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Cronicas-->MEU CARO AMIGO CONFIDENTE COMPUTADOR -- 07/09/2000 - 12:21 (João Brito) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Caro amigo confidente computador, como é bom tê-lo ao meu lado e à minha disposição durante todo o tempo que preciso, ou melhor, durante o pouco tempo que tenho disponível para nós dois. Se assim não fosse, não sei o que seria de mim, pois são poucos os amigos que tenho e com os quais poderia trocar minhas idéias - algumas malucas, outras idealistas demais e outras ainda temperadas com sentimentalismo e romantismo, fora de moda nos dias de hoje, quando na verdade o que está em voga é o consumismo, o sensacionalismo feito sobre a crueldade de uma realidade insana e tirana. Acha que estou exagerando? Pois bem, ontem em Ruanda, na África, segundo a ONU, morreram cerca de 6 mil pessoas de uma só vez, massacradas impetuosamente por alguns sujeitos de lá que usam suas armas de fogo para "libertar" o país de qualquer coisa que nem eles mesmo sabem ao certo. Pelo jeito vão conseguir o objetivo, e do modo que as coisas caminham, certamente faltarão habitantes para o país "liber-to", mas para aquele pobre povo não faz a menor diferença entre morrer com uma bala de fuzil ou de fome, dá no mesmo, morre-se do mesmo jeito todos os dias. E por que não falar do atentado da semana passada em Oklahoma, EUA, onde morreram dilaceradas cerca de quarenta crianças que estavam numa creche no segundo andar do prédio destruído? Um horror digno de filme de terror que embrulha o estómago, e só de pensar em tanta desgraça, sofrimento e dor ao mesmo tempo, acho que vou vomitar primeiro antes de continuar... volto já.
Hoje, amigo confidente computador, vamos conversar sobre o que se passa com este confuso cidadão do século XX vivendo numa megalópole do Terceiro Mundo. Saiba você que ando muito angustiado e jururu - assim como ficam as galinhas chocas. Também pudera, é tanta coisa passando ao mesmo tempo pela minha cabeça desmiolada que nem sei bem se estou à beira da insanidade mental ou se tudo à minha volta está realmente perdendo sentido, como parece estar.
Depois de vinte anos que cheguei a São Paulo, esperançoso por uma vida melhor, cheio de ilusões próprias da idade, e depois de ter percorrido caminhos e mais caminhos, cada um mais difícil do que o outro, já era hora de aquietar-me de vez e tirar proveito das conquistas. Entretanto, não é isto que acontece neste momento. Pelo contrário, a cada dia que passa questiono cada vez mais tudo à minha volta - diria um psicólogo que isto é próprio da idade da razão, talvez seja mesmo. Mas vamos lá, com você, confidente computador, posso me abrir totalmente e falar o que penso. Talvez possa não aceitar um erro de ortografia meu, mas não vai discordar de mim se por acaso lhe disser que estou cheio deste modo de vida urbano, maluco e neurótico e, ainda por cima, que estou disposto e prestes a jogar tudo para o alto e viver longe daqui, onde possa deixar de ouvir falar da última chacina de menores, do último atentado à bomba, do último assassinato estúpido e revoltante e deixar de enfrentar o trànsito caótico do dia-a-dia que nos leva à loucura.
Por mais racional e lógico que você seja, não vai encontrar, em suas memórias e neurónios eletrónicos, argumentos para contestar-me, e sabe por quê? Vou lhe dizer em rápidas palavras: porque você não tem sentimentos, não tem coração e não sabe diferenciar entre uma atitude de amor e uma atitude de ódio, só sabe que a palavra amor é diferente da palavra Roma, escrita com as mesmas letras, porque lhe disseram que há uma cidade italiana com este nome, e se assim não tivesse sido, nem isto você seria capaz de diferenciar. Sei que não é culpa sua, você até que se esforça para compreender nós seres humanos. A sua compreensão é ainda muito limitada, mas nem por isso você deixa de ser extremamente útil nos dias de hoje.
Pois então, vamos às minhas angústias, computador... Pergunto-lhe: faz sentido você levar, todos os dias, duas horas para chegar ao seu local de trabalho? Se estiver de carro, o conforto e o luxo do mesmo servem como atenuantes; caso contrário, dentro de um ónibus, isto é aterrorizante, não é mesmo? Saiba que milhões de trabalhadores passam por isto todo dia nesta cidade. Faz sentido, quando você vai ao shopping center no final de semana passear com a sua família, chegar lá e não encontrar onde deixar o carro? De que adianta então ter o shopping se não pode usá-lo? Faz sentido olhar uma lista de ofertas de empregos, dos mais variados, e nela não encontrar um salário mensal superior a R$ 200,00? Como pode um pai de família receber, depois de trinta dias, 220 horas de trabalho, uma quantia tão irrisória? Faz sentido, em plena luz do dia, dentro do seu carro, ficar apavorado quando um desconhecido vem na sua direção e você não sabe se vai ou não ser assaltado? Comigo já foram duas vezes, e o pior, era o mesmo assaltante. Faz sentido, quando você está passando pela mais ostentosa avenida da cidade, encontrar nas largas calçadas crianças jogadas, abandonadas à sorte, dormindo em pleno sol do meio-dia? Todos os dias, com o meu traje impecável de puro linho Braspérola, eu as vejo e quase as pisoteio se não presto atenção e desvio-me em tempo. Isto tudo faz sentido? Eh, seu computador! Responda-me, vá! Dê-me uma resposta lógica, consistente, com argumentação irrefutável. Tente pelo menos justificar o porquê da existência e o sentido de uma destas situações que acabo de lhe dizer. Vá, diga-me que tudo isto é normal num país tropical chamado Brasil onde tem carnaval. Não me venha com subterfúgios de linguagem eletrónica e justificativas sem fundamentos porque não me convencerá. Se tentar, arrematarei: onde está, nos dias de hoje, a dignidade humana, onde estão os direitos dos homens, a liberdade e a razão, que diferencia o animal do ser humano? Faça-me um favor, não tente responder nenhuma destas questões. Você não é capaz, admita de uma vez por todas.
Não fique assim, meio zonzo, rodopiando, processando e processando, tentando encontrar respostas para me agradar. Não quero chateá-lo, mas nós seres humanos somos assim mesmo: complicados, incongruentes, dotados de filosofias absurdas e ideologias enfadonhas e ineficazes. Veja o meu caso em particular: sou reconhecido no meio em que vivo, profissionalmente todos me aplaudem, minha família me admira, para meus filhos sou herói, para minha mãe sou um exemplo de filho, e daí? Daí que ainda não me sinto realizado como ser humano que sou, semelhante ao meu Criador, e por isso preciso fazer alguma coisa antes que seja tarde, não é mesmo, computador? O tempo não espera, passa e a gente não vê. Ficar de braços cruzados esperando a morte chegar - Raul Sei-xas já dizia, é uma grande idiotice. Todo homem, há muito tempo, não se dá por satisfeito apenas com prestígio e reconhecimento público e familiar, ele busca na verdade a realização pessoal, exclusiva dele. É por isso que as empresas, hoje em dia, estão cheias de trabalhadores frustrados e descontentes consigo mesmos, e este que vos fala, ou melhor, escreve, não foge à regra. Que digam-me o contrário os consultores humanistas deste mundo afora.
E por falar em auto-realização, creio eu, computador, que não há outro ser humano mais realizado do que o pedreiro. É, o pedreiro que, tijolo sobre tijolo, constrói vagarosa mas solidamente a sua casa, a qual poderá talvez não ser propriamente sua, embora a obra sempre seja. Não importa, ele sempre sentirá orgulho do seu trabalho, toda vez que passar diante dela dirá ao seu amigo: Veja esta casa, eu a construí paulatinamente, durante meses a fio, e hoje abriga uma família.
É, computador, assim caminha a humanidade - alguém já disse isto algum dia e eu acrescentaria: aos trancos e barrancos, porque do jeito que a coisa vai não sabemos onde vai dar.
Vou ficando por aqui, caraminholando as minhas questões, pois até agora você não ousou sequer responder uma delas - pelo que fez muito bem. Mas não faz mal, não, continuamos amigos, íntimos como sempre e até que a morte ou a minha própria mulher nos separe, o que já está por pouco.
Uma última pincelada, meu caro amigo confidente computador: saiba que, enquanto não nos tornarmos pedreiros de nossas vidas, haverá sempre algo por fazer e um vazio profundo se alojará nos nossos corações, quero dizer... no meu, não no seu.
Um byte para você, porque já vou me indo...
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