Fique a vontade, doutor,
e sente-se nessa lata;
pode ser que uma barata
o um camundongo incomode.
Cada um faz o que pode,
eu bato com alpargata.
Mesmo que seja polémico
saiba que não tem problema;
pra novela tenho tema
e também para pesquisa,
para piada tenho risa
e lirismo pra poema.
Acredito que é verdade
que, além de tudo, sou louco.
Há um par de dias por pouco
quase me apaga a polícia
pois já não tenho malícia
nem esperteza tampouco.
Eu já fui trabalhador,
funcionário de gravata,
participei de passeata
no planalto de Brasília,
já tive mulher e filha
dois cachorros e uma gata.
A minha felicidade
(por falar dessa maneira)
era tranquila e ordeira,
e não tinha sobressalto.
Nunca cuspia pro alto
nem plantava bananeira.
Até que um dia, cansado
talvez de tanta rotina,
conheci aquela menina
e por ela me apaixono;
vou sonhando e me abandono
planejando na surdina.
Na saida do serviço
passeávamos lado a lado,
meu coração apertado
sem saber suas emoções.
Ela fazia confissões,
eu ia ficando assustado.
Falávamos com metáforas,
evitando-se o melhor.
Imagine isso, doutor,
com uma mulher tão bela.
Navegava numa estrela
me consumindo de amor.
Que estava com muito estresse
na minha casa dizia
e minha esposa queria
consultar psicanalista.
Nunca soltava uma pista
do mal que me acometia.
No entanto, fui planejando
que minha filha e mulher
deviam comparecer
ao batismo dum sobrinho.
Eu, daqui, mando um carinho
e um presente, pode crer.
Fico assim, na sexta-feira,
da família liberado
e, na casa, encarregado
de cuidar gato e cachorro.
Pra minha amada logo corro
com um jantar programado.
Com a música romántica
e as mais románticas velas
vou matutando as seqüelas
da comida e do licor.
Faço a cama com amor
que é para ver as estrelas.
Quando espero a campainha
é o telefone que toca.
Será um trote que provoca
o um número equivocado?
Mas é dela esse chamado
que minha mente alborota.
Me parecia nervosa.
"Onde você está?", "Na esquina",
"Mas venha logo, menina!",
"É que estou acompanhada",
"Como disse?", "Não, não é nada",
treme sua voz muito fina.
"Me diga qual é o problema".
E ela foi logo contando
que com seu noivo, Fernando,
do qual eu nada sabia
aí perto estava e queria
vir com ele logo andando.
Imagine, seu doutor:
o noivo foi despejado
de certo quarto alugado
e queriam dormir em casa.
Tanto esse fato me arrasa
que fico meio atordoado.
Baixando a vista, abri a porta,
fui dizendo: "A casa é sua,
pela janela entra a lua
que ilumine seus amores.
Podem ficar com as flores".
E me larguei para a rua.
E nunca mais dormi em cama,
nunca comi boia quente
nem tive papo com gente
que não fosse indispensável.
Mas o doutor foi amável
com este pobre indigente.