Este caleidoscópio que é a vida vai modificando os ambientes, as paisagens e os humores.
Ana havia provado de quase tudo. Do deslumbramento da adolescência à cruel realidade. O remorso a marcara como ferro em brasa, deixando cicatriz em sua pele, em seus sentimentos, em sua consciência. O remorso mastigava, retorcia, sufocava. Os olhos tornaram-se parados, opacos, como virados para dentro, buscando motivos, tecendo respostas. O amanhecer prenunciava mais um dia de sofrimento, o entardecer, em sua imensa solidão, entristecia a alma. O anoitecer amedrontava com seus pesadelos que se anunciavam nos pequenos cochilos, nas modorras e, um esforço ingente para manter a mente acordada, entrava em choque com o cansaço.
Ao ser recebida com tanta alegria em sua casa, Ana se reencontrou. Sempre vigiada e atendida por Filó e Chico, sentia-se protegida.
A juriti já cantava o seu canto langoroso de paz, o sol desmaiava de mansinho, quando Chico, apoiando a Ana, buscou o banco de madeira junto á uma árvore.
Respirando fundo, Ana se sentou. Chico sentou ao seu lado, sem largar a sua mão. Encabulada, ela perguntou:
- Chico, você me perdoou? Perdoa todo mal que eu causei e ainda estou causando? Você tem certeza?
O rapaz passou o braço pelos seus ombros, e disse-lhe, carinhoso:
- Padre Jesuíno me alertou que você estava sendo levada pelo encantamento que a vida, com seus tios e na cidade, lhe causava. Naturalmente, depois foi se deixando envolver por Arnaldo e suas manhas. Parece que estou vendo, Ana, aquela cobra preparando o bote. Mas agora você está aqui, comigo, e não vamos, nunca mais, falar nisto – aproximando o seu rosto ao dela, ele murmurou – eu quero me casar com você agora, antes que o nenê chegue.
- Mas ele vai chegar no mês que vem – respondeu espantada.
- Justamente por isto, quero que ele tenha o pai do lado, esperando por ele.
- Mas Chico...
- Ana, eu quero você todinha, com tudo que tiver dentro – encostou de leve a mão sobre o seu ventre e afirmou, comovido – ele é e será sempre meu, não duvide disto. Quero registrá-lo logo que ele chegar. Nós seremos uma família muito feliz, Ana. Muito feliz!
Com os olhos lacrimejando, ela o abraçou e, pela primeira vez, Chico recebeu, nos seus lábios, o beijo úmido, amoroso, dos lábios macios de Ana.
Assim abraçados e felizes, Filó veio encontrá-los. Chico contou-lhe que havia falado com Teobaldo e, emocionado, comentou os abraços que havia recebido.
- Você sabe, Chico – falou Filó – você foi a última alegria de Verenciana, que Deus a tenha. Vê-lo abraçar o Teobaldo, com tanto orgulho, naquela vaquejada na fazenda Esperança, foi o que me fez perceber que toda aquela braveza dele encobria um coração bom e muito amoroso. Foi você que me deu coragem para aceitar o pedido de casamento do Teobaldo. – emocionada, ela completou – e agora, amando, compreendendo e respeitando a minha filha, você é tudo de bom que já entrou nesta casa.
Dr Gervásio havia recebido o alvará da soltura de Teobaldo,
emitido pelo Juiz da Comarca, que há muitos dias estavam esperando e, ao entregá-lo disse-lhe:
- Você vai ao noivado de sua filha! Que prazer eu sinto por você, mas vou sentir, e muito, a sua falta.
- Obrigado, doutor, o senhor arranjou, em mim, um amigo. Espero que dê oportunidade a outros que, como eu, a sorte venha a castigar.
- Darei sim, fique sossegado!
De manhã, um táxi parou em frente da casa da fazenda e Teobaldo desceu. De cabeça erguido, cheio de alegria, entrou na sala.
O encontro com a família foi emocionante. Tonino abraçou-o com muita ternura e rompeu a chorar e, com ele, a família toda. Abraçado a Filó, que ria e chorava, Teobaldo falou, com dificuldade:
- Calma, minha gente, isto até parece velório! Eu cheguei em tempo de assistir o noivado de Ana e Chico! Quero saber das novidades. Quando chega meu neto?
E o assunto pegou fogo, mais ainda com a chegada de Miloca que, feliz e ofegante, abraçou o tio e os noivos. Sentia que a mãe não pudesse estar ali, mas eles já sabiam...
- Eu sei - interrompeu Teobaldo – ela tem que cuidar de Arnaldo e Elvira. Vai tentar remendar aquele casal – suspirando, ele concluiu – Ah! Delfina! Delfina! Que capacidade de luta pela felicidade da família!
Um grande silêncio os envolveu. As atitudes de Delfina haviam favorecido a todos. Com o casamento de Chico e Ana, a família de Filó estaria restaurada, no entanto ela continuaria lutando para dar equilíbrio à Elvira e saúde a Arnaldo.
O grande silêncio foi interrompido quando Chico tirou as alianças do bolso e pediu que Teobaldo as colocasse no seu dedo e no dedo de Ana.
Depois dos abraços e comentários de alegria, Filó murmurou:
- Miloca – disse ela baixinho – vamos fazer uns bolinhos de chuva e um cafezinho? Ana adora os bolinhos e Teobaldo deve estar louco para fazer boca-de-pito...