Jean Hamburger, no seu livro “Uma Trajetória Poética do Cotidiano” escreve sobre qual seria o “sentido da estranha história de um ser (o homem) que nasce sem o ter solicitado, experimenta prazeres e desgostos, sucessos e reveses, felicidades e infelicidades, continua apesar de tudo, dominado pela sede de viver e, não obstante e em todos os casos, se depara com a morte no final do caminho”.
Realmente, dia após dia, agimos como se fôssemos viver para sempre. É o que estão fazendo hoje Valdemir Weber, José Manso, Marilene Faria, Manoel Bessa e Carlos Alberto Souza (como todos os outros moradores de São Paulo). O que eles não sabem é que hoje viverão suas últimas horas de vida. São eles que vão confirmar as estatísticas de morte acidental em São Paulo: cinco por dia.
Valdemir levantou cedo para levar sua filha à escola. Soubesse ele que iria morrer, teria ficado o restante de seu tempo curtindo a sua filha. Mas, será que sabendo disso, poderia ele curtir alguma coisa?
José Manso tomou o seu café apressadamente e foi trabalhar. O duro serviço da construção de um prédio o aguardava. Ganhava pouco, mas conseguia economizar metade para a compra de uma pequena casa. Soubesse ele que iria morrer, estaria economizando alguma coisa?
Marilene adorava roupas. Tanto que decidira, e conseguira, trabalhar numa butique. Fazia o maior sacrifício para não gastar todo o seu salário com sua manutenção. Afinal, queria ela, um dia, montar a sua própria loja. Soubesse ela que iria morrer, teria feito tanto sacrifício?
Manoel é empresário. Trabalha muito. Ganha muito dinheiro. Gasta muito pouco. Sempre quer mais. Espera poder fazer longas viagens no futuro, seu maior sonho. Soubesse ele que iria morrer, esperaria tanto para realizar o seu sonho?
Carlos Alberto pegou a sua moto e foi iniciar a tarefa de entrega de jornais. O serviço era cansativo. Todos os dias tinha que levantar muito cedo. Soubesse ele que iria morrer, teria levantado tão cedo?
Mas, as estatísticas exigiam sua cota diária. E Valdemir, José Manso, Marilene, Manoel e Carlos Alberto, como simples peças de um jogo, sendo eles próprios os jogadores, escalados por eles mesmos, com as circunstâncias também criadas por eles e pelas demais peças desse imenso jogo da vida, atenderam à exigência. Obedeceram.
Amanhã, serão outros cinco, ou quatro, ou seis, a cumprir a estatística. Mas enquanto isso, e ainda bem, agimos como se nada fosse acontecer conosco. A estatística só se aplica aos outros.