis que se fizeram novas...eis que se fizeram novas”. Esse cântico, um dos primeiros que aprendi a cantar na igreja, parecia se concretizar fielmente na minha vida de neófito. Se antes eu não tinha nenhum projeto de vida, nenhuma perspectiva futura seja em relação aos estudos, a necessidade de “ser alguém” na vida, seja em constituir família, enfim, se tudo aquilo que compõe o grande ideário da maioria das pessoas sequer rondava meus pensamentos, agora queria ter uma família, uma esposa, filhos, um emprego estável e seguro. Queria ser gente, afinal já era um homem de vinte anos de idade.
Essas mudanças foram significativas, por certo, não essenciais, contudo, ou não tanto quanto as ocorridas no meu entendimento em face das verdadeiras razões e objetivos porque minha passara por tão grandiosa transformação. E isso aos poucos eu começava a compreender.
Lembro-me que um dos primeiros sermões que ouvi foi baseado no capítulo 3 do evangelho de João, no qual Jesus conversa com Nicodemus, um mestre da lei dos judeus. Jesus disse a esse nobre e respeitável judeu que era preciso nascer de novo. Sem entender, Nicodemus perguntou a Jesus se era possível um homem retornar ao ventre materno e nascer uma segunda vez. A resposta de Jesus foi que Nicodemus, como todos os homens espiritualmente mortos, tinha que nascer da água e do Espírito. O pastor de minha igreja explicou bem essa passagem bíblica, dizendo que nascer do Espírito significa que alguém, ao encontrar-se com Deus, recebe uma nova vida, um novo coração, uma nova natureza. “O quê?” Espantei-me. Como um homem pode ter duas naturezas? Depois da mensagem procurei o pastor pra tirar essa imensa dúvida da mente. Ele disse que o homem fora criado com uma natureza humana pura, e que ao pecar, ao cair da graça por desobediência, teve essa natureza maculada, arruinada totalmente, de modo que não poderia mais se relacionar com Deus, já que Deus abomina o pecado. Disse mais, que antes de pecar, o homem possuía a imagem de Deus, pois fora criado à imagem e semelhança de seu Criador, e que o pecado fez com o homem se tornasse tão diferente de Deus, tão preso às suas vis paixões, que essa imagem fora retirada até que num tempo futuro fosse novamente restaurada. E isso, afirmou o pastor, somente foi possível quando Deus enviou Jesus ao mundo para morrer pelos pecadores. Por essa causa Jesus disse a Nicodemus que ele precisava nascer de novo, ou seja, precisava reconhecer que era um miserável pecador, morto em seus delitos, afastado de Deus e sem esperança no mundo. Sua natureza humana, manchada, necessitava ser trocada pela natureza divina. “Pastor, como posso ter duas naturezas juntas em mim?”. “Pedro, não é que você tenha duas naturezas; você continua sendo humano, o que acontece é que, ao se converter, você volta a se relacionar com Deus, o Espírito Santo passa a habitar seu coração, ensinando você, lembrando-o das palavras de Deus; você passa a ter novamente a imagem de Deus em sua vida. Daí eu dizer que a natureza divina está em você, entendeu?”
Eu começava entender, portanto, que muitas de minhas antigas paixões se justificavam por eu estar longe de Deus. Entendia também que minha lascívia, o fato de me satisfazer mentalmente observando as mulheres em sua intimidade nada tinha a ver com os fatos relatados de minha infância. Eu não era produto do meio, como querem a psicologia e a sociologia. Por isso não podia justificar meus pecados atribuindo-os a possíveis traumas de infância. Ao nascer eu não era um lindo anjinho, que depois foi se contaminando com a maldade de seu ambiente. Já nasci pecador, e aquelas primeiras manifestações conscientes de meu pendor para fazer o mal, apenas provam que nenhum homem é bom, que não há bondade residual alguma em sua natureza a ser cultivada a tal ponto de sufocar a maldade inata, tornando-o isento, livre do pecado.
Nesses primeiros momentos de compreensão de assuntos teológicos, as questões doutrinárias não me incomodavam. Isso seria um sério problema para um futuro próximo. Naquele momento de minha experiência queria viver plenamente as coisas da religião. Tanto que, ainda nesse primeiro ano, resolvi entrar no seminário. Compreendi que queria ser pastor, ou missionário. E me ajudou nessa decisão o fato de ter me tornado um dos líderes da mocidade de minha igreja. Nessa condição, pregava a Palavra, ministrava louvor, organizava eventos, enfim, tinha uma atividade eclesiástica bastante produtiva. Por que duvidar de minha vocação? E por me mostrar disposto a participar ativamente (ativismo?) da vida da igreja, logo entrei em grupo musical, tendo inclusive viajado para Belo Horizonte, onde participamos de um encontro espiritual que celebrava o avivamento.
Belém estava nessa onda de renovação carismática, a partir da qual houve um boom de igrejas neopentecostais, onde a “busca de poder” era a marca mais patente dessa sede pelo sobrenatural, pelo aspecto miraculoso da fé. Minha igreja era neopentecostal. E foi num dos cultos de “busca de poder” que um dos irmãos, pondo as mãos em minha cabeça, profetizou que Deus havia me entregado o dom da palavra. Pronto, estava confirmada minha vocação.
No seminário, apesar das boas notas, não consegui terminar o primeiro ano. Desisti. E entrei em crise. Já tinha decidido que não faria vestibular. Achava que o tal “estudo superior” era apenas uma imposição da sociedade secularizada, que privilegiava o conhecimento humano, colocando-o como condição sine qua non para que quisesse “subir” na vida. E mais, achava que poderia muito bem adquirir esses conhecimentos superiores sem necessariamente ter que entrar numa universidade. Como é de se esperar quando o coração do homem faz planos sem esperar a resposta que vem dos lábios de Deus, estava totalmente equivocado em relação ao chamado para o ministério e à inutilidade de um curso superior. O tempo escorria pelas mãos...
Nos primeiros dias de minha experiência espiritual (até aqui não tenho falado de “minha conversão” porque a segurança da salvação está seriamente abalada por causa dos fatos que mais tarde os leitores terão chance de conhecer) havia como que um fogo queimando em meu coração. A alegria que sentia era indescritível. Em pouco tempo tudo aquilo que me alegrava, festas, drogas, o pecado enfim, parecia não ter nenhum sentido mais. Não entendia como pude ter vivido durante vintes anos de forma tão deplorável, afundado na lama dos pecados, preso pelo diabo e suas artimanhas. Curiosamente, todas as manhãs de sábado ia à igreja do meu amigo Valério, a mesma onde tinha ouvido um sermão evangélico pela primeira vez e de onde fugi, assustado pela forma como o obreiro quis dar “uma força” na minha decisão de “aceitar” a Jesus. Numa dessas manhãs, na companhia de Valério e João, de joelhos no chão e com o rosto posto sobre o banco da igreja, falei com Deus, pedindo-Lhe que me perdoasse os pecados, e me tornasse um filho obediente, um servo fiel. Naqueles instantes havia como que uma luz claríssima iluminado minha mente, e um sentimento de paz como nunca havia sentido antes; era como se Deus estivesse ali, perto de nós, ouvindo nossas vozes, e respondendo através de Seu Espírito. As lágrimas que lavaram meu rosto chamaram a atenção dos dois, que se olharam sorrindo, como se pensassem “quão grandes coisas tem feito o Senhor”.
Eu poderia dizer que era o homem mais feliz do mundo. Nenhum outro motivo havia pra que meu coração se regozijasse tanto, abrindo-se totalmente para que Deus nele habitasse pelo resto de meus dias nesta terra. Compreendia agora que Deus é o sumo bem por quem sempre anelei. Era o amigo que nunca tive, o pai que nunca me amou, a quem nunca com gratidão e reverência havia me dirigido. Sabia naqueles dias de intensa e efusiva alegria que era, sim, um pecador miserável, inteiramente dependente da graça de Deus, que havia sido encontrado longe e perdido. Sem luz, sem paz, andando como um cego à beira do abismo, foi assim que Deus pegou em minhas mãos. Ele era agora a pérola de grande valor por quem deixei tudo, abri mão de tudo, vendi todos os meus bens para adquirir. Pra aumentar minha alegria, seis meses depois minha irmã Antônia entregou seu coração a Jesus. Estava tão cheio de gozo que se quisesse Deus poderia tirar minha vida, e seria então glorioso o momento em que eu O veria face a face, deixando os sofrimentos desta vida, a luta contra o mal, a tensão quase insuportável entre o desejo de fazer o bem e o pecado que tenazmente me assediava. E tanto era meu desejo em ser santo, que pedi a Deus que tirasse a minha vida caso eu me desviasse de Seus caminhos. Tolo, presumi ser possível nunca mais cometer pecado algum, sendo essa presunção talvez o mais perigoso deles.
Pode parecer incrível mas antes de entrar para a igreja jamais tivera uma namorada. Além da timidez natural, e da feiura, ajudava-me a ficar nesse estado de permanente “secura” o fato de o meu grupo de relacionamento se formar majoritariamente de homens; as mulheres que dele participavam “pertenciam” a outros membros da turma. Naldo, um dos mais falantes dos meus antigos colegas, tinha três namoradas, e mantinha a situação em segredo por malabarismos que até hoje não descobri. Minhas poucas relações carnais aconteceram em circunstâncias que hoje lamento profundamente, porque se deram sob a lógica perversa de que tudo vale a pena quando a alma está nas mãos do diabo.
Na igreja havia muitas mulheres, aliás, mais mulheres que homens. Minha primeira namorada de verdade, se é que posso chamar de namoro esse caso, foi Salete, uma jovem de vinte e três anos, branca, cabelos louros e encaracolados, olhos verdes como petecas, e tímida, exatamente como havia colocado em minha relação de pedidos. Era comum nesse tempo, e creio que até hoje, colocarmos nossos pedidos em uma relação e orar por eles, até que Deus atendesse a todos. Era corrente, também, o consenso entre os irmãos que Deus sempre tinha que responder. O silêncio divino jamais era tido como resposta, ou jamais era aceito como um “não”. Nesse tempo eu participava, às quintas-feiras, da reunião na sede de uma organização missionária que alistava jovens dentro das igrejas para serem missionários em outros países. Nessa organização os membros não podiam namorar, nos moldes tradicionais, ou seja, com beijos e abraços, sem que firmassem diante de Deus e da comunidade um compromisso de casamento; enquanto não se decidissem pelo matrimônio, teriam que ficar sob a observação de seus líderes numa espécie de “amizade especial”. Adotei esse modelo de comportamento e durante um mês beijei Salete apenas uma vez, na testa. Creio não ter sido a ausência de contatos físicos mais ousados a causa do fracasso dessa nossa “amizade especial”. Hoje compreendo que o desnível sócio-econômico muitas vezes determina o fim de uma relação aparentemente segura. Digo isso porque, quando me foi perguntado se eu iria à recepção do casamento de uma irmã de Salete, um outro irmão dela imediatamente respondeu “não”, como se quisesse dizer que eu não tinha classe suficiente para estar num ambiente sofisticado. O fato de ser negro e pobre talvez explique melhor essa oposição da família à minha relação com Salete. Ela era universitária, eu mal havia terminado o segundo grau
Nesse período, depois da decepção com Salete, minha segunda namorada foi uma adolescente de tez morena, olhos negros, lindos cabelos, lisos, compridos. Tinha dezesseis anos, e corpo de mulher feita. Não sabia que Nilce gostava de mim. Notava, sim, que toda vez ao sair da igreja após o culto, ela me esperava passar, sentada na penúltima fileira de banco. Quando chegava perto, sentia que ela olhava para frente, nervosa e com um brilho suspeito no olhar. Não me lembro por que razões o namoro acabou....mas acabou. Não sabia se um dia encontraria a mulher com quem sonhava para ser minha esposa e mãe dos meus filhos. Estaria Deus guardando essa mulher para mim em algum lugar deste mundo? Essa pergunta se tornaria a mais freqüente dentro daquelas que todos nós nos fazemos quando passamos a pensar no futuro. Há uma música “do mundo” muito conhecida, na qual o autor diz que queria ter na vida apenas “uma casinha branca, de varanda, um quintal e uma janela para ver o sol nascer”. De alguma forma esse trecho traduzia minhas aspirações em relação à família. Queria encontrar uma mulher, casar, ter filhos, e viver uma cristã simples, mas agradável aos olhos de Deus. Há desejo mais nobre que esse?
Durante algum tempo eu me orgulhei, isso mesmo, senti orgulho por não praticar os pecados de outrora. Deixar de fumar maconha, beber, roubar e mentir, parecia às vezes fruto de meu próprio esforço, e não uma conseqüência do encontro com Deus. De uma hora para outra, não posso especificar quando, aquele período inicial - que depois eu conheceria como sendo o do primeiro amor - passou do entusiasmo absoluto à preguiça mental que me levava a ficar vários dias sem orar e ler a Bíblia, revelando uma curva descendente contínua e progressiva na vida espiritual. Os primeiros sinais de desânimo determinaram também a volta de alguns pecados. Como um bêbado que se livrou do alcoolismo e depois de algum tempo experimenta uma dose de uísque, ficando na mais absoluta depressão por saber que seu maior inimigo ainda o persegue, assim também me senti ao descobri que o pecado não tinha sido eliminado da minha vida. Pensava que, uma vez na igreja, orando, cantando, lendo a bíblia, participando da vida eclesiástica ativamente, não mais voltaria a pecar. Era ingenuidade? Presunção carnal? Ou era, de fato, uma reação natural de quem se achava invulnerável ao pecado por ter experimentado o perdão de Deus? Quando Jesus perdoou a mulher adúltera ele não disse a ela “vai e não peques mais?” Eu pensava ser possível viver sem pecar. E quando pela primeira vez chamei um palavrão por ter tropeçado, senti uma incrível vergonha, e não tenho certeza, caros leitores, se foi pela consciência do pecado ou porque minha resolução de não pecar nada tinha a ver com o fato de Deus abominar o pecado. Minha satisfação interior deveria ter razão no fato de estar me esforçando por fazer a vontade de Deus, e não porque, pelo esforço pessoal, conseguisse vencer o pecado. Não me lembro bem quando foi a primeira vez que vi um filme pornográfico após ter entrado na igreja. O que posso afirmar com convicção é que, após o fato, senti-me o pior homem do mundo, alguém vil, em cuja face deveria estar estampado o nome “hipócrita”, à semelhança da tradição de algumas sociedades medievais que puniam as mulheres adúlteras pendurando em seu pescoço uma letra escarlate, sendo o sinal visível do seu pecado. Quando andasse pelas ruas todos saberiam que se tratava de uma adúltera, tornando-se objeto do mais puro escárnio. Poderia muito bem colocar na minha testa nove letras escarlates!
O fogo inicial parecia ter se tornado em minúscula chama, que nenhum calor mais infundia ao coração. Hoje posso afirmar que fui abatido pela apatia espiritual no meu vôo rumo à plenitude de vida, como a águia que intentava chegar no mais alto céu para fugir das tempestades e foi derrubada pelo tiro de um caçador. A Bíblia não diz que os que confiam no Senhor têm asas como águia? Não entendia porque jamais li a Bíblia inteira. Li quase todo o Novo Testamento e parte do Velho Testamento. Não conseguia manter uma atitude devocional consistente. E sempre que me dispunha a consagrar minha vida, as tentações da carne conseguiam me vencer. O brilho do meu rosto se transformou em opacidade mórbida, a língua ressequida parecia colada à sua base e a garganta, vazia, não conseguia mais liberar a voz pulsante de alegria. Parecia ter me tornado um dos esqueletos do vale de ossos secos; parecia ter fugido do meu coração o encanto do primeiro amor. Temia, de fato, que nunca o tivesse experimentado.