O que acorda os meus vizinhos
Não é o BUUUM do trovão.
O fragor da tempestade
Não os arranca de seus ninhos
Nem lhes cerra o coração,
E nem lhes muda a vontade.
O que os assusta e invade
Não são os gritos da rua,
O escândalo desvairado
Que amedronta a cidade,
Entorpecendo-a nua,
Sob o berro apavorado,
Pelas ruas e avenidas,
Das sirenas da polícia.
Nem é o grito calado
De almas demais constrangidas
Que, temendo ser notícia,
Vira um uivo congelado,
Vergonhoso, vil, culpado.
O que excita essa calhorda,
E que os expulsa dos leitos,
Num mutismo depravado
Que toda essa rua acorda,
É a turba de preconceitos
Que a visão de um par de peitos,
Numa espreitada janela,
Atiça, inflama e humilha.
A sanha desses despeitos
Assim que perde a cautela,
Rosna feito uma matilha
Na qual o ódio fervilha
Como vermes ancestrais,
Auto-gerados no medo,
Sem dó de mãe ou de filha,
E instila nesses boçais
O veneno mais azedo,
Gerando um letal enredo
Que se desfaz em inveja.
A dupla penetração,
Que é dura como um rochedo,
Faz com que essa insana peja
Desça pela contra-mão
E atropele a Razão
No seu instante mais belo.
O que acorda os meus vizinhos
É uma cega tradição,
Que bate um cego martelo
E enfia os seus ferrinhos,
Cravos em forma de anjinhos,
E que adentram, dolorosos,
Em cada jardim sensível
Que se encontre nos caminhos.
E aos poucos vão, gangrenosos,
Tecer o manto invisível
Da dor mais muda e terrível,
Dor pendular e que medra
Feito a erva mais daninha,
Torna o meu grito inaudível
E, como um dedo de pedra,
Vai me abrindo, inteirinha...