Aninha estava eufórica. Soube pelos corredores do Curso de Inglês que haveria uma festa na Pedra da Gávea e o patrocinador do evento era Ícaro, o homem das asas voadoras.
- Também quero participar da festa das asas... – falou Aninha para seu colega de turma.
- Pode não, Aninha... só vai quem tiver asas para poder saltar lá de cima...
- E como posso conseguir estas tais asas?
- Não pode. Só Ícaro tem as asas e seus convidados já estão contados e com suas asas guardadas na casa dele.
- E você vai?
- Eu? Eu não... não fui convidado., Aninha...quem vai se importar conosco?
- Ora, professor! O Sr. É o melhor professor daqui...fez mestrado fora, e lhe acho “maior fera”, além de amigo de todos os alunos e não é a toa que foi convidado para ser o paraninfo dos alunos...
- Obrigado, Aninha. Só que isso não me dá o direito de querer participar da Festa.
- O Sr não gosta de Asa Delta, Prof. Gusmão?
- Hummm... nunca voei. Não gosto muito de alturas...
- E não gostaria de experimentar?
- Nem pensei nisso. Mas acredito que seria um desafio...
- Igual à Física, não?
- É – sorriu com um sorriso largo –. Preciso terminar minha matéria, Aninha...
- Tá bom. Vou indo...
Aninha não se deu por satisfeita. Também fazia parte do Grupo do Curso. Ela era quem tirava as melhores notas. Era ela quem organizava as festas; que ajudava na faxina quando tudo acabava; que guardava todos os apetrechos isolados em papel especial. Era ela quem organizava as listas e estava sempre por perto para ajudar os professores. Não entendia por que não podia participar da festa e nem por que ninguém havia se lembrado dela, afinal ela era requisitada para tudo. Era ela quem trabalhava pela Escola com sua dedicação e despreendimento. Fazia por gosto. Amava seu Curso e amigos. Os professores eram atenciosos com ela e o Diretor... esse era o seu Anjo da Guarda. Todos que ali participavam com ela do dia-a-dia tumultuado, inclusive os funcionários, faziam parte de uma grande família.
Resolveu falar com Ícaro - o homem das asas e Diretor da Escola - pessoalmente. Encheu-se de coragem, deu um capricho nos cabelos e lá se foi ela.
Bateu na porta da Diretoria e escutou a voz do homem-pássaro ressoar: “Entre!”.
- Bom dia, Sr. Diretor!
- Bom dia, Aninha. Algum problema?
- Problema não. Vim falar com o Sr. sobre um assunto...
- Pode falar, Aninha.
- É que eu soube que vai haver uma festa na Pedra e que só irá participar quem tiver asas...
- Sim... e daí?
- É que desde criança que sonho em voar pelos céus...sentir o vento balançando o meu corpo...a liberdade total...por isso que vim aqui lhe pedir que me deixe participar da Festa.
- Sinto muito, Aninha. Só tenho 10 asas preparadas e elas já tem dono.
- Não tem como arrumar uma pra mim? Eu espero alguém saltar e depois, no final, eu pego emprestado e salto.
- Mas tem que ter instrutor, Aninha. Você não poderá saltar sozinha.
- E não pode ser o mesmo instrutor dos outros?
- Não, Aninha. Eles pagaram o instrutor...
- E o Sr. não é amigo do instrutor?
- Sou
- Então!? Não pode pedir à ele?
- Não Aninha. Sinto muito.
Aninha saiu da sala com o coração apertado. Não sabia como tinha conseguido segurar o choro e a decepção. Todos do Curso presenciaram sua amargura. Ninguém jamais tinha visto a menina Ana daquele jeito. Estava sempre sorridente, solícita e gentil. Era bolsista. Foi o Diretor Camargo que a ajudou quando a conheceu rondando o Curso e fazendo perguntas à Secretária. Gilda conversou um pouco com ele sobre Aninha. Achava a menina inteligente e poderia ajudar também na Secretaria como uma recompensa pela bolsa. Gusmão também gostou dela, mas não havia mais bolsas para oferecer e então decidiu que ela estudaria e em troca daria sua contribuição na ajuda à Secretaria.
Não era uma cena agradável de se ver a desilusão de Aninha, principalmente por vir do rosto da menina alegre e feliz, tamanha melancolia.
Aninha foi para casa e chorou durante toda a noite. Sabia que o Diretor não tinha como arranjar as asas pra ela, mas ao mesmo tempo, seu coração chorava sua primeira e grande desilusão. Seu sonho de pássaro havia acabado e doía muito. Uma dor insistente. Uma dor de perda. Uma dor de parto, mas parto de ida e não de feto.
Chegou o dia da tão esperada Festa da Pedra. Como sempre, Aninha fora requisitada para ajudar na organização da festa. E ela foi. Triste, mas foi. E cumpriu seu papel. O Diretor para recompensá-la permitiu que ela assistisse os saltos lá do alto da Pedra.
Todos se prepararam e, um a um, foram saltando. Voando como desejava Aninha. Ela ficou acompanhando com seus olhos atentos e brilhantes e imaginando-se nas asas. Conseguiu voar em sua imaginação.
De repente um vento forte chegou varrendo tudo que encontrava pela frente, numa velocidade impiedosa. A menina agarrou-se à uma pedra e ficou lutando contra o vento e só conseguiu levantar o corpo bem depois de tudo terminado quando chegou um helicóptero de salvamento para apanhá-la. Foi então que olhou lá para baixo - que coincidência, nas asas de um avião! - e assistiu a tragédia: Um aglomerado de gente. Estava zonza e não estava entendo direito. O helicóptero pousou e só então ela escutou a mensagem do Comandante: “8 mortos e dois desaparecidos”. E começou então a busca. O Diretor estava entre os desaparecidos.
Aninha estava trêmula. Havia restos de asas por todos os lados. A ambulância chegou para prestar socorro. E Aninha chorou sua segunda decepção. Onde estaria o Diretor? Será que estava bem? Mas olhou para os corpos e sentiu uma tonteira e desmaiou.
Quando se recuperou, estava no Hospital e tentou se levantar, mas estava ainda zonza e chamou a enfermeira:
- Enfermeira! Por favor!!! Pode vir aqui um instante?
- Sim? Está melhor? Sente alguma coisa?
- Estou bem. Quero saber notícias do Diretor Gusmão.
A Enfermeira calou-se pôr um instante e tentando não assustar a menina Ana, sussurrou:
- Fique calma. Ele foi encontrado, está no CTI. Estamos fazendo o possível...
- CTI? Quero vê-lo. Deixe-me vê-lo, por favor...
- Você não pode entrar lá agora. Ele foi operado de urgência. Fique calma que assim que tiver notícias venho te informar. Descanse um pouquinho, você está muito nervosa...
Neste instante entrou uma outra enfermeira e falou algo no ouvido da enfermeira que olhou pra Aninha sem saber o que falar
- O que houve, enfermeira? Como está o Diretor? Estão falando dele não é?
- Sim, Aninha. Olha... seja forte...você...
- Fala logo, enfermeira! O que aconteceu com o Diretor?
- Ele faleceu Aninha. Traumatismo craniano. Tentamos muito, mas tinha poucas chances de sobrevivência. Sinto muito.
E Aninha chorou sua terceira decepção. Naquele momento todos os seus sonhos viravam pó. Saiu do quarto onde se achava e tentou olhar o Diretor mas não a deixaram. Sentia que morria junto com ele todos os seus sonhos de menina. Nunca mais iria esquecer o Diretor, Nunca mais. Nem as asas.
Aninha saiu do Hospital, olhou pro céu e pensou: As asas levaram Ícaro. As asas que tanto sonhei e que queria experimentar. Nunca mais quero saber de asas...e continuou a falar com os céus: “Obrigado, Senhor, por cortar minhas asas...
Foi pra Escola e ficou olhando a cadeira de seu Diretor. Não chorou mais. Tinha certeza que ele não gostaria que ela chorasse. Podia até ouvir sua voz forte e carinhosa: “Vamos lá, aninha! Quero você em primeiro lugar. Sei que consegue. Sorria, vamos! Estou apostando em você”.
Fechou a porta. Nunca mais esqueceria o Diretor Gusmão, nem olharia mais pras asas.