Marcos Mairton
OS DOIS SOLDADOS
Foi William Shakespeare
Quem escreveu certo dia
Que existem mais mistérios
Entre o céu e a pradaria
Do que possa explicar
Ou ao menos suspeitar
Nossa vã filosofia.
Citei esse pensamento
Em outro cordel que fiz,
Quando adaptei um conto
De Machado de Assis,
E o caso que eu vou contar
Vem de novo confirmar
Essa frase que se diz.
Ocorreu que numa tarde
De um domingo ensolarado,
Fui a um grande hospital
Onde estava internado
Um velho amigo meu
Que um acidente sofreu
E ali foi operado.
Da sua bonita moto
O rapaz tinha caído.
Ficou todo arranhado,
Bem machucado e ferido,
Quase que não escapava
Mas já se recuperava
Do acidente sofrido.
Quando entrei na enfermaria
Percebi que ao seu lado
Havia uma outra cama
E nela um homem deitado.
Chamou minha atenção
Ver que aquele cidadão
Estava todo enfaixado.
Prossegui com a visita,
Fiquei ali conversando,
A história do acidente
Meu amigo foi contando.
Enquanto ele conversava,
O seu vizinho ficava
Sempre nos observando.
Percebendo que o homem
Queria participar
Da conversa, resolvi
Também com ele falar.
Perguntei: “E tu, amigo?
O que aconteceu contigo?
Como foi se machucar?”
Apesar dos ferimentos
Ele logo respondeu
E me disse: “Eu lhe conto
O que me aconteceu.
Só que, antes, fale sério,
Se acredita em mistério,
Se é crente ou se é ateu”.
Respondi: “Me considero
Como espiritualista.
Não sigo religião
Mas não sou materialista.
Respeito, de coração,
O mulçumano, O cristão,
O hindu e o budista”.
Ele disse: “Então eu conto,
Mas preste muita atenção,
Pois o que me aconteceu,
Me causa admiração.
Depois que eu lhe falar,
Se tiver como explicar
Me dê a explicação”.
Há alguns anos atrás,
Tive um sonho interessante,
Que parecia real,
Uma coisa impressionante.
Por uma questão de terra,
Eu estava em uma guerra
Era um soldado, um infante.
Eu não sei qual era o ano,
Nem sei qual era o lugar,
Mas a arma que se usava
Era dessas de socar.
A cada tiro que eu dava
Outra vez recarregava
E tornava a atirar.
Nessa batalha sangrenta
Bala vinha e bala ia.
Do lado que eu estava
Toda hora alguém caía.
O inimigo era forte,
Ali nos rondava a morte,
Mas a ela eu não temia.
Depois de horas de luta,
Vi que nossa munição
Já estava acabando.
E aquela situação
Ficaria complicada
Se não fosse encontrada
Logo alguma solução.
Lembro que, bem nessa hora,
Chegou o meu capitão,
E disse: “Venha comigo
Pra buscar mais munição.
Mas, nós temos que correr
Ou então vamos perder
Todo nosso pelotão”.
Pegamos uma carroça,
Ele, eu e outros dois,
Que estavam na trincheira
E ele chamou depois.
E saímos na carreira
Descendo uma ladeira
Entre campos de arroz.
Chegamos numa cabana
Onde estava a munição,
Mas, perto dela, caíam
Muitas balas de canhão
Mesmo assim, fui logo entrando
E a munição procurando,
Pra levar pro capitão.
Mas, já na primeira vez
Que entrei naquele local
Um dos tiros atingiu
A coluna principal.
O telhado desabou
Por pouco não me causou
Um ferimento fatal.
Fiquei preso na cabana
Sentindo muito receio
Que outro tiro atingisse
A construção pelo meio.
Vendo que a minha vida
Poderia ser perdida
No terrível bombardeio.
Nessa hora o capitão
Apressou-se em me salvar
E, saltando da carroça,
Veio para me ajudar.
Afastando os escombros
Arrastou-me pelos ombros
Dali para outro lugar.
Só que, enquanto ele lutava
Pra me ajudar a sair,
O inimigo prosseguia
Querendo nos destruir,
E as bombas que caíam
A qualquer momento iriam
Fazer tudo explodir.
E de fato, explodiu,
Mas eu já tinha saído.
Aí vi que o capitão
Estava muito ferido.
Pois um grande estilhaço
De ferro ou mesmo de aço
Havia lhe atingido.
Consegui sobreviver,
Por causa daquele amigo,
Que, tentando me salvar,
Expôs-se muito ao perigo,
E sofreu um ferimento
Que causou um sangramento
Na altura do umbigo.
A partir desse momento,
Era eu que o socorria.
Carregando-o em meus ombros
Para bem longe eu corria,
Mas, sem ter para onde ir,
Não pude mais prosseguir,
Nem andar eu conseguia.
Foi só aí que eu vi
Que os outros dois soldados,
Que para aquela missão
Comigo foram chamados,
Também nos acompanhavam
E, como eu, lá estavam
Feridos e assustados.
Ficamos todos ali,
Eles, eu e o capitão.
Escondidos, esperando
Melhorar a situação.
Mas o capitão sangrava,
Bem depressa piorava
Ali, deitado no chão.
Foi então que eu lhe falei:
“Capitão, muito obrigado,
O que o senhor fez por mim
Me deixou impressionado,
Arriscando a sua vida
Desta forma destemida
Pela vida de um soldado”.
Nessa hora ele me disse:
“Sei que logo irei morrer,
Mas, antes de eu partir,
Tenho algo a lhe dizer:
Quando eu me arrisquei,
Fiz apenas o que achei
Que eu tinha que fazer.
Não fiz para ser herói
Nem pra ser condecorado,
Mas, se há algo do que eu sei,
Que pode ser ensinado,
Eu digo e sei que acerto:
Faça sempre o que achar certo
Por mais que seja arriscado”.
Ele disse aquela frase
E ali mesmo morreu.
Uma grande emoção
Sobre mim se abateu.
Então acordei chorando,
Minha mulher perguntando
O que foi que aconteceu.
Foi um sonho tão real
Que custei a acreditar
Que havia apenas sonhado
E acabava de acordar.
Minha cabeça zunia,
Levei quase todo o dia
Para me recuperar.
Mas, depois, passou o tempo,
E eu acabei me esquecendo
Daquele sonho que um dia
Me fez acordar tremendo,
Como também da lição
Que me deu o capitão
Quando estava ali, morrendo.
Você deve estar pensando:
“O que isto tem a ver
Com as suas queimaduras
Que ora lhe fazem sofrer?”
Espere que eu lhe conto
E é bom que esteja pronto
Para o que vou lhe dizer.
Aconteceu que um dia,
Eu estava retornando
Para casa com meu filho,
Mas, quando fomos chegando,
Percebi que a residência
Da vizinha, dona Hortênsia,
Estava incendiando.
Ela veio lá de dentro
Chorando desesperada.
Gritando: “A minha filha,
Vai morrer toda queimada!
Não tive como salvá-la
Pois não pude carregá-la
Quando caiu desmaiada.”
Ao ouvir essas palavras
Pensei logo em entrar
Naquela casa em chamas
E assim poder salvar
A filha de Dona Hortênsia,
Mas, apesar da urgência,
Tive tempo de pensar:
“E se eu morrer lá dentro,
Sem nada poder fazer
Pra salvar essa criança
Que eu tento socorrer?
Se eu morro nessa hora,
Meu filho fica aqui fora
Vendo tudo acontecer.”
Olhei para o meu filho,
Que estava ali, do meu lado,
E ele, como se notasse
Que eu havia hesitado,
Disse pra mim, bem de perto:
“Faça sempre o que acha certo
Por mais que seja arriscado”.
Quando ouvi aquela frase,
Eu não pensei mais em nada.
Em direção ao incêndio
Saí logo em disparada
Pouco depois eu voltava,
E em meus braços carregava
A menina desmaiada.
Depois que saí da casa,
Em seguida desmaiei
E aqui neste hospital
No outro dia acordei.
Pelo ato de bravura
Tive tanta queimadura
Que eu quase me acabei.
Mas, eu lembro que na hora
Que na casa fui entrando,
Era como se estivesse
Naquela guerra lutando,
E a voz do meu comandante
Em repetição constante
Na minha mente ecoando.
Agora, você me diga
Como pôde acontecer
De a frase do meu sonho
Meu filho também saber?
E também de ele ter dito,
Naquele momento aflito,
O que veio a me dizer?
Pois, tendo ele dez anos,
Eu não podia esperar
Atitude como aquela,
De o pai incentivar,
A seguir a consciência
Mesmo que a sobrevivência
Tivesse que arriscar.
Ao ouvir aquela história
Fiquei muito impressionado.
Será mesmo que vivemos
Outras vidas no passado?
Que pai e filho lutaram
Numa guerra e enfrentaram
O inimigo lado a lado?
Ou será que, na verdade,
Foi apenas impressão,
Que o pai teve na hora
De toda aquela aflição,
E pensou ter escutado
O que estava guardado
Em seu próprio coração?
Mas, é possível também,
Ter ocorrido o seguinte:
O próprio pai ter narrado,
Umas dez vezes, ou vinte,
Aquele sonho, e então,
Em alguma ocasião
O filho ter sido ouvinte.
Ponderei sobre essas coisas
Com interesse real,
Mas, o tempo passou logo,
E, em verdade, no final,
Nada e nada concluímos.
Depois nós nos despedimos
E me fui do hospital.
O meu amigo ficou
Alguns dias internado,
Mas logo voltou pra casa,
E hoje está recuperado.
Muito tempo se passou
E aquele dia ficou
Esquecido no passado.
Até que, esta semana,
Eu estava almoçando
Em um shopping da cidade,
Muito distraído, quando
Ouvi uma voz falar:
“Veja, só neste lugar,
Quem eu estou encontrando”.
Eu sequer reconheci
Quem falava ali comigo,
Mas o homem se portava
Como fosse meu amigo,
Disse: “Que satisfação,
Tenho nesta ocasião
De encontrar aqui contigo!”
Foi aí que percebeu
Que eu não o reconhecia,
Então disse: “Me desculpe,
Como você poderia
Saber hoje quem sou eu
Se quando me conheceu
Não viu a fisionomia?”
“Eu sou aquele sujeito
Que estava todo queimado
No dia em que seu amigo
Estava hospitalizado.
Você foi lhe visitar
E eu peguei a lhe contar
Como fui acidentado.”
“Olhe só as cicatrizes
Que para sempre ficaram
Nos meus braços e orelhas
Que no incêndio se queimaram.
Mas, entendo se você
Não lembrar, mesmo por que
Muitos anos se passaram.”
Mas, quando ele falou isso,
Lembrei-me daquele dia.
Então o cumprimentei,
Perguntei se ele queria
Almoçar em minha mesa.
Teríamos, com certeza,
Assuntos a por em dia.
E, de fato, havia mesmo
Muito para conversar.
Ele falou de sua luta
Para se recuperar
Até deixar o hospital,
Voltar à vida normal
No trabalho e no seu lar.
Naquela oportunidade,
Outra vez nós comentamos
Sobre a história do seu sonho
Da qual um dia falamos,
Quando nós nos conhecemos
No hospital onde estivemos.
Tudo isso nós lembramos.
No meio dessa conversa
Aproximou-se um rapaz
De uns dezessete anos,
Talvez menos, talvez mais,
Que lhe disse, sorridente:
“Papai, cheguei finalmente,
Lhe fiz esperar demais?”
Ele, então, disse: “Meu filho,
Nem vi o tempo passar,
Pois encontrei este amigo
E estive a conversar,
Eu há tempos não o via
Mas, agora gostaria
De a você apresentar”.
“O conheci no hospital,
Quando estive internado
Por causa daquele incêndio,
Ocorrido no passado,
Quando ajudei a vizinha,
Socorri a menininha,
Mas saí todo queimado.”
Depois, olhou para mim,
E foi me esclarecendo:
“Esse aí é o meu filho,
Que eu estava lhe dizendo,
Cuja bela atitude
Demonstrou grande virtude,
Muito me surpreendendo”.
“Com seus dez anos de idade
Mostrou não ter egoísmo.
Arriscou ficar sem pai,
Num exemplo de altruísmo.
Ao me ver titubear,
Inspirou-me a praticar
Ato de grande heroísmo”.
Ouvindo-o falar assim,
O filho o interrompeu,
Dizendo: “Papai, espere,
O senhor não entendeu
Que naquele triste dia
Que o senhor quase morria,
Quem lhe inspirou não fui eu.”
O homem ficou surpreso.
Disse: “Filho, não entendo
É o que estás agora
Nesse instante me dizendo.
Ao ouvir você falar
Foi que resolvi entrar
Na casa que estava ardendo”.
O filho disse: “Eu sei disso,
Mas eu nunca lhe falei,
Que aquilo que eu disse,
Não fui eu que inventei.
Eu apenas repeti
Uma frase que ouvi
Em um sonho que sonhei”.
Na noite antes do incêndio
Eu sonhei que era um soldado
Que lutava em uma guerra
E, em meio ao fogo cruzado,
Fui buscar mais munição
Dentro de um velho galpão
Que havia ali do lado.
Eu e mais dois companheiros
Fomos naquela missão
De entrar no armazém
Por ordem do capitão
Que ficou nos esperando
Na carroça aguardando
Com uma arma na mão.
Naquele mesmo instante
O soldado mais valente
Mostrou todo seu valor
E partiu logo na frente
Entrou armazém adentro
Mas, quando estava lá dentro,
Mudou tudo, de repente.
O telhado desabou
Depois de ser atingido
Por um tiro de canhão,
Fazendo grande estampido,
E o valente soldado
Ficou lá, encurralado,
Provavelmente ferido.
Nessa hora o capitão
Correu para lhe salvar
E do meio dos escombros
Conseguiu lhe retirar
Mas quando ele saiu
Tudo aquilo explodiu
Em pedaços pelo ar.
Saímos dali correndo,
Buscando nos proteger
Mas, sem saber pra que lado
Deveríamos correr.
Então nos refugiamos
Numa vala que encontramos
Tentando sobreviver.
Percebi que o capitão
Foi ferido gravemente
E agonizava nos braços
Do soldado mais valente
Só que, antes de morrer,
Teve tempo de dizer,
Uma mensagem pra gente.
Dizia-lhe o capitão:
“Sei que logo irei morrer,
Mas, antes de eu partir,
Tenho algo a lhe dizer:
Quando eu me arrisquei,
Fiz apenas o que achei
Que eu tinha que fazer.
Não fiz para ser herói
Nem pra ser condecorado,
Mas, se algo do que eu sei,
Merece ser ensinado,
Lhe digo e sei que acerto:
Faça sempre o que achar certo
Por mais que seja arriscado”.
Foi isso o que sonhei
Na noite que antecedeu
O incêndio que vizinho
À nossa casa ocorreu.
Eu era muito criança
Mas tenho viva a lembrança
De tudo que aconteceu.
A frase que eu falei
Não foi de caso pensado.
Eu apenas repeti,
O que tinha escutado
Naquele momento incerto:
Faça sempre o que achar certo
Por mais que seja arriscado”.
Quando o rapaz acabou
Toda aquela narração,
Percebi que o pai chorava
Tomado pela emoção.
Fui um privilegiado
Por eu ter presenciado
Aquela situação.
Pai e filho se abraçaram
Como dois grandes amigos
Que já caminhavam juntos,
Desde tempos muito antigos.
Caminhando lado a lado,
Tendo juntos enfrentado
Aventuras e perigos.
Se vivemos muitas vidas,
Se há reencarnação,
Eu não nego, nem afirmo,
Não digo que sim, nem não,
Mas, eu bem que gostaria
De haver sonhado, um dia,
Que eu era o outro soldado
Que estava ali por perto
E fazer o que acho certo
Por mais que fosse arriscado.
MARCOS MAIRTON da Silva, nascido em Fortaleza, capital do Estado do Ceará, no dia 17 de agosto de 1966, é autor de dezenas de contos e crônicas, além de transitar pela Literatura de Cordel e composição de canções.
É membro fundador da Academia Quixadaense de Letras - AQL, onde ocupa a cadeira de número 17.
Sua formação acadêmica é em Direito, sendo Bacharel pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR, mestre em Direito Público pela Universidade Federal do Ceará - UFC, e MBA em Gestão do Poder Judiciário, pela Fundação Getúlio Vargas - FGV. Juiz Federal desde abril de 2001, antes foi Advogado, Procurador do Banco Central e Advogado da União.
|