Como nos últimos dias, Anne estava olhando o álbum de recordações. Estava meio desanimada mesmo sabendo que poderia estar fazendo algo ou planejando mil coisas para a noite de Natal.
Seus pais já haviam ligado para almoçar, lá fora estava ventando e o sol brilhando. Parecia bobeira, mas lembrava-se de como adorava estender as roupas no varal, sentir aquela brisa, o sorriso acendendo uma outra vontade de inventar outros afazeres.
Colocou um cd para ouvir, e ficou pensante, olhando para o teto. Já haviam se passado horas, e era noite. Resolveu colocar um agasalho e caminhar. Enquanto perambulava observando as luzes dos postes ouviu alguém gritar seu nome. Olhou para trás e nada. Devia ser fruto da sua imaginação ou a quietude da noite lançando ecos vindo de longe. Sentiu um calafrio, mas resolveu continuar a andança. E do nada começou a serenar, deu meia volta e direcionou seus passos de encontro ao refúgio. Um banho quente ia fazer bem, depois, quem sabe tomar algo e beliscar umas bobeiras antes de dormir.
Um carro parou ao seu lado enquanto voltava e uma figura estranha abriu a porta com um sorriso malicioso. Um medo sem fim fez seu coração bater em pane e saiu correndo.
Depois disso não se lembrava de mais nada.
Uma luz forte lá na frente fez seus olhos se fecharem e quando isso aconteceu era como se adormecesse. Quando despertou estava em outro lugar. Sentia que as pessoas a olhavam de modo estranho, então percebeu as vestes, totalmente diferentes, os tecidos, a forma como as mulheres prendiam seus cabelos. Não era possível. Só podia ser sonho.
“ Claire ! Claire ! Você voltou ? Onde estão seu pais?”
“ Claire... Como assim, Claire ?” (...) . “Céus, mas o que está acontecendo? Não entendo, não sou Claire... Deve estar me confundindo com alguém., Senhor...”
“Claire, sou eu, Graham. Não é possível que tenha esquecido... Você e eu éramos apaixonados, mas como eu não tinha terminado a faculdade, e já haviam prometido sua mão a William, pensei que haviam se mudado para os preparativos. Nunca mais tive notícias suas. Isso já faz quatro anos.”
“Escute, pode parecer um absurdo, mas veja minhas roupas. Não sou daqui, não está vendo que estão até olhando para mim de modo estranho?”
“Venha comigo, não tenha medo, enquanto isso conversamos, está bem?”
Uma luz forte veio de novo de encontro e seus olhos se fecharam. De novo aquela espécie de sono.
“Acho que ela escorregou e caiu. O senhor mesmo diz que os exames não acusam nada grave. Um coma. De uma hora para outra pode despertar.”
“Tudo bem, Solange. Não encontraram nada como um telefone de alguém para entrar em contato e avisar onde ela está? Alguém da família precisa saber...”
“Nada, Dr. Luigi... Nada. Ela parecia estar perto de casa, por isso estava sem documentos, apenas chaves do local onde mora, creio.”
Os olhos de Anne se abrem novamente. O mesmo homem que encontrara, e o sonho ainda continuava.
“Que aconteceu?”
“Não sei, quando chegamos aqui, você desmaiou. Está melhor agora?”
“Esses quadros, fui em quem pintou...” – fica surpresa enquanto olha em volta e nota um retrato antigo. Uma família inteira unida para deixar uma memória. E entre todas as pessoas viu um rosto parecido com o seu.
Uma menina negra, com um laço bem feito preso aos cabelos, os sapatos que haviam comprado para ela. Estava no seu colo segurando uma boneca de pano, feita por Claire ou Anne, já não sabia mais quem era.
“Ela se foi, não?”
“Sim, não resistiu à febre... Acho que se lembra. Fizemos o possível para cuidar dela. Até seus pais que não queriam ficar com ela em casa. Lembra quando Else disse que queria que casássemos para sermos seus pais?”
“Sim, Graham... Pode ser loucura, mas não sei como começar a lhe explicar o que se passa aqui dentro de mim. Estou confusa.”
Anne começou a explicar as últimas lembranças. Onde vivia, qual o seu nome agora. Não pintava mais, mas havia feito alguns ensaios. Disse que havia se casado e perdera o marido num acidente. Tinha um trabalho, coordenava um grupo de assistentes sociais. De alguma forma sentia que tinha que voltar. Um trabalho a terminar. E ao mesmo tempo, a memória voltando, mas para um lugar diferente. Sentindo algo por alguém que conhecera. Seus olhos começaram a se encher de lágrimas. Graham continuou a ouvir. Dois braços se abriram, e Anne se sentiu mais segura.
Outra luz forte de novo...
“Dr. Luigi, recebemos um telefonema de uma pessoa. Uma mulher. Perguntou por uma pessoa com o nome de Anne. Descreveu-a . Parece que conhece a pessoa que está em coma.”
“Ela está vindo pra cá?”
“Sim, está, doutor.”
“Vai ser bom ter alguém do lado dela para conversar. Quem sabe, ela volte do coma...”
Os olhos de Anne se abriram novamente.
“Claire, está tudo bem?”
“Graham, eu sinto que vou ter que voltar. Mas estou tão feliz por estar aqui de novo. Ver meus quadros aqui. As cartas que escrevi para você. Promete para mim que vamos nos encontrar de alguma forma. Ou que vai me esperar em algum lugar. Me mande sinais. Por favor...”
“Eu prometo. Olhe, está vendo tudo aqui? Procure se lembrar de tudo que viu aqui. Procure se lembrar do que vivemos. Vai ficar tudo bem, entende? Você vai achar algo que traga recordações daqui, está bem?”
“Sim, eu vou sentir muito a sua falta. Talvez seja por isso que sentia um vazio algumas vezes mesmo estando feliz casada. E ficou pior quando ele morreu. Mas tenho as crianças agora me esperando...”
Outro clarão...
“Dr, Luigi ! A paciente acordou, quer vê-la?”
“Sim, a mãe dela também está por perto?”
“Está lá, não vejo a hora de contar para a mãe que ela voltou. O senhor também não vai acreditar. Um bando de crianças ligaram para o hospital para saber o que aconteceu com ela. Mandaram uma carta com as assinaturas de todos, não é maravilhoso?”
“Sim, ela deve ser muito querida...”
A luz do clarão começou a se fechar lá atrás. Agora podia sentir isso vagarosamente, em silêncio. Estava sentindo paz. Olhou para frente e prosseguiu para voltar ...
“Bom dia ! Sou o Dr. Luigi. Você estava sob nossos cuidados, havia entrado em coma. Deu um bom susto num monte de crianças. Se lembra delas, Anne?”
“Sim, quanto tempo fiquei assim, doutor?”
“Dois dias, três até a madrugada de hoje... Olhe, tem uma carta aqui para você. Acho que é do local onde trabalha. Sentiram sua falta.”
“Puxa, não sabe como é bom estar de volta, e ainda mais com esse presente. Obrigada, muito obrigada.”
“Imagine. Bem, estou só esperando o resultado de mais um exame e enquanto isso vou deixar sua mãe entrar, tudo bem?”
“Sim, quero muito falar com ela. Deve estar preocupada...”
A volta para o trabalho foi revigorante. Sentia as coisas com mais sabor. Mas ainda se lembrava do que aconteceu. Queria falar com alguém, mas achava que iam chamá-la de lunática.
Junto com as crianças terminaram os preparativos para os enfeites de Natal. Os ensaios do coral continuavam. Algumas mães como sempre vinham ao seu encontro para saber de seus filhos e aproveitavam para perguntar se estava bem.
Chegou em casa cansada. Ainda tinha que abrir as cartas, ler alguns relatórios. A campainha tocou. Ficou imaginando quem devia ser àquela hora. Ninguém havia ligado durante o dia.
Era Dr. Luigi. Estava com um olhar meio sem graça. Desta vez sem a roupa branca, apenas uma camisa pólo e calças jeans.
“Boa noite, Anne. Será que poderia falar com você um minuto?”
“Bem, agora que você está com roupas normais, acho que não vai ser pra dizer que amanhã vai ser meu último dia de vida, não?” – Risos... – “Por favor, entre...”
“Quer um café, água, suco, desculpe, ... nem sei o que dizer.”
“Bem, eu também. Mas o que me trouxe aqui foi algo que me deixou curioso.”
“Curioso?”
“Sim. No final de semana passado fui visitar meus pais e eles me disseram que o padrinho do meu pai estava nos esperando para jantar . É médico como meu pai e eu. Pela primeira vez, senti que ele queria dizer algo, e tive o prazer de conhecer seu ateliê, assim como sua biblioteca. Parece que ele projetou todo o local com cuidado pensando em cada coisinha que iria colocar lá, sabe. E então eu vi uma foto antiga de uma família inteira reunida. Você vai achar estranho, mas havia uma moça na foto. Parece muito com você. Até o jeito de olhar. Perguntei a ele de onde era a foto. Ele disse que era uma recordação do pai. Pediu que guardasse com muito carinho pois ele confessou ao filho que fora apaixonado por ela. O pai não era daqui. Era inglês. Fiquei fascinado com o que me contou. Eram muito amigos pelo jeito.”
“E...”
“Eu lhe falei que havia uma pessoa no hospital alguns dias atrás que se parecia com ela. Os olhos dele brilharam. Parecia que ele tinha algo mais para dizer. Perguntou se podia levar você lá. Insistiu muito. Até meus pais ficaram curiosos...”
“Ele disse o nome da pessoa para você?”
“Não, porque ele me fez prometer que conseguiria te convencer a ir lá. Você aceita?”
“Bom, tenho o seu nome, o hospital onde trabalha, e mais informações suas. Creio que não vou ter que sair correndo de perto do seu carro também.” – Risos.
“Amanhã é domingo e não tenho plantão. Pode ser pela manhã bem cedo? São duas horas até lá.”
“Tudo bem. Posso ir. Também estou curiosa.”
O espelho refletia a imagem de uma mulher com os cabelos castanhos escuros e longos. As crianças diziam que ela ficava melhor com eles soltos, e quando podiam brincavam lhe fazendo penteados. Anne sorria com a pureza delas. Sua pele estava um pouco pálida, em contraste com os cílios escuros e compridos. As pontas das madeixas eram escovadas, mas deixavam evidentes que ficavam mais bonitos quando o sol batia e o vento podia brincar com elas. Bem, era hora de passar um batom. Afinal de contas estava indo para um lugar um tanto quanto diferente. E se sentia meio insegura, não sabia porquê.
Dr Luigi, ou melhor, Luigi, como ele havia pedido para lhe chamar, chegou pontualmente.
O trajeto para a cidade onde iam era calmo. Ou então a atmosfera havia se transformado em tudo mais sereno desde que voltara a si. Conversaram sobre várias coisas desde a infância até quando se formaram, e mais tarde o trabalho, o dia a dia. Pela forma como contava sua vida parecia gostar muito do que fazia.
Luigi contou que não faltava muito para chegar. De repente ficou em silêncio. Anne respeitou , mas num momento perguntou porque estava quieto, pensante.
“Eu cuidei de uma criança como você também. Ela foi atropelada tentando fugir da casa dos pais que queriam adotá-la. Não podia ficar com ela a menos que forjasse um casamento mas mesmo assim levaria um tempo.”
“Eu sinto muito...” – Luigi baixou os olhos, respirou fundo, depois olhou para Anne e sorriu.
Um senhor que estava sentado numa cadeira de balanço levantou-se quando viu o carro chegar. Daquela distância podia ver que era alto e magro. Caminhava em passos lentos, e estava observando-os de longe.
“Luigi, meu filho... Acordei bem cedo e fiquei aqui um tempo na varanda pensando na vida.”
“Anne, este é o Sr. Edwards.”
“Oh, por favor, me chame de Richard. Passei muitos anos com os ouvidos cheios de tanto me chamarem pelo meu último nome. Deviam achar charmoso como a minha pessoa é claro.” – Sorriram com a brincadeira.
“Luigi, você tem razão. Essa linda moça parece muito com a pessoa da foto. Estou muito surpreso. Venham comigo, Luigi já conhece a casa e outras coisas, mas Anne ainda não se aventurou a ouvir um velho cheio de estórias.”
Passaram por uma sala ampla, e entraram num corredor que dava caminho até um lance de escadas. Enquanto subiam não acreditou no que viu. Alguns dos quadros que pintara como Claire. Quase tropeçou.
“Está tudo bem, Anne?”
“Sim, Sr. Richard, estou bem, devia ter colocado sapatos mais confortáveis...”
Entraram numa biblioteca. Havia livros para ler por gerações. Ficou encantada com aquilo. Perguntou se podia dar uma olhada. Notou um livro antigo com coletânea de poesias e estava com uma página marcada. No verso da capa as letras que conhecia com uma dedicatória:
“For you, Claire,
With all my love.
Graham Patrick Edwards.”
“Anne, por que está chorando?” – Luigi perguntou.
“Eu conheço este livro, Luigi, eu reconheci os quadros, aquela mesa de estudos ali, o jardim quando chegamos. Estou muito emocionada. Nem eu mesma entendo porque tudo isso...”
“Sr. Richard, e a foto que mencionaram? Ela pediu que deixasse no ateliê, não é isso? Os outros quadros ainda estão lá?”
“Sim, Anne. Vamos lá.”
Quando chegaram ao aposento seu coração parecia explodir de encantamento e saudade. Como pode o tempo ter passado e deixado as coisas de forma tão parecidas ainda... De longe viu a foto no mesmo porta retratos de madeira trabalhada. Era maravilhoso poder ver Else de novo em seu colo.
“O nome dela era Else, Luigi. Queríamos ficar com ela, mas ela adoeceu e morreu.”
“Else? Era o mesmo nome da menina que cuidei. Céus, isso é inacreditável !”
“Bem, bem... Anne, agora que vi tudo isso e confirmei o que queria, permita-me entregar uma carta que lhe fora deixada. Meu pai também deixou uma para mim, me explicou mais coisas, porque nem eu conseguia entender seu coração às vezes. Mas eu e ele éramos muito companheiros. Aqui está. Espero que entenda inglês. Ele passou os últimos anos de sua vida aqui no Brasil. Assim como ele eu nasci na Inglaterra, entende? Acabei me apaixonando por este lugar como ele.”
“Posso ir até a biblioteca para ler?”. Pediu licença e foi até lá. Abriu o envelope envelhecido. Retirou a carta e começou a leitura.
“Querida Claire,
Já se passaram anos. Mas devo confessar que ainda fico no portão divagando se poderia notar uma figura feminina aparecendo de repente para me alegrar. Não posso reclamar da minha vida. Estou tendo tudo que sonhei, ajudando meus pais e as crianças carentes que sonhávamos um dia. Isso me conforta muito.
Mas sou um homem. Devo confessar que não consegui ficar sozinho te esperando, mesmo sabendo que você me fez prometer que não faria isso. Casei-me com Elizabeth, se lembra? Nosso filho é lindo. Tem me dado muitas alegrias. Também adora poesias como você. Vou deixar toda minha biblioteca para ele. Tenho sorte de Elizabeth não ficar me fazendo questionários sobre os quadros e quando fico sozinho, pensando em tudo que aconteceu.
Claire, já não sou nenhum mocinho mais. Perdão se minhas letras estão um pouco trêmulas, mas já havia escrito muitas cartas antes e as joguei. Essa eu prometo que vou fazer chegar até você. Vou Pedir a Richard que te procure. Algo me diz que ele vai te achar. Mesmo que leve algum tempo.
Eu consegui junto com amigos, levantar fundos para um asilo de crianças abandonadas. Todas as vezes que elas sorriem é como se você estivesse lá. A comunidade tem sido muito solidária. Saímos até no jornal, acredita?
Onde quer que você esteja, eu desejo que esteja muito feliz, mas também confesso que ainda tenho esperança de poder nos encontrarmos em algum lugar, um dia talvez.
Existem coisas na vida que nos marcam muito e nos deixam fortes lembranças. Você é uma delas. Ainda está bem viva aqui dentro.
Bem, lembra-se do último pedido que lhe fiz, dizendo que olhasse tudo à sua volta e procurasse memorizar? Talvez quando ler esta carta muitas coisas possam te surpreender.
Todo meu amor,
Graham”
Ficou um tempo em silêncio olhando tudo em sua volta. Ele tinha toda razão. Queria poder ficar mais ali. Era como se estivesse de volta ao mesmo lugar.
Tomou coragem e voltou para o ateliê.
“Sr. Richard, Luigi, queria muito agradecer por tudo isso. Eu não sei explicar o que estou sentindo e nem porque de todos esses acontecimentos nessas últimas semanas. Eu acho somente que ambos tinham um amor muito grande pela vida e se amaram muito. Perdão, pois ela não era sua mãe, mas pela forma como seu pai colocou, você sabia de muitas coisas e o entendia.”
“Sim, Anne. Estou muito feliz por ter ajudado meu pai, mesmo agora quando ele não está aqui. Prometa que virá visitar esse velho chato novamente e me alegrar com sua presença. Luigi vai ficar muito feliz em poder ajudar também, tenho certeza.”
“Ficarei mesmo, eu devo dizer que é como se estivesse lendo um livro de ficção e vivendo de forma real.”
Tomaram lanche juntos, caminharam pelos jardins, riram das piadas de Richard. Como ele tinha senso de humor...
Quando chegou a hora de se despedirem, abraçaram-se chorando.
“Eu já ia te pedir para poder voltar aqui de novo, Sr. Richard. Vou tentar desenhar algo, quem sabe eu mesma fique surpresa se lembrar de mais alguma coisa...”
“Se cuidem, garotos. As estradas já não são mais como antigamente, quanto menos os motoristas.”
Durante o trajeto de volta, Anne virou-se para Luigi com algo que se lembrou:
“Como era essa menina que você queria adotar?”
“Anne, acho que é melhor respirarmos mais um pouco porque nem eu estou acreditando nas coincidências...”
“Também notou algo familiar?”
“Desde que você apareceu e vi sua foto. Mas vamos nos poupar de tanta emoção por enquanto. Sou jovem ainda, mas sou humano. Preciso refletir, e você vai me ajudar. Quem sabe pode nos dar opiniões sobre o que fazer neste Natal para as crianças com câncer. Tenho certeza que temos muita coisa pra trocar ainda. Isso se você permitir é claro, e não sair correndo de medo de mim.”
Ambos sorriram e olharam para o horizonte... A vida é cheia de surpresas. O que dizer do amor então...
Nunca iria se esquecer desse Natal....
Yoshie
Dec08th,2003 – 8:58pm
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