O palco, um grande tablado de madeira, era montado sobre as escadarias da Igreja Matriz de Santa Quitéria. A topografia em aclive, com a entrada principal da igreja em elevação propiciavam a contemplação do espetáculo pela multidão de fiéis que a sua frente se aglomerava. Três cruzes, a do meio maior que as das laterais, eram fincadas à esquerda da porta principal da igreja, num canto dos jardins laterais. Receberiam Jesus e os ladrões.
O Calvário de Cristo, com todas suas estações, era encenado pelos atores amadores na medida que a procissão percorria as ruas. A Euterpe Quiteriense era um espetáculo à parte executando as partituras durante toda a procissão. Findava-se no palco onde cenas específicas encerrariam as cerimônias da Sexta-Feira da Paixão.
A cerimônia dos batismos fora anunciada pelo locutor. Os figurantes se puseram ao largo do rio simbolizado por uma lona azul ligeiramente erguida e presa no tablado. Abobrinha, caracterizado São João Batista, barba falsa, peruca de cabelos longos, entrou no rio, se pôs de frente aos fiéis figurantes, ergueu os braços e disse:
_ Vinde até a mim. Vós que credes no Messias.
Barão levantou a vestimenta até a canela. Entrou no rio e ajoelhou em frente à Abobrinha.
_ Eu creio no Messias e na Vida Eterna.
A multidão de fiéis, silenciosa, erguia suas velas. Eram as únicas luzes na praça. Os postes da praça ficavam com as lâmpadas de mercúrio apagadas. O frio da madrugada era anunciado por uma brisa fresca. Abobrinha encheu a mão com os cabelos encaracolados de Barão. Baixou sua cabeça até uma bacia d’água camuflada pela lona. Um som de tambores e pratos da Euterpe Quiteriense, amplificado pelo alto-falante da torre da igreja, fez eco ao longe. Com a cabeça de seu amigo afogada na água Abobrinha sussurrou:
_ Bebe seu porco, da água que lavou os pés dos mendigos. Que essa borra purifique seu fígado atrofiado por cachaça e cerveja e lave seus pecados. Seu devasso e profano.
Barão não suportou a brincadeira do amigo e soltou o resto de fôlego que lhe segurava a lucidez fazendo a água borbulhar. Neste instante, segurando o riso e ainda agachado, Abobrinha completou:
_ Eu lhe batizo, com a pinga desta moringa, em nome da pinga, da putaria e da jogatina. Amanhã é Sábado de Aleluia, vais entornar a cuia!
Levantou-se erguendo o amigo. Barão tossia e a água espirrava pelo seu nariz. Ansiava vômitos vazios. Abobrinha apertou os dedos puxando os cabelos do amigo acordando-o para a cena e em voz alta e séria professou:
_ Eu lhe batizo, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo!
_ Amém. Respondeu a multidão.
A Euterpe rompeu o silêncio com seus acordes. O locutor entrou em ação comentando a cena e Abobrinha, sutilmente, apoiando o Barão, transpôs a cortina nos fundos do palco. O amigo, vermelho de tosse, ajoelhou novamente, apoiou as mãos no chão, recuperou o fôlego, olhou para Abobrinha e puseram-se a gargalhar.