Setembro, 1999 - Nada neste mundo é mais gratificante do que encontrar na rua - tratando dos negócios comuns da vida e até pondo em marcha projetos de mais largo prazo - um amigo retornado do reino dos mortos.
Na literatura de ficção isso é comum. Graham Greene, o notável escritor inglês, narra em uma das suas obras mais conhecidas o espanto de um companheiro do serviço secreto que, atravessando o Strand, em Londres, avistou, do outro lado da praça, um amigo cujo enterro ele assistira, 24 horas antes, em um cemitério de Viena. Aliás, foi em torno deste argumento simples, anotado sobre a ourela de um envelope e quase com estas mesmas palavras, que Greene desenvolveu a trama magistral de O Terceiro Homem.
Em The Outsider (Harper & Brothers, NY, 1953), Richard Wright dá notícia de um tipo marginal, Cross Damon, crioulo doido de Chicago, dado como falecido em um desastre de metró em Nova York. Baseados nos indicadores clássicos da medicina legal - as impressões digitais, a arcada dentária e o par de tênis - todos (polícia, família, companhia de seguros) já tinham reconhecido o corpo do negão em meio ao rescaldo da tragédia. Dá-se que o crioulão, injuriado, rejeitou o laudo da perícia e a idéia de ter morrido; continuou vivo e saudável, mas aproveitou bem o lance para trocar de identidade civil, livrar-se das dívidas com o seu fornecedor habitual e de um casamento desastrado. E ainda deu-se ao desplante de ir a um cemitério de Queens, de óculos escuros e tudo, chorar no próprio enterro.
Na imprensa também não é incomum encontrarem-se necrológios exaustivos de pessoas que, por obra de algum estagiário irresponsável e das excelências de um arquivo de jornal, foram declaradas mortas e pranteadas, mas no mundo real seguiram sendo viventes e produtivas. No dia 23 de abril de 1963, dia do cavaleiro São Jorge, o compositor Chocolate (aquele que, junto com Elano de Paula, compós um monumento da música romàntica nacional, Canção de Amor) teve a morte noticiada pelo jornal ÚLTIMA HORA, do Rio de Janeiro. A matéria era extensa e bem elaborada, com tudo a que tem direito uma celebridade: a hora e os minutos da defunção, a causa mortis, a evolução da doença e as circunstàncias do desenlace, a ascendência e a descendência, a discografia, os prêmios, a produção inédita, o velório, o enterro, os depoimentos dos amigos e companheiros da boêmia, sempre enfeitados com as "lacunas" e as "perdas irreparáveis" que frequentam irremediavelmente o discurso de pêsames. Antes que uma cidade de 3,5 milhões de habitantes encerrasse o seu pranto, Chocolate, que não estivera sequer doente, convocou uma entrevista coletiva para declarar que estava vivo e mandar um recado: "Ora, digam ao Samuel Wainer, diretor da ÚLTIMA HORA, que eu tenho um contrato de trabalho de três anos assinado com o Carlos Machado, do Nigth & Day, e também uma feijoada no próximo sábado, combinada com Cartola e Carlos Cachaça no Morro da Mangueira. Logo, não estou em condições físicas nem morais de abotoar o paletó nesta hora difícil da vida nacional".
Chocolate sobreviveu por mais de 30 anos a sua própria "morte", compondo sambas imortais e rindo de uma das mais ridículas "barrigas" da imprensa carioca neste século terminante.
Na Paraíba, o jornalista Orlando Meira Tejo, dono do Diário de Campina Grande, também tinha o hábito de "matar" os desafetos nas colunas do seu respeitado pasquim, publicar-lhes a história de vida, a hora, a razão e os tràmites do passamento, fazer-lhes o elogio fúnebre e, num exagero de deferência para com o inimigo, convocar a comunidade cristã para as cerimónias de corpo presente, o enterramento e a missa de sétimo dia. Em um dia qualquer de 1958, Orlando Tejo, um homem sempre na oposição, noticiou a morte do governador do Estado, Flávio Ribeiro Coutinho. Escreveu tudo que quis escrever no obituário e, neste caso específico, ainda noticiou a posse imediata do vice-governador, Pedro Gondim, nomeou o novo secretariado e indicou as principais mudanças de estilo a serem adotadas na administração provincial. O governador, morto ad hoc, ficou tão irritado que abandonou todas as regras do cerimonial e foi ele próprio a Campina Grande tomar satisfações. Lá, de revólver em punho, encurralou Orlando Tejo debaixo do pé-de-escada em que funcionava a redação do jornal e exigiu a impressão imediata de uma edição extra com um desmentido de tudo que fora publicado na edição normal daquele mesmo dia. Tejo reagiu com grande bravura à agressão e até com uma arrogància desproporcional ao tamanho do seu império jornalístico: "Governador", disse ele, "jornal meu não dá desmentidos. Se o senhor continuar com essa exigência absurda e com esse revólver apontado para a minha cabeça, o máximo que eu posso fazer é publicar na edição de amanhã que o senhor nasceu outra vez". E assim foi costurado um acordo político em que se preservou, de uma só vez, o respeito à autoridade constituída e o culto à liberdade de imprensa na Paraíba.
Estas pequenas histórias vêm a propósito de uma ressurreição recebida com imensa alegria pela comunidade dos brasilienses de bom caráter - a de Wanderley Lopes. Wanderley - esse baiano cordial que apareceu em Brasília na década de 1970, vindo de Roma, de Londres, de Paris, de Nazaré das Farinhas, de São Paulo, de Bombaim, dos quatro cantos do mundo, para ajudar a dar graça e sentido a uma cidade que mal deixara de ser um canteiro de obras - era um quase-morto em agosto de 1999.
Institucionalmente, já era um morto. Portador de um càncer na laringe, tinha perdido todas as funções, para ele, vitais: a voz, o paladar, a respiração nasal, a locomoção. Já não falava, alimentava-se e respirava por uns tubos flexíveis de polipropileno. De uma massa muscular que nos melhores tempos alcançara uns 70 quilos, tinha perdido 40. Os grandes jornais da cidade, ao noticiarem a doença de Wanderley Lopes, fizeram antecipadamente o seu necrológio. O Ministério da Saúde, ao revisar os seus bancos de dados para evitar o bug do Milênio, aproveitou a oportunidade para atualizar as estatísticas de mortalidade e contabilizou Wanderley entre os "êxitos letais" do tabagismo. "Infelizmente", disse um bêbado no Beirute, "para ser defunto de verdade só lhe faltam a falência múltipla dos órgãos e o atestado de óbito".
Pois apesar disso tudo, graças à s artes mágicas dos médicos do Sistema Unificado de Saúde, à eficácia de uma cirurgia bem realizada, à energia de milhões de preces dos seus milhões de amigos e de outras tantas pessoas que nem sequer o conheciam, e à força de uma droga salvadora que ainda não tem nome, nem registro, Wanderley de repente ficou bom. Em grande parte, também, porque resolveu ficar bom. Um dia, cedo, levantou-se da cama sem aquela cor acinzentada dos agónicos, tiraram-lhe os tubos, os frascos de soro, os esparadrapos, as agulhas, o pijama sem mangas dos doentes, devolveram-lhe o terno azul de executivo, a gravata italiana, os sapatos de cromo alemão com fivelas de ouro branco, as meias chilenas, a auto-estima, e deixaram-no ir em frente, lépido, ouvinte e falante, com aprumo e atitude, como se nada tivesse acontecido. A laringe, reconstruída, está ótima: apenas a voz, que antes tendia para o registro mais grave do contralto, agora se firmou no tom mais agudo do baixo-tenor. As dores se foram e os quilos perdidos começaram a voltar à razão de dois por semana. As grandes preocupações de Wanderley Lopes, por enquanto, são, nesta ordem: (i) voltar a frequentar os bares antigos sem que as pessoas, ao vê-lo, saiam correndo, assustadas, com o cabelo em pé e sem pagar a conta, e (ii) recolocar em circulação o FOGO CERRADO, o seu jornal tantas vezes morto e tantas vezes ressuscitado que, mirando-se nele, não há como pór em dúvida a idéia de que a reencarnação existe.
Os exemplos de Wanderley Lopes, do governador Flávio Ribeiro, de Chocolate, de Cross Damon e do personagem de Graham Greene, embora poucos, são suficientes para sugerir aos teóricos da semiologia uma reflexão aprofundada sobre as diferenças, na mídia, entre informação e verdade. E também para avaliar a lucidez daquele funcionário público do conto de Roberto Amaral, tido como maníaco-depressivo só porque vivia dizendo aos amigos na velha Fortaleza: "ao comprar um jornal ou uma revista, vá direto ao obituário. Um dos mortos que estão lá pode ser você".