Perdida em meio à confusão do ambiente, dirigiu-se ao guarda, um crioulo lustroso metido numa farda cáqui bem passada.
-Seu guarda, o caso é que meu velho morreu e eu vim receber os meus direitos porque na 6a feira... - Na fila, apontou com o dedo. - Tem que entrar na fila...
A fila, se é que se podia chamar aquilo de fila, era qualquer coisa assim como uma procissão. Mas, valia a pena, pensou. Afinal direito é direito, e o falecido disse que eu tenho direito. E a tal fila, serpenteando aqui e ali, com buchinchos e alguns protestos sempre contornados pelo eficiente guardião, chegou ao fim. Quer dizer, prá ela...
-Sabe, "dotó", o caso é que meu velho morreu e eu quero receber meus direitos porque na 6a feira... - Já sei, dona. Tá querendo a pensão. E vai levar porque aqui direito é sagrado. A Previdência é da senhora mesmo. Não é favor nenhum. Cadê os papeis? Só preciso dos papeis e mais nada.
- Tá tudo aqui "dotó". Pode olhar. A velha tava esperançosa... E abriu a bolsa marron névoa soltando uma papelada de fazer inveja aos mais eficientes funcionários da Caixa Económica Federal, principalmente os do financiamento de casas... E tome certidões, títulos, registros, atestados de vacina, bons antecedentes, etc.
Olhando de lado, um tanto cansado e doido prá cair fora, resmungou o funcionário , o tal "dotó, - Tá faltando documento dona. E tá faltando justo o mais importante. A certidão de casamento.
- Pois é "dotó", preto no branco mesmo a gente num tinha... Mas tem escrito ai que o padre casou a gente, e tem também que todo mundo conhece a gente lá no morro e todo mundo sabe que o casamento foi feito sim senhor, e tudo muito direito. Teve até festa. Se precisar de testemunha é só falar que eu busco de montão...
- É dona, pode até ter dito forró, mas sem certidão num leva. Tá pensando o que? Lei é lei.
Desolada, afastou-se sem saber como agir.
- Olha, dona, eu tenho muita experiência dessas coisas. Atalhou um curioso de lado. - Isso é má vontade. O Beltrão já disse que é só falar que todo mundo tem de acreditar. Procura o chefão lá em cima que ele vai resolver seu caso. Tá escrito ali, ó... E apontou com o dedo para um cartaz pregado na parede que indicava a quem recorrer em casos de reclamação.
- Será?!
- Claro pó, se a senhora tá dizendo que era casada, o cara tem de acreditar. É lei.
E lá se foi novamente a buscar socorro junto ao guarda lustroso. - Desculpe seu guarda... É que eu quero falar com o chefão ali do papel porque... - Lá em cima. Interrompeu o guarda apontando com o dedão. É só subir no elevador.
Pensou um pouco e escolheu a escada.
Chegou, já de moral um pouco elevada. Tinha lei prá seus direitos, e, puxa vida, como é bom morar num país onde se cumpre a lei...
Entrou. O chefe tava estudando... Largou o jornal, virou-se prá velhinha:
-Qual é o problema?
- Sabe "sua excelencia"é que meu velho morreu e eu quero receber meus direitos porque na reunião de 6a feira ele disse que meus direitos são sagrados e que ele trabalhou a vida inteira e vai daí que sem certidão não querem me pagar, e seu Pedrão disse que é só falar com o senhor que... _ Pode parar, dona. Conseguiu interromper o tal chefão. - Deixa de besteira que aqui num tem nenhum Pedrão, tem é Beltrão e eu estou com ele porque comigo num tem burocracia não. Se a senhora tá dizendo eu acredito.
- Pois é. Eu sabia que "sua excelência "ia acreditar em mim... - Na senhora só, não , dona, acredito em todo mundo. Mas só tem uma coisa. Como é que o falecido disse prá senhora. Ele num tá morto?
- Tá. Quer dizer, tá mas num tá...
- Como, tá mas num tá?
- Bem, é que ele baixou na reunião de 6a feira lá no Centro do Caboclo PapaTudo e disse prá mim que ninguém morre de verdade e que ele estava vivo e que era prá eu procurar o INPS, porque...
- Ah! Ai é que está... Num tem direito e nem pensão...
- Como num tem?
- Acontece que pensão é só prá viúva. Se o marido da senhora disse que está vivo, eu tenho que acreditar nele. É lei. E se ele está vivo não tem viúva, e sem viúva não tem pensão...